sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

O Diário do Farol: A Face do Mal


Questão que perpassa conceitos de moralidade, ética e religião a dicotomia entre bem e mal é discussão de interesse milenar. Dos relatos bíblicos da queda de Satã e do livre arbítrio do homem, fábulas infantis, sabedoria do senso comum, às inúmeras obras artísticas e narrativas literárias, a discussão gira em torno da negatividade do mal e fator positivo do bem. Em uma perspectiva contrária, a personagem central de O Diário do Farol, de João Ubaldo Ribeiro, incita o leitor a uma reflexão sobre a essência humana no mal, motivo central desta edição.

A obra é narrada por uma personagem voluntariamente anônima que se denomina o faroleiro, e que, aos sessenta anos de idade, vive isolada em uma ilhota deserta, inóspita e de difícil acesso, se dedicando a registrar, em um relato em forma de diário, suas memórias de uma vida calcada na vingança, no ódio e na ambição.

Vítima da dor da perda da mãe, morta por seu pai, e da incessante violência paterna, física e psicológica, cresce com a determinação de vingar-se do pai assassino e de sua tia materna, irmã de sua mãe, parceira e cúmplice no crime, que passa a ser sua madrasta. Mostra-se com uma aptidão prazerosa em toda forma de vilania para atingir sua meta, desenvolvendo uma personalidade dissimulada e voltada para a farsa. Conta com o auxílio da sua mãe morta, que se mostra presente através de uma voz que acompanha e incentiva os atos do filho vingador: ... sou movido a escrever este relato, mais fortemente que pelos outros motivos, pela minha Vaidade em me considerar o pior dos seres humanos, o único, que eu saiba, que encarnou em si tudo o que lhe conveio, sem permitir que o filtro de qualquer valor erguesse impedimento. Veja bem, isso não me retira a solidão, antes a sublinha. Não fiz, nem de longe, tudo que de mau já se fez, mas teria feito, se houvesse oportunidade. Sou, portanto, para o espelho de minha absoluta Vaidade, o pior dos homens, o que cometeria o que de mais hediondo se pudesse conceber e chegou a uma quantidade difícil de igualar, não em número, mas em qualidade. Eu sou um grande mau, dir-se-ia (p. 23).

Batiza o farol em que vive com o irônico nome de Lúcifer, o príncipe da luz, criado por Deus, que se revolta contra o Criador, formando um reino adverso. E intenta com seu relato (e a vaidade que o leva à escritura) incutir no leitor um incômodo, levando-o a entender sua própria solidão e loucura, condição, acredita ele, perene a todo e qualquer ser humano. Entende o homem como um ser solitário por nascimento, natureza, sentimento e vida, que teria uma curiosidade essencial sobre a confirmação secreta de sua sanidade. Os atos que aparentemente seriam mais repugnantes aos seus olhos e aos do mundo são interiormente praticados, encontrando na especulação da alma alheia o confronto com sua própria natureza de assassinos, invejosos, devassos, traidores, egoístas, mentirosos, pusilânimes, canalhas, mesquinhos, hipócritas, adúlteros, santos neuróticos, antropófagos, parricidas, matricidas, infanticidas, estupradores, todos, todos, todos os que estão dentro dele mesmo (p. 18).

Esse lado mau que cada homem traz dentro de si, e por condições externas impostas pela educação e convívio social, mantém reprimido, ganha um contorno fantástico na história do visconde Medardo di Terralba, em O Visconde Partido ao Meio, de Ítalo Calvino. Em certa guerra contra os turcos, nas planícies da Boêmia, o visconde é atingido por uma bala de canhão que o corta em dois no sentido longitudinal. A parte direita se mantém intacta, perfeitamente conservada, exceto pela enorme rasgadura que a separara da parte esquerda estraçalhada – esta, dada como inválida. É socorrido, e, após uma incrível intervenção cirúrgica, resiste, vivo e partido ao meio. Os habitantes de Terralba – após o retorno de Medardo à terra natal – logo perceberiam que não era só a aparência do mestre que havia mudado. De aspecto sombrio e taciturno, dedica-se a praticar pequenas maldades e, após a morte do pai, que morre em uma espécie de entrega desgostosa, Medardo assume o viscondado e inicia uma série de maldades pela região. Condenava culpados e inocentes à forca, incendiava bosques inteiros, vitimando pobres camponeses, e até mesmo o próprio castelo com sua ama dentro – ela que outrora lhe substituira a demanda de afeto causada pela ausência materna.

No entanto, a sua metade dada por perdida sobrevivera e volta em uma espécie de antípoda, sendo toda ela boas ações. Em um comportamento maniqueísta, o Mesquinho e o Bom seguem vidas de atos divergentes – um destrói e o outro repara – até o confronto final, no qual, bem e mal, tentando sobrepujarem-se, terminam por destruírem-se mutuamente. Após uma elaborada cirurgia, o visconde tem suas partes restauradas e reunificadas: Assim, meu tio Medardo voltou a ser um homem inteiro, nem mau nem bom, uma mistura de maldade e bondade, isto é, aparentemente igual ao que era antes de se partir ao meio. Mas tinha a experiência de uma e de outra metade refundidas, por isso devia ser bem sábio (p. 11).

Essa caricatura do uno que concentra em si virtude e vício, em medidas exatas e conflitantes, ilustra nitidamente o pensamento maniqueísta. O Maniqueísmo foi fundado na Pérsia, no século III, por Mani, também conhecido por Maniqueu, e tem como principal fundamento o dualismo absoluto. Defende que o universo está, assim, dividido em dois princípios básicos e absolutos: Luz e Trevas, ou Bem e Mal, tendo cada qual um reino próprio, que são distintos e separados entre si. O reino da luz é a manifestação do bem e do espírito; o das trevas, morada da matéria e lugar próprio de todo mal. A doutrina maniqueísta pregava um perene exercício de purificação que consistia em uma constante discriminação do bem e do mal, visando, através de uma conduta de vida reta e obediente aos preceitos maniqueus, libertar as partículas de luz aprisionadas na matéria, permitindo seu retorno ao reino da luz e, dessa forma, facilitando e apressando a separação definitiva entre bem e mal. Não podendo ser definitivamente destruído, já que é um princípio da realidade, o mal deve ser relegado ao mundo interior, o reino das trevas. Essa seria, então, a vitória maior que o bem pode almejar.

O principal nome ligado ao maniqueísmo foi o de Santo Agostinho, que durante um tempo foi um adepto de seus preceitos e, depois, um de seus mais ferrenhos detratores.

Nascido em Tagaste, província de Numídia, atual Argélia, filho de pai pagão e mãe cristã, viaja a Cártago para aprimoramento dos estudos. Lá se desvia moralmente e leva uma vida licenciosa, repleta de prazeres, principalmente sexuais. Converte-se ao cristianismo aos vinte e dois anos, vindo a tornar-se bispo em Hipona. Agostinho influenciou toda a Idade Média e fez parte do que os historiadores da Filosofia denominaram de Patrística, a filosofia dos padres da igreja. É, na realidade, uma apologia que sintetiza a filosofia grega clássica com a religião cristã. Suas experiências no campo dos estudos filosóficas foram intensas – além de seu contato com a experiência maniqueísta antes da adentrada ao mundo cristão. A questão do bem e do mal sempre foi uma preocupação em suas reflexões. Na obra Confissões, uma biografia em que contrasta sua vida de pecador com a graça divina, mas atento às preocupações filosóficas, a busca do entendimento da origem do mal é uma constante para o bispo de Hipona.

Francisco Renato de Souza
Colaborador


quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Escritos e Reflexões Sobre Arte... e Vida


Parte II

A ambivalência que mostramos diante da liberdade, principalmente quando o que está em jogo é o discurso da coletividade, por vários vieses, diz muito do que, num dado momento, nossa condição humana está expondo, ou mesmo, o que somos perante esta coletividade, indiferente de a levarmos como amarra de existência ou não.

Dessa forma, e com a colaboração de Contardo Calligaris, em artigo do Folha de São Paulo de 13/12, podemos endereçar a esse outro [que tenha valor de exemplo para nós] pedidos de ajuda e até de adoção, mas também queremos derrubá-lo. Por quê? Porque a sedução que o exemplo exerce sobre nós é vivida como uma violência que nos incita a "trair" nosso jeito habitual de ser, nossa inércia. De fato, odiamos, no exemplo, nossa própria vontade de igualá-lo. E nada como pensar o quanto a coletividade pode nos manter, enclausurando desejos e vontades, nesta habitual inércia, especialmente quando temos no outro - leia-se, no coletivo - exemplo de valores e conduta.

Pode parecer que não, mas, ao viver no coletivo, apesar de sabermos sua importância, o que mais nos interessa é mudá-lo - derrubá-lo talvez não, imagino que, dessa queda, algo ainda pior pode vir, mesmo porque estamos lidando com homens, e que têm desejos e vontades distintos; além de muitas ambições -, daí a grande preocupação em fazer com que nossa liberdade (apesar de não ser tudo o quê queremos), e em especial, nossa individualidade, possam exercer certo poderio nessa possível guinada. Todavia, aí temos um outro problema: este poderio, da forma como o exerceremos, não seria também uma nova coletividade direcionada?

Caindo então no teor da arte... como poderíamos usar metodologia tão revolucionária - até quando está entremeada de conservadorismo - para, ao menos, minimizar os males deste coletivo, e até da individualidade exacerbada de nossa liberdade? Mudando de nome, várias vezes ao longo da vida? Talvez esta última uma resposta, se não, pelo menos uma reflexão.

Afirmar a autoria como individualidade irredutível, por mais que pareça uma solução, se bem pensada, e direcionada, imagino que acaba se tornando, de fato, essa solução. Entretando, cairemos na mesma discussão do coletivo, e como os micropoderes deste coletivo podem estar muito bem amarrados, a ponto de nos colocar, de novo, em nossa individualidade, e involucrada na mesma... como acontece com muitos artistas ao longo de suas vidas.

Um outro perigo seria o fato de até mesmo a individualidade irredutível estar maquiada, sem o saber, sobre regras gerais e exteriores; assentada num pertencimento assaz discutível. É nesse momento que Henri Matisse entra com uma reflexão, de uma perspicácia fenomenal, em livro publicado recentemente pela Cosac Naify, chamado Matisse - Escritos e Reflexões Sobre Arte: É por isso [referindo-se ao fato de alguns artistas, sem o saber, estarem presos às regras de seu coletivo] que a criação, para o artista, começa pela visão. Ver já é uma operação criativa e que exige esforço. Tudo o que vemos na vida corrente sofre maior ou menor deformação gerada pelos hábitos adquiridos, e esse fato talvez seja mais sensível numa época como a nossa, em que o cinema, a publicidade e as grandes lojas nos impõem diariamente um fluxo de imagens prontas, que, em certa medida, são para a visão aquilo que o preconceito é para a inteligência. O esforço necessário para se libertar dela exige uma espécie de coragem; e essa coragem é indispensável ao artista, que deve ver a vida toda como quando era criança. E, mais que isso, ver a vida com um novo olhar: um olhar que, além de infantil, seja também coberto de esquecimento (como aqui exposto em posts anteriores).

Bernardo Carvalho, ao comentar referido livro, em artigo do dia 18/12 da mesma Folha, nos dirá: Se, para pintar uma rosa, é preciso "esquecer todas as rosas pintadas", e se "é preciso resistir sempre, custe o que custar", também se faz necessário entender que as circunstâncias mudam e com elas as características daquilo a que se deve resistir em nome da verdade da criação. E indo mais além, em nome também da verdade da vida. Pois, tão-somente a partir desta verdade é que poderemos usar de nossa liberdade, e individualidade, de uma maneira tal que nem o coletivo, com sua microfísica de poder, consiga nos açambarcar... estamos dentro sim, mas temos todo o direito de colocar nossa ousadia em nome de nossa liberdade e individualidade - e isso pode nos colocar de fora também... por quê não? -; e de nosso esquecimento, em nome de nossa sanidade intelectual e autônoma.

É preciso ter coragem para acreditar em nosso caminho, enquanto todos os demais seguem por um outro mais cômodo e coletivo. Assim podemos evitar a inércia que corrói nosso coração de ressentimento, dando-nos motivo para odiar o outro... não cabe aqui odiar, mas amar a vida de uma tal maneira que ela possa ser, realmente, nossa... independente do que o outro tem, e que muito poderia me incomodar.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Seção - Filosofia de Boteco: Dioniso Sóbrio XIV


Aforismos: Por Liberdade...

Por liberdade, pensando na multiplicidade que o mundo vem a nos oferecer, posso entender como uma necessidade, ou ainda, como um desejo de algo que é incompatível com nossa situação gregária. Pois, da coletividade é que me faço enquanto ser-vivente e, de uma forma mais tímida, também homem-livre - apesar de saber que não sou tão livre, da forma como o termo assim se me exige -, assim, nesta feitura de gente, viro gentes, viro povo... torno-me sociável. O homem social tem muito disso: uma liberdade que o obriga a não ser livre, embora saiba que seus direitos (ao menos alguns) ali estão constituídos... e nem sempre respeitados, como sabemos bem. Isso são artimanhas da manutenção de uma sociedade democrática e a tipificação de um grupo, por ela - mas primeiro por homens - idealizada. São coisas de Governo Representativo, como assim deveria ser o Brasil. Afirmação que me remete à Jonh Stuart Mill em seu livro O Governo Representativo, ainda em seu prefácio: Quando tantas pessoas obscuramente sentem a falta de tal doutrina [seria tal doutrina aquela advinda do Estado, figurado na noção de Governo, ou da Representatividade?] e somente alguns têm coragem de assumir o que obtiveram, qualquer um pode sem presunção sobre seus próprios pensamentos e com o melhor que conhecem dos pensamentos de outros, ser capaz de contribuir para a formação de tal doutrina, criando, em seu aparato de ser-em-representação, um ser-em-liberdade, visto que são pensamentos que se sustentam e se justificam num todo o qual nem sempre é somente-seu, ou compartilhado por saberes somente-seus. Pois bem, a falta de uma doutrina, tão importante e eficaz como essa, não seria uma possibilidade de uma vida em vontade? Aliás, não em vontade, mas em desejo possível? Ainda mais quando sabemos que a possibilidade de concussão de nossos desejos só se dá em coletivo, um coletivo que reforça nossa individualidade, enquanto ser desejante, e detentor de pensamentos próprios (serão nossos pensamentos tão próprios assim?). Perdendo-se no coletivo, como dirá o filósofo-professor-blogueiro Walmir, pode também se isolar na sua individualidade... dualidade assaz interessante para uma sociedade que até há muito pouco tempo, não aceitava sequer a contradição. Coisas de racionalistas modernos... Resta saber se a coletividade a qual estamos, às vezes perdidos, outras achados, dá margem para que um Governo Representativo se faça em conluio com nossa harmonia - em desarmonia. Em outro momento, Stuart Mill é ainda mais instigativo, quando dessas nossas faculdades humanas, que nos permitem construir governos representativos: As formas de governo são incorporadas a qualquer outro recurso para obter os objetivos humanos. Tais formas são consideradas no todo como um assunto de invenção e artimanha. Uma vez que elas são feitas pelo homem, assume-se que esse homem tem o direito de escolher fazê-las ou não, assim como de escolher de que modo e padrão elas serão feitas. Longe de afirmar se Stuart Mill dá sua razão ou uma opinião, o que mais chama a atenção é o fato de ele colocar o homem no centro desta doutrina de Governo Representativo, quando sabemos que, para além disso, e pensando em Michel Foucault em seu Microfísica do Poder: o poder que é visto a partir da representatividade, e que, em teoria adviu dos homens, nada mais é que a afirmação de uma mão invisível, onde um pólo de poder, tão invisível quanto, acaba por determinar as características de tal governo. Baseado nisso, penso o quanto a questão da liberdade pode estar próxima de referida construção... apenas uma reflexão!

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Escritos e Reflexões Sobre Arte... e Vida

Parte I


Em obra publicada pela Cosac Naify, intitulada Matisse - Escritos e Reflexões Sobre Arte, algumas facetas do grande mestre da pintura nos deixa, no mínimo, um pouco meditabundos acerca da condição humana, em especial quando o que está em jogo seria a normatividade de uma vida gregária e, quiçá, de uma vida gregária em arte - dizem que os artistas, de verdade, são sempre homens transgressores, mesmo quando estão afirmando o statu quo... fica aí a reflexão, para quem quiser adotá-la, é claro -, além de uma feliz discussão de situações outrora forjadas, como de plena liberdade.

Uma de suas afirmações é a seguinte: As regras não existem fora dos indivíduos; caso contrário, qualquer professor seria tão genial quanto Racine, por outro lado, tenta calcar suas reflexões em regras de um ideal "coletivo", no qual sua individualidade se dá no relato e na reflexão das obras de outros autores, daí a a afirmação da autoria como individualidade irredutível, trazendo também uma profunda queixa de como se tentou pensar, por individualidade, como constructo coletivo. Outra frase que nos coloca frente a frente com essa assertiva é: Durante toda a minha vida, me senti acuado porque não pintava como os outros. Nada como a sinceridade de um pintor que, vendo os outros, conseguiu afirmar, ainda mais, sua individualidade, bem como propôr regras coletivas à anseios individuais, tentando repensar até mesmo o forjamento de certos conceitos.

Reflexões como essas podem nos dizer muito de nós mesmos, e de nossa condição humana, em especial quando nossa vida tenta se pautar em certas regras, nem sempre tão normatizadas assim, ou mesmo, regras individuais, responsáveis por nos fazer indivíduos em coletividade. Essa constante luta entre nós-mesmos e o que poderiamos-ser, decerto, diz muito da sociedade em que estamos inseridos, e que nos constituiu, e como ela conduz suas normas e necessidades. E por necessidades, diria necessidades de afirmação gregária e social... não podemos nos esquecer que somos indvíduos em coletivo... e ainda, o coletivo tem muito dos indivíduos, principalmente quando de suas normatizações.

Muito sobre como se comporta a arte contemporânea pode nos dizer caminhos e anseios..., e isso fica bem expresso no ensaio de Bernardo Carvalho (donde tiro as citações de Henri Matisse), de nome O Novo Academicismo, publicado na Folha de São Paulo de 18/12: A arte contemporânea, em compensação [comparando-a com a arte moderna], parece cada vez mais uma "arte de professores", o que explica que muitos dos seus ideólogos volta e meia tentem derrubar o princípio de irredutibilidade individual da arte moderna em nome de um ideal oportunista de "coletivo", munidos de argumentos contraditórios, que correspondem tanto a uma equivocada reação política (o indivíduo seria uma invenção da burguesia, assim como a idéia de autoria individual) como às determinações da hora (a serviço do mercado, dão declarações tão contestáveis quanto a de que a pintura morreu ou ressuscitou, segundo tendências da moda). Pois bem, o que se nota é a invenção de uma condição burguesa (o individualismo) para forçar a coletividade de determinado sistema.

E quando a coletividade se utiliza de argumentos assim, penso que a condição humana já se deixou levar por tal referendo, deixando de ser, de fato, condição humana, plena de liberdade e numa incessante busca de afirmação de algo que ainda-não-é. Criou-se um algo que poderia-ter-sido apenas por meio de referida significação de códigos. Ou seja, o que tínhamos de mais nosso - que seria essa busca - já nos foi dado.

Nada como, provisoriamente, concluir com algumas considerações de Matisse, e que poderão nos levar a novas reflexões mui em breve: Um artista nunca deve ser: prisioneiro de si mesmo, prisioneiro de um estilo, prisioneiro de uma reputação, prisioneiro de sucesso, etc.. Não escreveram os Goncourt que os artistas japoneses da grande época mudavam de nome várias vezes ao longo da vida? Isso me agrada: eles queriam preservar a liberdade. Como, então, poderei preservar a liberdade, num ambiente em que, por si só, já se fez livre (do seu modo, é claro) para mim? Liberdade é também poder escolher que liberdade seguir: isso faz parte da verdadeira condição humana... nem que eu tenha que trocar de nome, várias vezes, ao longo de minha vida.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Nalgum Lugar de Sampa!


Em artigo publicado na Folha de São Paulo de 17/12, intitulado Demônio ex-Machina, uma constatação surpreende a alguns e a outros (principalmente para aqueles que sentem na pele - e no trânsito - referida constatação), apenas confirma o grande mal da atual geração, principalmente, habitantes de grandes cidades em países em desenvolvimento, como o Brasil. E, automaticamente, o grande mal de nossa possível condição humana - se é que alguma vez paramos para pensar a respeito. Estima-se que, entre as horas de rush, os motoristas de São Paulo, além de conseguirem empreender em seus veículos apenas 15 km por hora, ao voltar para casa, ainda estão totalmente expostos a estresse e assaltos, ou mesmo, violências no trânsito.

Um exemplo ainda mais interessante é o fato de, caso tenham ido para o trabalho de bicicleta, ou metrô - principalmente bicicleta - conseguiriam empreender uma velocidade maior em seu trajeto, chegando em casa, cada vez mais cedo, podendo usufruir de direitos básicos. E o que é ainda pior: conforme estatísticas, contando os 5,7 milhões de automóveis em circulação, todos os dias, temos uma média de 1 carro para cada 1,92 habitantes... existem mais máquinas que gente, ainda mais quando colocamos em jogo também as motocicletas.

Uma democracia em desenvolvimento, ao incluir, acaba deixando as pessoas cada vez mais excluídas, isso se levarmos em conta o artigo da Constituição Brasileira que se refere à liberdade de ir e vir... não é estranho, quanto mais incluídos no modelo de consumismo, impetrado por nosso atual direcionamento econômico-ideológico, ainda mais excluídos no que se refere sua liberdade?!

Reflexões que nos fazem pensar a importância que hoje é dada ao ser humano... ao homem e suas vontades ou valores, responsáveis por dar-lhe condição de existência. Valoriza-se por demais aquilo que, ao invés de libertar, apenas nos prende.

Quando damos conta do quanto somos livres - para consumir, principalmente -, mais escravos nos tornamos. Já dizia Chaplin em seu discurso n'O Grande Ditador, não sois máquina; homem é que sois... será que conseguimos entender o grau de importância e de aprofundamento desta mensagem? Ainda mais quando o que está em jogo é o futuro do planeta e nossa boa convivência com o mesmo?

De que adianta se preocupar com o Protocolo de Quioto, com o derretimento das calotas polares e o aquecimento global, se não sabemos nem mesmo o que nos apetece, e ainda, o que nos dá liberdade? Não sabemos mais nem quem somos, ou para que serve nossa consciência e, por conseguinte, nossa visão profunda do mundo... aliás, nem visão e/ou consciência temos tido mais...

Pobre raça humana, quanto mais evolui, mais profundamente se afunda em seus erros!

Seção - Filosofia de Boteco: Dioniso Sóbrio XIII


Aforismos: Silêncio

Pode uma sociedade democrática se eximir de suas responsabilidades, mesmo sabendo que referida exceção, quando compartilhada, acaba colocando em lados opostos, distintos anseios? Não teria ela, pois, o papel de fazer com que tais anseios, não-importando o quão divergentes sejam, se tornem convergência em maioria? Pois bem, belo intróito, todavia, apesar de estarmos diante de uma realidade assim, o que se nota, principalmente quando a questão democrática sai do âmbito da política e abarca o âmbito intelectual-ideológico, é que a divergência, e tão-somente ela, seria a única responsável por fazer valer sua máxima. Dessa feita, onde há convergência, imagina-se, a coisa sai do âmbito intelectual e cai no ideológico. Imagino que ao longo da história da humanidade esta realidade aconteceu de uma maneira assaz desmedida. Importando aqui, pois, compreender o quanto realidades históricas como essas ainda perduram, não permitindo que a divergência se mostre de maneira patente, penso que, ainda precisamos aprender muito acerca do silêncio e da divergência, em especial quando o que está em jogo são direitos e condições mínimas de um ser humano poder compartilhar e, com isso, se inserir de forma plena nesta tal democracia. Em situações em que o silêncio não é uma escolha, mas uma medida de sobrevivência é que conseguimos compreender o quão a divergência tende a ser importante para o estado democrático - e aqui retiro a política do foco e coloco a consciência no lugar. Silêncio não significa falta do que falar, mas muito a se falar, porém, em território minado. Não sabemos até que ponto nossa democracia aceita este tipo de divergência - a divergência da consciência. Que a plenitude do intelecto também possa ser compartilhada pelo silêncio e pela divergência... é dos contrários, e para os contrários, que o Tempo se mostra em sua plenitude, consolidando saberes. Numa sociedade com tanta informação - democrática - como é a nossa, nunca o silêncio nos foi tão importante.

sábado, 15 de dezembro de 2007

Seção D'Outro


Deus Existe?
Walmir Carvalho - amigo blogueiro

Escaramuças acirram discussões entre os criacionistas e os evolucionistas. Meu amigo blogueiro, Mino Carta, andou escrevendo sobre o tendepá.

Pensei, vou dar uns palpites.

Olhei no Gênesis bíblico, capítulo I: A terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo... O que me chama atenção é havia trevas sobre a face do abismo, quer dizer, não havia é nada. Um abismo em trevas não dá pra ser visto, é ou não é? Mas aí segue: Disse Deus: haja luz. E houve luz.

Seria o chamado Big Bang?

Os cientistas George Gamow, Robert Hermann e Ralph Alpher concluíram que, no início, ou seja, antes de haver universo, as galáxias estavam tão próximas que ocupavam todas o mesmo espaço – vai se entender uma miséria destas – a temperatura e densidade eram muito elevadas, e como se sabe que a tendência de tudo que é muito quente e muito e denso é de se esfriar e expandir, eles acreditaram que foi isso que sucedeu, que tudo se esfriou causando a explosão.
Bang.

Então tá. Continua o Gênesis: Deus viu que a luz era boa; e fez separação entre a luz e as trevas.

E os cientistas dizem: Na medida em que o tempo foi passando, aquela matéria explodida foi se distanciando, se resfriando e se agrupando, dando origem aos planetas estrelas e galáxias. Ficando distantes umas das outras devia ter uns lugares iluminados e outros trevosos, rapaz. Eu acho.

A Bíblia diz que isso tudo aconteceu no primeiro dia e muito crente afirma, confirma e bate o pé. Bobagem. Mas um poeta ou um cientista pode pensar dia como etapa. Poeta então pode qualquer coisa.

Aí a Bíblia dá seus pulos, fala das águas, do firmamento, da separação entre firmamento e água, que um estava em cima e outro em baixo, de manhã e tarde, essas coisas mais corriqueiras que aconteceram no segundo dia. Com um certo esforço poético, podemos pensar que aí está descrito o surgimento dos planetas de acordo com seus afastamentos e agrupamentos. Podemos, não podemos?

Deus, que nessa época andava muito bem disposto ao trabalho, disse: Ajuntem-se num só lugar as águas que estão debaixo do céu e apareça o elemento seco. E assim foi. Deu os nomes de terra e mar para os ajuntamentos e ficou satisfeito. Ficou mesmo, está lá no Gênesis. Ele sempre aprovou sua própria criação, viu que era boa. Só muito tempo depois deu de ficar chateado com algumas, afogou, queimou, virou-as em sal, mas no todo ficava satisfeito.

Mais um esforço poético científico e podemos ver que os planetas – a terra em especial – começavam a ter uma cara desmisturada.

Apreciando aquilo o Supremo disse – disse porque gostava de falar sozinho, nem precisava, mas era o modo d’Ele e não critico, pois minha mulher também fala sozinha – Produza a terra relva, ervas que dêem semente, e árvores frutíferas...

Se o planeta já estava desmisturado, podia receber vida, claro.

Mas aqui tem uma complicação: Deus só criou o sol e a lua depois de plantar a grama e as árvores frutíferas. Como é que planta nasce sem sol? Não nasce. Minha opinião é que foi erro de quem escreveu. Inverteu o terceiro com o quarto dia. Acontece.

Depois ele – o narrador – acertou, pois já com o sol e a lua Deus ordenou: Produzam as águas cardumes de seres viventes; e voem as aves acima da terra no firmamento do céu... Criou... todos os seres viventes que se arrastavam, os quais as águas produziram abundantemente... E viu Deus que isso era bom.

Rapaz, isto foi no quinto dia que nós, cientistas e poetas, podemos chamar de épocas.

Assim: o planeta melhorado, as plantas, a bicharada das águas.

