terça-feira, 26 de outubro de 2010

O Andarilho e Sua Sombra

O andarilho é aquele indivíduo que já alcançou a liberdade da razão, e quando ele consegue este feito, de forma automática, ele se torna senhor da razão, jamais escravo dela. O quê isso significa? Significa que, sendo eu senhor dela, sei exatamente o momento em que dela posso me utilizar, e quando ela posso me esquivar.

E por que chamar-me de andarilho? Andarilho é aquele que, da mesma forma que controla a razão, não faz dela morada fixa. Ele transforma sua vida numa andança em que a razão só serve para ser controlada, jamais perenizada. E por advir da vida, este andar dá intensidade à razão, automaticamente também ao saber; ao saber do conhecimento; ao saboroso prazer do saber. Este mesmo que pode ser encarado a partir de belas paisagens e de belas imagens, apenas vistas quando do andar devagar, do ruminar do ambiente. Do sorver a claridade do sol e as belezas que surgem de seu reflexo. Um reflexo pleno de vida e belo, tão-somente e por intensidade, pelo andar devagar.

Assim, quando atingimos a filosofia do meio-dia, ao longo deste constante caminhar, não permitimos que a sombra da razão nos influencie, nem nos cubra com sua escuridão obscena. Temos controle sobre esta sombra; ela está sob nossos pés, pois apenas ali ela aparece, pois o sol nos coloca no centro do mundo e sobre qualquer escuridão. O sol nos coloca no meio-dia da vida.

O andarilho que busca a filosofia do meio-dia não tem em seu projeto de caminhar um fim último, sua direção é a paisagem que a vida irá lhe mostrar. Há que ter os olhos abertos para tudo o que propriamente se passa no mundo, sejam eles os belos arvoredos que o acompanham em sua jornada, seja as sombras que serão subjugadas por seu espírito. Por isso ele tem uma bela e constante visão, tão plena e cheia de vida quanto deve ser a vida; uma vida sem sua submissão à razão.

Quem chegou, ainda que apenas em certa medida, à liberdade da razão, não pode sentir-se sobre a Terra senão como andarilho – embora não como viajante em direção a um alvo último: pois este não há. Mas bem que ele quer ver e ter os olhos abertos para tudo o que propriamente se passa no mundo; por isso não pode prender seu coração com demasiada firmeza a nada de singular; tem de haver nele próprio algo de errante, que encontra sua alegria na mudança e na transitoriedade. (Humano, Demasiado Humano, I: § 638)

Essa transitoriedade buscada pelo andarilho, e sua sombra, é a mesma que deveríamos buscar quando nos referimos ao conhecimento, especificamente o conhecimento advindo da vida. Aquele mesmo que é pulsante, belo e vivo. Aquele que nos dá vida e nos dá o controle sobre nossas sombras e sobre a grande sombra feita pelo sombreiro da razão.

Nenhum comentário: