sexta-feira, 24 de abril de 2009

Crônicas da Educação II

O Fim... de Turno


Estava eu, singelo professor, saindo da sala de aula no 4º horário a caminho de outra para completar meu turno, enquanto pensava nos problemas cotidianos: alunos com déficit de atenção, problemas familiares, carência econômica e emocional, meu salário que não dava para pagar as contas, a revista que eu queria assinar, mas teria que adiar novamente, o pagamento do aluguel atrasado, etc. Quando de repente, ao passar em frente da vice-direção, uma conversa me alcança:


- Você é o vice-diretor?


- Sim, sou eu, bom dia!


- Só se for para você, porque eu deixei um monte de serviço em casa e meus filhos pequenos sozinhos para vir aqui.


- Qual o problema?


- Eu é que sei... Simplesmente me chamaram, meu filho disse que eu teria que comparecer na escola.


- Certo, quem a chamou?


- Não sei.


- A Sra. recebeu um bilhete, um comunicado?


- Sim, mas deixei em casa.


- Entendo...


- A Sra. leu o bilhete?


- Claro que eu li!


- Quem a convocou? Qual a pedagoga?


- Não sei, como posso saber?


- Estava no bilhete que a Sra. leu!


- Não me lembro, e agora?


- Tudo bem, temos três pedagogas, cada uma com 7 turmas, diga-me apenas o ano (série) em que seu filho estuda?


- ah... Não sei... Acho que é 7ª ou 8ª...


- Tudo bem, me fale a data de nascimento dele que eu o procuro no sistema.


- Data de nascimento, ah... Deve ser 3 ou 5 de maio; não, não, acho que é abril...


Como a turma do 5º horário já me esperava à porta, não pude ouvir o final do diálogo entre o vice-diretor e a mãe do aluno... Foi melhor assim!

terça-feira, 21 de abril de 2009

Crônicas da Educação I


Ônibus Quebrado


Estava eu no ônibus pensando em nada, quando uma conversa me invadiu:


- Nossa, mas esses alunos de hoje são tão burros, não gostam de ler, não sabem e não querem escrever e quando tiram notas baixas, aí vem os pais reclamarem e a culpa recai sobre nós, a culpa é do professor.


- Então, a gente tem que ensinar até a sentar, só querem saber de internet, site de relacionamento, televisão e videogame. Ainda bem que nem de computador eu gosto.


Quando de repente o ônibus pára, faz-se silêncio, o motorista desce, olha o motor e desbriado volta e diz ao cobrador:


- Zé!?


- Fala?


- Liga para empresa, chama o reboque esse aqui já era!


É quando um dos interlocutores volta a falar:


- Era só o que faltava, vou chegar atrasado na outra escola e o diretor lá não quer nem saber, manda falta!


- Pois é, esse é o Brasil, e depois vem político dizer que quer melhorar a educação, os professores nem trabalhando três turnos têm dinheiro para comprar carro.


- Então... Ei veja!


Fala para o outro, mostrando a placa com o nome da rua onde o ônibus quebrou.


- O quê?


- Olha ali na placa, brasileiro não tem nem criatividade para colocar nome nas ruas, vê se aquilo é nome: Gustavi Flauberte.


- E eu não sei, são um bando de ignorante, também olha só quem é presidente.


- Mas, mudando de assunto, se viu ontem no Big Brother, quem foi para o paredão?


Nesse momento, meu olhar capta uma cena inusitada, logo a frente um jovem alheio àquela conversa lê “1984” de George Orwell.


Que trágica e desconfortável coincidência, para um professor como eu!

Seção D'Outro


O Declínio de Nós Mesmos
Maurício Bozatski - amigo blogueiro e mestreiro


Certa vez eu li o livro O Declínio do Ocidente de Oswald Spengler, no qual, em suma, o autor reconhece a ascendência morfológica da vida sobre a razão e do dinheiro e da máquina sobre a cultura e o indivíduo. Este livro atraiu intelectuais revoltados com os Estados Unidos por ser uma ‘civilização comercial’ puritana. Nos anos trinta do século XX, o texto de Spengler foi escolhido como um dos dez ‘livros que mudaram nossa mente’.

Segundo o declínio do Ocidente a cultura é cíclica e é possível basear-se no declínio de outras civilizações que outrora já foram grandes modelos hegemônicos da cultura e da economia para prever o futuro da nossa. Pensemos no Antigo Egito e nos seus faraós e deuses cujas reminiscências arqueológicas figuram hoje apenas como atração turística e intelectual para arqueólogos e historiadores. Lembremos da Grécia Antiga e seu legado que malmente compreendemos, pois a ideia de uma democracia numa cidade sustentada por escravos é estranha até mesmo para o mais dogmático dentre nós que acredita viver em uma democracia. Voltemos o olhar para o Império Romano e veremos um Direito estruturado sobre doze tábuas apoiadas muito mais nos bacanais e nas areias ensangüentadas das arenas de gladiatura do que no mármore do senado republicano. Enfim, não há modelo cultural ou progresso civilizatório que dure para sempre, contudo, os vícios parecem se repetir indefinidamente.

O fato de eu ter completado vinte e nove de existência na semana passada me fez pensar que em meio aos apertos de mãos e abraços de congratulações eu estava de fato dando mais um passo em direção ao meu declínio pessoal, e então me pus a relembrar onde eu estava aos dezenove e aos nove anos de idade. Minha memória sempre respondeu aos meus chamados insólitos, contudo, desta vez, eu apenas recordei onde estava no meu aniversário de dezenove anos. Lembrei que estava pescando e tomei uma grande chuva que me fez sair às pressas de um pesqueiro no Rio São João. A chuva também me fez contrair um parasita que deve ter descido em forma de ovo que algum mosquito havia depositado na copa de alguma árvore e que se alojou em meu couro cabeludo. Sobre o aniversário de nove anos eu não me lembro de nada. Foi então que fui pesquisar o que acontecia no Brasil e no mundo em 1989, e foi esta pesquisa que me fez recordar de Spengler.

Dentre os fatos mais notáveis de 1989, cabe destacar a criação da World Wide Web pelo físico inglês Tim Berners-Lee; Um avião da Varig cai na Amazônia; São Francisco é atingida por um grande terremoto; A extinta União Soviética deixa o Afeganistão depois de nove anos de ocupação; A rede de televisão Fox estréia a primeira temporada dos Simpsons; O presidente George W. S. Bush se encontra com o presidente Gorbatchov da União Soviética na costa de Malta, no que seria o prenúncio do final da Guerra Fria; A sonda Voyager 2 chega a Netuno; Israelenses e muçulmanos trocam hostilidades; Na China, estudantes protestavam contra o regime socialista. O Brasil passava por sua primeira eleição presidencial democrática depois da ditadura militar; José Sarney era o presidente do Brasil; Fernando Collor seria eleito presidente vencendo Lula no segundo turno.

Já em 2009, não é preciso fazer uma pesquisa, mas apenas lembrar-se de alguns fatos. Um terremoto atingiu a Itália; Há tropas americanas ocupando o Afeganistão; A China continua socialista, mas os estudantes já não protestam, apenas os monges tibetanos fazem isso agora; A rede de televisão Fox estréia a vigésima temporada dos Simpsons; O presidente norte-americano Obama se encontra com o líder venezuelano Hugo Chavés, ganha um livro do Eduardo Galeano deste, no que pode ser o prenúncio do final da hostilidade entre os dois países; Israelenses e muçulmanos trocam hostilidades, cercos, tiros e embargos; NASA lança a sonda Kepler no intuito de encontrar exoplanetas; A Google lança sua plataforma Street View para cidades brasileiras e portuguesas; A Cúpula das Américas termina com apenas uma assinatura no documento final; No Brasil, Lula é o presidente da República; José Sarney é o presidente do Senado e Fernando Collor é o presidente da Comissão de Infraestrutura.


Parece que nestes vinte anos as coisas tem se repetido ciclicamente e com exceção de alguns nomes, datas, lugares e cargos, tudo permanece o mesmo. Os mesmos poderes, os mesmos interesses, a mesma falsidade, as mesmas catástrofes, os mesmos anseios. Enfim, parece que Spengler estava certo, e de fato a vida excede a inteligência. Então nos próximos vinte anos vou me preocupar menos em entender o mundo e mais em vivê-lo. Pois, independentemente de minha vontade o mundo ocorre, as coisas se repetem e esta civilização e eu caminhamos rumo ao nosso declínio, apenas espero que o meu seja mais demorado que o dela.


Homem: Um Prometeu Arrependido...?



O grande problema, porém, de nos defrontarmos com tamanho conhecimento, tal como o mundo teima em nos oferecer seria, talvez, não sabermos lidar com o mesmo, nem tampouco com uma possível utilidade do mesmo. E o 'abalo sísmico' dionisíaco, traduzido pelo mito através de forças descomunais, pode nos oferecer um conhecimento que se aproxima bastante do absurdo, vide o mito de Prometeu, e seu castigo ao trazer o fogo para os homens, como consta em Nitzsche e os Gregos: arte e “mal-estar” na cultura (RODRIGUES, 1998: 43).


Além do mais, quando Heráclito busca no fogo sua referência para justificar a origem das coisas, algo assalta-nos a intuição, aliás; é justamente o mito de Prometeu que desvela a inteligência do homem por meio do fogo, ou seja, uma ligação bem tênue pode ser encontrada nestas duas informações: o mito de Prometeu e o fogo de Heráclito.


É sabido que o mito é muito importante para Nietzsche – e também para compreender este conhecimento 'originário' –, o que nos demonstra A Filosofia na Época Trágica dos Gregos e O Nascimento da Tragédia. Pensando nesta constatação, uma outra coincidência se apresenta: o mito de Prometeu, e como o fogo é sinônimo de conhecimento, sendo importante para a evolução sapiencial do homem.


Mera coincidência ou não, o fogo (sinônimo de conhecimento) está para Heráclito como 'matéria' principal de seus escritos. Além do mais, pelo fogo o homem se equipara aos deuses, como se verá a seguir.


Nos versos 510 a 516 da Teogonia, está contada a estória de Prometeu, segundo Hesíodo. Consta ali que a primeira falta de Prometeu para com Zeus em favor dos homens foi quando dividiu um boi em duas partes, uma cabendo a Zeus e outra aos mortais. Na primeira estavam as carnes e as vísceras, cobertas com couro. Na segunda, apenas ossos, cobertos com a banha do animal.


Zeus, atraído pela banha, escolhe a segunda, e então a raiva, o rancor, e a cólera lhe subiriam à cabeça. Por conta disso, castiga os homens, negando a eles a força do fogo infatigável. O fogo representa simbolicamente a inteligência do homem. A afronta definitiva de Prometeu, porém, ocorre quando este rouba “o brilho longevisível do infatigável fogo em oca Férula” (Teogonia: 566). Com isto, Prometeu reanimou a inteligência do homem, que antes era semelhante aos fantasmas dos sonhos. A fala de Prometeu na tragédia de Ésquilo remete para ele a dívida dos mortais por terem a habilidade de, por exemplo, construir casas de tijolos e madeira. Os mortais, diz o titã, tudo faziam sem tino até que lhes ensinasse “as intrincadas saídas e portas dos astros. Por elas inventei os números (...) a composição das letras e a memória (...), matriz universal” (idem). Prometeu diz, enfim, que os homens devem a ele todas as artes, inclusive a de domesticar animais selvagens e fazê-los trabalhar para os homens.


Aptidões estas que os homens passam a tê-las quando da aquisição do fogo. Antes da descoberta do fogo, conforme consta no período Paleolítico, é um momento que representa a dificuldade de sobrevivência do homem nas eras mais antigas e primitivas, ou a miséria do homem antes da Idade do Ferro – instante em que o homem começa a cunhar o mineral –, como nos demonstra a História.


Dessa forma, o mito de Prometeu se torna uma continuação da eterna luta que o homem trava diante dos deuses, uma luta retomada no relato de figuras simbólicas como as divindades e os titãs. Mais que isso, pode-se afirmar que o mito de Prometeu conta a história do despertar da humanidade. Por ser um titã, simboliza a revolta contra o espírito, que podemos emendar, também, como a revolta contra a tradição.


O castigo pelo roubo do fogo não é porque Zeus ficou irado com Prometeu, mas porque ele se opôs às regras do espírito, da tradição. Assim, o fogo se torna o representante do intelecto, por lhe permitir, também, representar a 'perversão' que é ir contra a tradição. A descoberta do fogo desempenha um papel crucial ligado à eclosão do intelecto tanto sob uma forma positiva quanto negativa, e aqui podemos rever a dualidade, o conflito e o embate que é o estado de guerra de Heráclito. Todo esforço para a mudança do mundo, em função das necessidades corporais do homem, tem sua origem no domínio do fogo.


Por fim, Prometeu representa a própria história da humanidade não-somente por meio da tendência à 'perversão' do ir contra, representada pelo rapto do fogo, mas também pela esperança de se elevar a um caminho mais puro; e puro este visto como sublime ou divino, ou seja, o fogo pode, muito bem, representar a 'divinização' do homem, mesmo fazendo isso para viver sua vida de forma mais plena.


A Idade do Ferro, junto com a agricultura, são dois grandes avanços da humanidade, corroborando, de forma histórica, à tese do fogo, visto que é na Idade do Ferro que o homem começa a manipulá-lo. Dessa forma, podemos dizer que o fogo coloca o homem lado a lado com os deuses, afinal de contas, ele pertencia a Zeus.


Ademais, para (Rodrigues, 1998: 49), citando Nietzsche, o mito passa a ser uma espécie de confirmação da sabedoria dionisíaca, se potencializando por meio de forças vitais, impedindo qualquer espécie de degeneração do seu verdadeiro significado para o homem. Apenas um horizonte cercado de mitos encerra em unidade todo um movimento cultural, emenda Nietzsche em O Nascimento da Tragédia.


E, como brincam o artista e a criança, também brinca o fogo eternamente vivo, construindo e destruindo com toda inocência; uma inocência eternamente intacta. Nietzsche dirá ainda mais (FT: § 7), como uma criança que amontoa e destrói o castelo de areia, à beira mar, também começa e recomeça o jogo sem que o compromisso de saciar o conhecimento surja como um empecilho à vida.


Novamente Nietzsche, na mesma obra: não é a perversidade de esgotar o saber que deveria assaltar os homens, mas a inocência da criança e o instinto do jogo, sempre despertando de novo, que chamaria à vida novos mundos, e cada vez mais nova vida.


O fogo, sinônimo de desobediência aos deuses, por um titã, e sublimação do homem, conforme o mito de Prometeu, tem muito de fogo e criança: obedece apenas a um capricho inocente, de sempre ver o novo diante de si. Sem lógica interna, nem articulação depuradora.


A obra da vida é vista sempre como necessidade e jogo, capricho e inocência. Uma criança a reconstruir, um fogo a consumir e um jogo a constar, e a jogar também.


Ainda Nietzsche, referindo-se a Heráclito: “O homem, até sua última fibra, é inteiramente necessidade e absolutamente 'não-liberdade' – se por liberdade se entender a exigência extravagante de poder mudar a natureza segundo o próprio capricho, como uma roupa, pretensão que toda filosofia digna desse nome recusou até agora com a ironia requerida.” (FT: § 7), pois a natureza está posta, e o capricho inocente não é aquele que a desvenda, tentando desvelar seus segredos, mas a transforma: um brincar que não assume compromisso, nem tampouco valoração moral (conhecer a todo custo).


O mundo é uma obra em vias de realização, por isso o jogo da criança, com sua inocência e despretensão no montar e desmontar: que está a transformar; por isso o consumir do fogo: inteligência pura, sem qualquer estribeira moral e, ao mesmo tempo, sinônimo de humanidade divinizada. Um presente de Prometeu, um jogo inocente e infantil.


O jogo do universo não pode ser interpretado como uma atenção trivial que se dedica às oportunidades oferecidas, em proveito da saciedade e esgotamento humanos. Mas, como um consumir e um brincar.


Apenas no jogo do fogo, intenso, consigo mesmo, é que o Uno consegue ser, simultaneamente, o Múltiplo; mostrando o sopro quente que transforma argila em homem. Desconhecimento e assombro em conhecimento, saber em sabor: sabor de vida, homem de Prometeu.


E Prometeu, seguindo esta linha de reflexão, é mais uma constatação a Heráclito, uma vez que, sendo o benfeitor da humanidade é também quem lhe causou a desgraça. Humanidade cuja sorte é concebida em termos de queda (quando do destroçar da águia, ao fígado de Prometeu), ao mesmo tempo em que ascensão aos deuses (quando do libertar de Héracles, com o consentimento de Zeus). E ao homem, sua imagem e sapiência: por meio do fogo dos deuses.


sábado, 4 de abril de 2009

O Eu sem o Outro: O paradoxo de nossa sociedade

Em nossa sociedade atual temos medo de viver em autonomia. A liberdade não é mais desejada, e sim sentida como perigosa. A participação política é um fardo, uma ocupação cansativa que onera o já oneroso cotidiano do trabalho. As pessoas se fecham dentro de si mesmas, se recolhem à segurança de suas vidas privadas e privativas, ao recanto da intimidade. O outro se tornou um incômodo, um excesso que não se pode mais perder tempo com ele.


Pensar no outro é perder tempo com a própria vida, com seus próprios problemas pessoais. O altruísmo é um luxo, nos contentamos apenas em lamentar as mortes, as desgraças e infortúnios alheios que aparece aos montes na televisão e nos meios populares de imprensa. Isso é um sintoma do pouco valor que damos aos fatos alheios a nossa vidinha, pois se nos afetassem realmente, jamais conseguiríamos dormir em paz depois de assistir ao telejornal.


Ao contrário, trata-se de um anestésico que ao mesmo tempo em que nos dá a falsa impressão, aos outros e a nós mesmos, de que nos importamos com o além de mim e de que os outros se importariam comigo, também nos passa a idéia de que sentimos muito, mas não podemos fazer nada, pois nossas obrigações individuais nos tiram todo o tempo que teríamos para pensar e ajudar o outro efetivamente.


Existe em nossa contemporaneidade uma cisão entre o eu e outro, componentes do indivíduo na modernidade clássica. Vivemos o indivíduo-eu e é óbvio que isso nos impossibilita de vivermos em sociedade e ao mesmo tempo que tentamos recusá-la, fugir dessa sociedade que negamos, da necessidade do outro, da complementação do eu, refugiando em si mesmo, reivindicamos internamente, inconscientemente a alteridade do outro aquela mesma que nós mesmos negamos. Transferimos a nossa responsabilidade para outro, para o governo, para o patrão, etc. É, em suma, um beco sem saída.


Não queremos romper com a nossa rotina torturante e talvez nem podemos, pois essa mesma rotina aprisiona a imaginação para além dela, de nós mesmos. Como no mito de Ulisses que tentava libertar seus companheiros do feitiço que os transformaram em porcos e quando os mesmos ficaram sabendo que ele tinha o antídoto, fugiram todos se recusando a serem libertos do estado animal em que estavam.


Atualmente, nos recusamos a sair da caverna, pois a luz nos dá medo, nos assusta. As trevas, ao contrário do que os filmes de terror propagam, nos dá segurança e calma. Sem a luz para nos mostrar o que nos assusta não podemos nos assustar. É como na casa do terror de qualquer parque de diversão, sem a luz não podemos ver as caveiras, os vampiros é só com a luz que podemos gritar de medo. Se não podemos enxergar, logo não podemos decidir, nem opinar e nem andarmos por conta própria. A desresponsabilização é um porto seguro que embora não nos traga aventuras também não nos traz riscos. Preferimos nos submeter aos erros cotidianos de vidas sem sentido a termos a responsabilidade de impormos a nós o nosso próprio sentido.


O aluno com medo de aprender se esconde em sua ignorância. É como se a vergonha de cair da bicicleta fosse tão terrível a ponto de preferir nem tentar aprender a andar de bicicleta. Por isso, o videogame é o brinquedo da nossa época, porque só socializamos o jogo quando já o dominamos, não há a vergonha dos erros, pois não se compartilha o jogo antes de aprendê-lo na solidão. A interação, se é que podemos chamar dessa forma, a relação entre menino e a máquina é passiva, sem comentários, sem críticas alheias. Os jovens de hoje não estão preparados para crítica, toda contrariedade é tida como ofensa ou maledicência, por isso, mais do que antes se refugiam em hábitos fabricados pela mídia ou pelos produtores de comportamentos do momento. Nada é mais seguro do que fazer o que todos fazem.


É por isso também que a customização é uma marca de nosso tempo, ao mesmo tempo, em que imitamos os produtores de comportamento adaptamos a nossa individualidade, aquilo que é só nosso, ou que achamos que seja, pois a customização também se massifica, pois é, por outro lado, a retroalimentação do mercado, o aproveitamento de seus dejetos para novos fins, é a multiplicação dos pães das mercadorias, é a reprodução infinita dos mesmos por meio da mudança de detalhes que pouco os diferenciam, um corte aqui outro acolá, um descosturado na coxa outro no joelho e assim a mesmice e a uniformidade é reproduzida como se não fosse o mesmo e nem o uniformemente igual.


A beleza, hoje em dia, está na ignorância, no não-saber.


A liberdade é poder fazer igual aos outros.


A paz é não ser importunado por problemas alheios.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Crônicas do Futebol III

O “Diamante Negro” não é mais Aquele

Hoje acordei de ressaca e para repor a glicose, como um bom chocólatra, comecei a mordiscar um delicioso “diamante negro”, foi quando dei por mim e pensei: poucos são os que sabem da história desse nome e do homem que inspirou tal denominação.


Havia um tempo em que o racismo no futebol era abertamente declarado e a maioria dos times de futebol não aceitava negros. O Vasco foi um dos primeiros times a fazer essa “concessão” e, embora, essa postura seja supervalorizada, o mérito do clube cruz-maltino é pequeno, pois na verdade a aceitação dos negros no futebol foi uma imposição pelo talento de cada um deles. O jogador negro, para ser admitido nos times, tinha que ser muito melhor que seus concorrentes, pois a cor infelizmente era critério de desempate.


As coisas começaram a mudar quando Leônidas apareceu no São Cristovão do Rio de Janeiro, à época um time tradicional, e depois de passagens por Peñarol, Vasco, Botafogo e, finalmente, Flamengo onde se consagrou como o maior jogador de seu tempo, o racismo no futebol brasileiro começou a se disfarçar nos formatos atuais de preconceito, quase imperceptíveis.


Leônidas sucedeu Friedenreich como maior ídolo brasileiro até então. Foi artilheiro da Copa de 1938 na França, onde o Brasil pela primeira vez conseguiu uma posição de destaque em mundiais, perdendo na semifinal para Itália sem a presença de Leônidas que estava contundido, embora sua ausência tenha sido recheada por falácias que difamaram o principal craque daquele mundial.


Uma dessas, Benito Mussolini teria pagado para que Leônidas não participasse daquela partida. A marcação do Pênalti cometido por Domingo da Guia, o maior zagueiro brasileiro da época, alguns dizem de todos os tempos, em um lance sem bola corroborou para insinuações desse tipo, pois a marcação de penalti naquela condição colocava a partida sob suspeitas e acusações, as quais foram rechaçadas por Leônidas que foi indenizado pela justiça contra seus caluniadores.


Leônidas ficou conhecido por sua agilidade e habilidade, foi, senão o inventor de uma das jogadas mais plásticas do futebol, por certo, o seu maior executor, da então chamada bicicleta. Foi admirado em todo mundo, até mesmo no exterior, principalmente, na França onde foi apelidado de homem borracha e no Brasil ficou conhecido como “diamante negro”. Foi o maior jogador até a aparição de Pelé no final dos anos 50, alguns dizem que teria sido maior que o rei se houvesse televisão para documentar seus lances memoráveis e se a Segunda Guerra Mundial não tivesse inviabilizado as Copas do Mundo de 1942 e 1946, onde juntamente com Di Stéfano era, com certeza, o maior craque do Universo.


Suposições e exageros a parte, Leônidas fez parte de um dos maiores times de futebol dos anos 40, ganhador de 5 títulos paulistas naquela década, quando já era, pela imprensa esportiva, considerado um craque em decadência, ora vejam!?. Nesse período ele foi comprado pelo São Paulo por uma fortuna e como um verdadeiro ídolo midiático foi recebido por mais de 10 mil pessoas na Estação da Luz.


Contradizendo seus críticos mais ferrenhos continuou sendo o melhor jogador do país, fazendo seus gols e jogadas fantásticas como o gol de bicicleta que fez contra o Juventus, imortalizada por fotografia e pela réplica no museu do São Paulo no Morumbi.


No auge de sua fama cedeu seu apelido, que virara uma legenda, uma grande marca, para a então brasileira fábrica de chocolates Lacta, dizem que por meros 2 contos de réis, única quantia que recebeu em toda a vida da empresa. É, até hoje, considerado um dos maiores ídolos do São Paulo, clube que sempre o reverenciou mesmo quando já não era mais jogador de futebol, infelizmente, fato raro no futebol brasileiro, onde ídolos da envergadura de Leônidas, quase sempre, são relegados ao esquecimento.