Faltava o quê? Animais terrestres. Produza a terra seres viventes segundo as suas espécies: animais domésticos, répteis, e animais selvagens segundo as suas espécies. E assim foi. Tudo no bla-bla-bla, que a palavra é criadora ainda hoje. E por último: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; homem e mulher os criou.

É desse jeito, bem parecido, que os cientistas acham que foi: Átomo primordial, Big Bang, Separação e distanciamento, condições de vida geradas pelos corpos celestes em suas fúrias físicas, uns princípios de vida, evolução(?) até o top de linha, ecce homo.

A briga dos criacionistas com os evolucionistas está mesmo é no façamos o homem à nossa imagem e semelhança, pois se concordassem com Darwin, Deus seria mais parecido com um macaco, e eles não aceitam isso.

Se aceitassem teriam que admitir que Deus evoluiu também, o que seria impossível.

No mais é questã de opiniães.

Se Deus existe, coisa que não se pode provar, deve andar distribuindo por aí alguns pequenos benefícios e calamidades – pequenos na terra em relação ao universo – se não existe, coisa que também não se pode provar, os crentes têm boa imaginação.

Bom, pelo menos têm alguma imaginação.

Eu me mantenho agnóstico. E você?

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Seção - Filosofia de Boteco: Dioniso Sóbrio XII


Aforismos: Interpretação


Me llaman el desaparecido, que cuando llega ya se ha ido. Pois bem, o quê dizer de uma letra de música, quando essa música, por mais que coloquemos algum teor particularizado na mesma, transborda nosso limitado mundinho interpretativo e cai na boca de gentes, com informações as mais heterogêneas? O quê dizer, então, de um poema, uma prosa literária que, quando transbordada de lirismo de nossa pena, saindo deste grilhão, alavanca uma série de novas interpretações, nem sempre tão líricas assim? Ou ainda, o quê dizer de uma película que, ao questionarmos seu diretor sobre sua forte iniciativa política, ele vira para ti e diz: que nada, apenas homenageei uma antiga namorada!? Estranho tantas informações sobre o prisma de uma construção simbólica qualquer, como esta do desaparecimento a lá Manu Chao (cantor franco-espanhol que acaba de lançar seu mais novo álbum - La Radiolina - em São Paulo) e que nos brinda com a seguinte assertiva, ao se referir às várias traduções que suas letras despertam: (...) não me importo com as leituras e interpretações que estão além do que escrevi. Isso é o bonito de fazer música. Saber que as pessoas entendem outras coisas a partir de suas idéias. Ainda mais quando o que está em jogo são os significados decorrentes de cada construção imaginária, donde qualquer obra de arte faz eco. Este eco, por mais que o pensemos como tão-somente nosso, nos esquecemos que qualquer um pode entender o quê quiser de uma certa informação, pois sua vida foi diferente daquela vivida pelo produtor da obra de arte. Como também, suas significações - e construções - de mundo são diferentes, seu universo é distinto e, principalmente, sua tipificação identitária lhe é muito peculiar; e a seu grupo social também. Por mais que uma letra de música, uma película, um poema, ou ainda, uma pintura - esquecida no tempo, e rememorada por algum merchant - pareçam com a cara de seu dono, sua flexibilidade, devido aos vários olhares que por ali debruçaram suas lágrimas, faz com que uma cara de outrora se metamorfoseie numa cara de agora. Este é o segredo da humanidade saudável: saber ler sua vida numa obra de arte que não pertence a seu universo... ao menos, não num primeiro momento.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Exclusão Social - Uma Reflexão!


A exclusão surge quando tomamos consciência do eu

Pode-se dizer que a exclusão social passa a existir quando o homem se põe a viver em grupo. A partir do momento em que há a montagem de uma célula social há a diferenciação. O primeiro sintoma da exclusão social é a diferença; apenas nos socializamos quando escolhemos um grupo. O próprio ato de escolha já é um arquétipo de exclusão social, pois é aí que tipificamos nossos hábitos.

Para se escolher participar de um grupo social, automaticamente, levantamos algumas características em comum, do outro para conosco. Caso não consigamos fazer este levantamento, o outro torna-se, de fato, um outro-do-lado-de-fora de nosso grupo escolhido. Todo aquele que foge a essa escolha, consequentemente, está fora de nossos tipos ideais. A tendência de buscar tipos ideiais é o primeiro sintoma de nossa exclusão social, ainda no seio de nossos grupos de diferenciação - ainda mais quando sabemos que o tipo ideal nada mais é que, uma ilusão daquilo que não podemos ter, sem jamais atingirmos.

Um indivíduo que não faz parte daquilo que considero ideal é um indivíduo que não reconheço; assim se dá o discurso dos grupos que, de forma automática, acabam criando seus tipos de gregariedade, bem como seus tipos ideais.

Assim, a exclusão pode vir a partir das idéias distintas, de hábitos distintos e de modos (sejam eles da vestimenta, sejam da materialização de nossa individualidade), também, distintos. A escolha e, por conseguinte, a personificação de nossos gostos, é o primeiro passo para que excluamos o diferente. Há que se pensar numa solução?

Imagino que sim, todavia, só acontece quando reconhecemos a alteridade do outro. Reconhecer esta alteridade é ter em mente que o outro é diferente, embora participe de nosso (mesmo) grupo social.

Enfim, e não por fim, quando dizerem por aí que é o sistema e a sociedade que excluem... bem: em partes sim, só não não podemos esquecer que fazemos parte dessa sociedade, por isso, nela nos inspiramos para nossas ações e gestos. Ou seja, ela é o reflexo do que, interiormente, somos - ou do que queremos ser, como acontece em muitos casos.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Seção D'Outro


Não incorrer em anacronismo foi êxito do historiador Caio Prado Jr.
Por Carolina Justo

Entender o sentido da colonização brasileira é o grande tributo intelectual para a história do país creditado a Caio Prado Jr.. Mas esta não foi sua única contribuição. Ele tinha sensibilidade para o problema do anacronismo, destaca o historiador Fernando Novaes, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade de São Paulo (USP). Caio Prado Jr. não caiu no pecado de, anacronicamente, partir da história de Portugal para explicar a história do Brasil, como se fosse mera extensão dela.

A história da colonização é a história de Portugal e a pré-história do Brasil ao mesmo tempo. E o problema está no ‘ao mesmo tempo, afirma Novaes. É verdade que a colônia brasileira foi parte da metrópole portuguesa – e é como os portugueses tendem a vê-la –, destaca Novaes, mas, contra-argumenta ele, para se tornar nação precisou se rebelar contra a metrópole; precisou negar a metrópole. Novaes fez essa análise na conferência de abertura de um seminário em homenagem aos 100 anos de Caio Prado Jr. O seminário aconteceu em outubro no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, e foi organizado pelo Centro de Estudos Brasileiros (CEB).

Crítico de uma nova geração de historiadores que costumam utilizar de modo descuidado conceitos criados contemporaneamente para narrar o passado – e com isso incorrer em anacronismo –, Fernando Novaes enunciou análise inovadora sobre a obra de Caio Prado Jr.. Não incorrer em anacronismo teria sido um de seus grandes êxitos historiográficos.

O problema do anacronismo na história do Brasil, explica Novaes, começa na viagem de Cabral e na descoberta. O Brasil não estava encoberto, como é que foi descoberto?, pergunta ele em tom brincalhão e ao mesmo tempo provocativo. Para ele, a viagem e a descoberta não fazem parte da história do Brasil, mas da história de Portugal. O problema do anacronismo na história do Brasil, avalia ele, é que a ela foi incorporada a história de Portugal, e com isso foram acrescentados à nossa oito séculos de história.

Durante o seminário, foram expostas diversas fotos tiradas por Caio Prado Jr. e que fazem parte do acervo da biblioteca do IFCH. Cenas comuns do cotidiano brasileiro. Segundo as legendas, as visões do Brasil capturadas por Prado Jr. demonstram sua paixão pelo Brasil. Por isso ele teria tratado da especificidade do Brasil: porque o Brasil era sua preocupação. Para entender a especificidade da colonização brasileira, ele tomou como objeto de estudo a colonização em geral. E foi este recorte, explica Novaes, que permitiu a ele romper com as perspectivas anacrônicas e desenvolver a problemática que resultou no estabelecimento do sentido da colonização.

O foco no Brasil, na análise de Novaes, também foi decisivo em outro aspecto para o historiador Caio Prado Jr. Ele era um historiador marxista, e não um marxista historiador, pontua ele. O assunto era o Brasil; o marxismo era a ferramenta. Segundo contou Novaes, certa vez perguntaram a Prado Jr. por que, sendo ele um marxista, não seguia a cartilha. Ele então teria respondido que era o seu objeto que conduzia a sua escolha, e não a sua escolha que conduzia o seu objeto – ou a sua percepção do objeto. Para Novaes, esta é uma lição importante: Prado Jr. soube dialogar com as ciências sociais.

Este diálogo não existia na historiografia tradicional, até porque as ciências sociais não existiam institucionalmente. A historiografia moderna dialoga, mas por vezes de forma problemática, avalia Novaes. O historiador tem que saber historicizar conceitos, para não criar anacronismo, explica. Ele pode usar os conceitos na dimensão explicativa, mas não na narrativa. O problema é que na história essas coisas estão juntas. E é por isso que é difícil, e é por isso que é interessante. Na síntese de Fernando Novaes, a história é narrativa e, sendo narrativa, é analítica. Para ele, Caio Prado Jr. conseguiu narrar a história do Brasil analiticamente.

O sentido da colonização

O sentido da colonização aparece no princípio do livro Formação do Brasil Contemporâneo. Nele, Caio Prado Jr. explica que a colonização funcionou como uma empresa comercial complexa. Ela visava atender aos interesses mercantis da expansão marítimo-comercial européia, que se estendeu pelo século XV e seguintes. Foi por isso que a sociedade e a economia brasileiras foram organizadas e estruturadas com base na produção agro-exportadora de larga escala, caracterizada pelo latifúndio, pela monocultura e pela escravidão. A tese de Prado Jr. é a de que a colonização tomou este rumo devido aos interesses comerciais da Europa, aos quais o Brasil era submetido.

domingo, 2 de dezembro de 2007

Seção - Filosofia de Boteco: Dioniso Sóbrio XI


Aforismos: Mais Futebol, Menos Exclusão

No dia do encerramento do Campeonato Brasileiro, Série principal, onde a elite luta com maestria e bravura para melhorar a vida dos brasileiros-torcedores, após a morte de 7 pessoas no estádio da Fonte Nova em Salvador, finalizando o ciclo da várzea (ao menos, imagino, é assim que a CBF encara a Série C) do Campeonato Brasileiro, com duas novidades no ar, uma nem tanto, e outra, com certeza mais evidente; a grande questão que se levanta é o ponto de como um esporte de massa pode servir de interesses financeiros, ou mesmo políticos, e até matar pessoas. Já, com relação a estas novidades, o Brasil sediando a Copa do Mundo de 2014 (candidatura única, diga-se de passagem, por isso a não tão-novidade) e o Lanús (37 pontos), dependendo apenas de um empate diante do Boca Juniors, fora de casa, e o Tigre (34 pontos) disputando a final do Campeonato Argentino - chamado por eles, também, de Clausura - como possíveis (pela primeira vez, ambos) campeões do Argentino - e pensar que o Tigres veio da Segunda Divisão do Clausura, na Temporada passada. Pois bem, não foi sobre isso que me propuz a falar, mas especificamente sobre como a organização do futebol pode servir para a exclusão e/ou para a morte daqueles que mais se interessam por este esporte, os menos favorecidos financeiramente, e sua paixão desmedida, repsonsável incluise por fazer estas pessoas esquecerem as mazelas que convivem diuturnamente. Passando pelo Brasil, o filósofo português Manuel Sérgio (74 anos), mestre do badalado técnico, também português, José Mourinho, fez a seguinte afirmativa, referindo-se ao desastre da Fonte Nova, publicado no Folha de São Paulo de 02/12: O que aconteceu foi um desrespeito, prova de que o povo está em último lugar. O futebol é um espetáculo de massa, para o povo. Precisamente por isso não me admira que não haja consideração para com esse público. "Uma tragédia atingiu o povo? Então não há problema, não conta". É esse o pensamento dominante em uma sociedade vertical, hierárquica. Pois bem, nunca um português compreendeu tão bem o Brasil como Manuel Sérgio, e isso ainda se referindo ao futebol, máquina de alienação nacional... grande ironia. Apenas fica a certeza: o Brasil, todos sabemos, mantém esta estrutura há séculos; como, mesmo diante de uma situação dessa, não se pensa em quaisquer soluções? Apenas prova o que estamos cansados de saber: querem que o futebol continue sendo objeto de alienação e massificação... as consequências disso não vem ao caso... vai morrer um bando de alienados mesmo!!!! Triste conclusão de alguém que se dispõe a sediar a melhor copa do mundo de todos os tempos(!): ao menos foi isso que disseram no dia da escolha sem concorrente!

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Ainda um Tempo Factual ... 200 anos atrás!


Dei à Inglaterra o direito de estabelecer com os Brasis relação de soberano e vassalo e de exigir obediência como preço da proteção, assim se refere ao Brasil, recém-incluído, como sede, ao Reino Unido de Portugal e Algarves, no dito do embaixador inglês Strangford, como consta em crônica de Rubens Ricupero, na Folha de São Paulo, do dia 25/11, ao se referir à Revogação da Abertura dos Portos, justamente agora que estamos prestes a comemorar 200 anos do desembarque da família real portuguesa por aqui, fugindo de tropas napoleônicas.

Mas, e aí, o quê isso tem a ver com o Brasil de hoje? Já não temos uma situação bem definida, do ponto de vista político, com relação à este evento? Imagino que já tenhamos sim, mas o que mais chama a atenção é o fato desta abertura dos portos ter ocasionado um desequilíbrio de impostos nunca visto em terras brasileiras (a não ser por estes idos de hoje, onde temos uma carga tributária que está bem juntinha à metade de nosso PIB), a ponto de colocar nossos patrícios - Portugal - numa situação desprivilegiada, com relação à enorme Inglaterra, então sede do mundo.

Só para se ter uma idéia, todo produto britânico que entrasse em terras Tupiniquins, tinha uma tributação de 15%, enquanto os produtos portugueses (e olha que éramos, principalmente a partir de tamanha comitiva, quase que plenamente portugueses, ao menos assim o era a população do Rio de Janeiro) de 16% e do restante do mundo, 24%. Já parecia exorbitante, para um país - Pindorama - com nenhum tipo de manufatura, que seja para satisfazer as necessidades mais prementes de nossa gente.

Neste exato momento de nossa história, o Brasil pertencia, finalmente, aos ingleses; desejo intermitente e que, de longa data, era acalentado pelos súditos da Coroa Britânica, como afirmara o historiador português João Lúcio de Azevedo: Ficava na prática derrogada a abertura dos portos a todas as nações e o Brasil pertencia de fato aos ingleses, como sempre tinham ambicionado.

Agora, um pouquinho de presente; pensando em tempo não tão remoto, poderíamos dizer que o Brasil se encontra refém de alguém, ou alguma coisa, nos dias de hoje? É a grande questão que se levanta quando do admitir de que uma tal de CPMF não seja aprovada. Mas, esta discussão eu deixo para outro, voltemos às comparações de Ricupero, e qual sua exemplificada história para contemporizar sobre dias de século XXI: O olhar contemporâneo sobre esse episódio da história ajuda a desmistificar armadilhas atuais. Compare-se o tratado de 1810 com a Alca (Área de Livre Comércio das Américas). Ambos falam de comércio livre, mas concedem direitos preferenciais. Nenhum dos dois ofereceu reciprocidade. Os britânicos proibiam a importação de açúcar, café e produtos brasileiros concorrentes de suas colônias. Os americanos não aceitam abrir o mercado para o suco de laranja ou o álcool, que concorrem com a Flórida ou Iwoa.

Parece que a história teima em se repetir, mas o que mais se evidencia, em situações como essas, é que o Brasil teima em fazer a mesma coisa sempre, sem uma mudança mais profunda... mas não tem problema não, dizem por aí nas vantagens da concorrência, apenas se esquecem das personagens: quem está concorrendo com quem? Pobres contra ricos, sem-condição contra com-condição? Será este o benefício do capitalismo?

Oferecem a concorrência e dizem que é boa para o desenvolvimento, mas se esquecem de oferecer a todos, de forma igual, condições para essa concorrência!!!

P.s.: Para uma melhor discussão da ALCA, confira artigo completo: http://br.monografias.com/trabalhos/projeto-alca/projeto-alca.shtml, também de minha autoria.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Por e Sobre Literatura...


A literatura quando escrita a partir de escritores tais como Dostoievski, Tolstoi, Milan Kundera, Balzac (isso só para se falar de alguns, entre tantos), dentre outros, tende a apresentar um certo enunciado do que poderia ser a história da condição humana, ou mesmo do psicológico de um tempo. Dessa forma, mais que literatura, seu espólio é uma caracterização de vida e pensamento.

A própria noção de Tempo, a partir da literatura, tende a ganhar significação e grandeza, quando de escritos bem emendados.

A sociedade humana, que em tal Tempo tece suas relações sociais, dá-nos a dica de tipos e feições que poderiam ser apreendidos, ou ainda congelados, em referido Tempo. Revelando um painel que, por mais que pretendesse ser apenas literário, é também histórico-psicológico..., diria mais, humano(!).

Cria-se, aliás, arrebenta-se um limite que não se mantém encarquilhado em páginas amarelecidas, de escritos rotos. Cada escrito conceitua uma verdade, e determina certa feição de Tempo. Um embrião iniciado no tumulto do século XIX, e que geraria, com propriedade, a moderna sociologia. São tipos e grupos que se degladiam entre si, tentando determinar - às vezes impôr - seu cadinho de verdade e de existência.

É como se uma existência se fizesse em si mesma, tentando se auto-afirmar e criando, para si, sua própria condição de ser existente, isto é; seu próprio Tempo se auto-devorando, para assim passar a ser o espírito do Tempo.

O disfarce à imprensa, permitido pela literatura, é um disfarce que mascara, aliás, que veste bem a vida. É uma imprensa às avessas, que usa da imprensa para roubar-lhes pingos de existência. Dirá, muito bem Balzac, em sua Monografia da Imprensa Parisiense: O jornal é o jornal e o político é o seu profeta, emendando Balzac; o jornal é o jornal, senhor característico e factual do Tempo, e a literatura é o seu profeta, adulador, subversivo e revolucionário disfarce. Continuando Balzac: Ora, os profetas são profetas muito mais por aquilo que eles disseram. Não há nada mais infalível do que um profeta mudo.

O constante falsear, às vezes o calar, característico da literatura, é que garante a concreção existencial de um Tempo: O verdadeiro panfleto é obra do mais alto talento, se todavia não for o grito do gênio, ou mesmo o silêncio do louco.

Qual profeta não quer ver suas profecias tornadas verdade? Duvido que exista algum que não queira. Pois seu Tempo se constrói por meio de seus escritos e devaneios. O abrir-se para o mundo, seja no grito colérico, seja no silêncio lapidar, é o mesmo mecanismo que dá à verdade o que ela tem de mais seu, e de mais convicto: o Tempo, e a sublimação de uma verdade neste Mesmo.

Por outro lado, a literatura da imprensa, com sua técnica do disfarce permitido, tem o grande problema do papel. Enquanto no mundo virtual dos bytes, essa literatura se sublima - e ao mesmo tempo se torna fugaz e minúscula, devido a infinitude de referido espaço virtual -, nas páginas de jornal - apesar de ser um Tempo apreendido, factual e real - ela se substancializa, embora, dentro do espaço que lhe é seu quinhão permitido. Dirá Balzac mais uma vez: As coisas mais interessantes, os grandes e pequenos artigos, tudo se torna uma questão de paginação entre meia-noite e uma hora da manhã, a hora fatal dos jornais, hora na qual as notícias aparecidas no início da noite exigem destaque. O que contemporiza a verdade, repito, é o Tempo. O que torna esse Tempo concreto é a escrita das folhas de jornal. O que faz das escritas o que são, é de novo o Tempo: seja a falta dele, seja esse(s) espaço(s) que o mesmo incorpora. Infelizmente, corroborando Balzac, a crítica se tornou uma espécie de alfândega para as idéias, dando à literatura o papel de representante consular destas idéias e ao Tempo o juíz que imputa a sentença. Felizmente, existem obras imortais, não dando à mínima para o Tempo... e esse é também papel da Literatura: traço concreto de pinceladas vigorosas de um imenso mural da sociedade, centro captor da unidade da condição humana... apesar de tantas motivações (sejam elas quais forem)! Cada um bica de acordo com sua fome...

domingo, 25 de novembro de 2007

Seção: Filosofia de Boteco - Dioniso Sóbrio X

Aforismos: Sobre Deus e Tempo (mais Homens)

Diz-se que de Deus e Tempo não se pode falar. Que a cronologia poderia muito bem ser uma criação humana para se igualar a Deus, e que o Tempo, na mesma medida, uma humanidade eterna. Daí pensar que o novo possa vir de cá ou de lá... do lado de cá do Hades - terra de Homens - e do lado de lá do Hades - terra de Deuses -, apesar do que, por novo, apenas a criação em terra de Homens, que leva aos Deuses. Ainda assim, vários teólogos, ao discutirem sobre os mistérios destes dois mundos, trazem para a cena o lado humano, apromorfizado para se tornar lado deificado; e para isso o teólogo A. Torres Queiruga também nos dá uma resposta (tentando, talvez, responder coisas do lado de lá do Hades): tendo em conta o enriquecimento do conhecimento do real trazido pela ciência, [a Teologia] reelabora a partir de si mesma e na sua lógica específica os seus próprios conceitos, e cria um Tempo em que os Homens possam falar de Deuses sem a possível prerrogativa de não se esquecer deste lado de cá. Pensa-se com cabeça de ciência para se falar com idéias de teologia. O Tempo que deste remarque surge é um tempo em que os homens, falando de lá, acabam por se eternizarem de cá. E isso pode ser acompanhado junto às palavras do filósofo Luc Ferry: Como todos os crentes, tenho, sem dúvida, o sentimento de que há um mistério neste mundo. Mas não desejo ir além desta constatação. Por constatação humana e temporal há que se pensar, de forma deificada, que os mistérios ainda persistirão, e que os homens também estarão por aí, pensando sobre o Tempo. Sintomático para nos dar a justa medida de como os homens precisam ser homens, no meio de deuses. Outra possível resposta a este mistério vem do filósofo M. Conche que acaba de escrever que Deus é inútil, pois a própria Natureza cria seres que podem ter idéias de todas as coisas, inclusive da própria Natureza, e essa Natureza só pode existir como espaço temporal do homem junto à humanidade falível, que se esvai, embora possa se eternizar no Tempo. Não se trata, porém, da natureza oposta ao espírito ou à história ou à cultura ou à liberdade, mas da Natureza omni-englobante, a physis grega, que inclui o Homem nela. Essa é a Causa dos seres pensantes no seu efeito. Estes são os homens, se vestindo aos moldes do Olimpo. Outro filósofo português, de nome Anselmo Borges - também padre e teólogo - dirá, por outro lado, como o mais convicto dos crentes: Ao crente monoteísta parece mais razoável uma interpretação da realidade que co-implica a presença do Deus transcendente, amor pessoal e criador. Afirma-se desse modo a infinita transcendência de Deus e a sua mais íntima presença à criatura, tornando-se então claro o que parece paradoxal: precisamente porque Deus está sempre presente como criador, faz o mundo fazer-se autonomamente, seguindo as leis próprias da natureza e a liberdade. Pode ser que o Homem também pense na Natureza que o faz eterno, pensando do lado de lá, aplicando deste lado de cá. Deus faz o mundo aparecer de forma autônoma, seguindo as leis próprias da natureza e a liberdade, daí implica que Deus dá ao Homem (ou será que é o Homem que assim o quer?) condições de, junto ao Tempo, manter-se eterno... que Tempo?

Seção: Filosofia de Boteco - Dioniso Sóbrio IX


Aforismos: Cronologia

A idéia de novo, intriga de tempos imorredouros, diria até, do tempo dos deuses, é uma idéia que, apesar de sua pouca ou quase nenhuma percepção, devido, talvez, o grau de consciência que direcionamos sobre o tema, ou ainda, o nível externo que venha a confirmar este novo, por mais que nos ronde, nos incomode, e até nos faça meditar, sempre virá acompanhada de uma cronologia que, não necessariamente faz parte da gente e, no entanto, a nós foi deixada de herança para continuarmos sua jornada. O pequeno problema que disso advém é o fato de que, por mais que seja uma herança maldita - como em alguns casos acaba sendo - é sempre uma herança presente. A partir do momento em que o novo, a essa herança se incorpora, passamos a nos dar conta pelo tanto que isso venha a ser insignificante, ou até mesmo, o quanto o grau de conhecimento e discernimento deste novo possa ser, também, uma ilusão; como de resto grande parte de nossos anseios e, mesmo nossas preocupações, também o é. Para Heráclito, logo após, corroborado por Vico e Nietzsche (ambos estes dois últimos, questionadores do tema História, e sua infinitude de valores), a ilusão foi o primeiro sintoma de existência, de que o homem sabia que existia mais alguma coisa do lado de fora de sua caverna - se é que algum dia isso foi morada peremptória - que a mera escuridão de uma vida em família, ou em grupo. Juntamente com esse mistério, descobriu também o quanto a ilusão lhes fora importante para desenvolver certo raciocínio, seja ele mágico ou mesmo racional (sou da idéia de que ambas fazem parte de um todo um bocado ainda maior, e que há a necessidade de uma constante intromissão dum no outro, para que o mundo venha a se valorar, e até existir; imagino que fora por isso que criaram o tempo), e que deste raciocínio quanta coisa nova surgira(!). Pois bem, penso sim - e chego a asseverar, ao menos no atual momento, é claro, pois o novo pode vir a me subjugar - que são as ações do homem em seu dia-a-dia que acabam por criar valores e, consequentemente, por criar história. Diria até: história é uma consecução e um constructo de valores que nos amontoam dentro do armário, e de tão cheio acabam por transbordar... é onde aparece o novo... pequenos fragmentos de valores outrora criados e que não foram muito bem vistados - ou aproveitados - por nós.... seria uma miragem?

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Notas Sobre o Passado

Um adendo a "Sobre História... e Otras Cositas Más"

Quando evocamos o ditado "Tudo vai passar" (a la Tchecov), a primeira afirmação que nos acomete é a de que o passado sempre aí esteve. E de uma forma ou de outra - mesmo que não queiramos -, assim voltará. Talvez diferente, talvez o mesmo. Sempre haverá lembranças que nos evoquem o que somos, e como a isso não conseguimos fugir. Daí, são essas lembranças que manterão vivas nosso passado... e o que dizer, então, do esquecimento, quando o passado que temos não é o que fizemos?

Quando traçamos, ademais, uma linha que nos vincule à modernidade que este passado forjou, resta a garantia, ao menos para a modernidade, de que a História não será diferente. Mas, queremos realmente a diferença? Ou será que o passado (e nossas lembranças por ele desencadeadas) não estaria sempre assumindo um limite para o que deveríamos lembrar?

A partir disso, um outro assombro: a modernidade quer nos mostrar o caminho. Mas pensando que este caminho viera pelo passado, o que, então, mostrar a nós? Diz-se, ainda baseado na modernidade, que a tendência é fazer com que, nela - a modernidade -, os indivíduos poderiam definir suas potencialidades.

Que potencialidade é essa que nos faz, ao invés de escolher, sermos escolhidos por nossas lembranças?

E nossas lembranças, por que ainda continuam a partir de nossos subterrâneos? Como fazer, para dessas lembranças, bem ou mal, trazer as vivências que mais nos formaram e nos transformaram? E que formações gostaríamos que fossem nossas?

Está aí um imbroglio difícil de ser solucionado. Às vezes por faltar-nos controles de nossas lembranças, outras vezes por nos trazer lembranças subterrâneas, há muito recônditas.

Nesse momento entra em cena um outro elemento: o quê fazer da tradição, advinda do passado - e de nossas lembranças -, e formadora do que viria a ser a modernidade? Essa que, segundo consta, tenta desenvolver as potencialidades do indivíduo?

Contardo Calligaris, no ensaio 'O Passado', da Folha de 01/11, assim dirá: Mas se o legado da tradição se torna menos relevante, é justamente porque o que me constitui é minha história - não apenas a intensidade do momento e a audácia de meus planos, mas o conjunto das experiências que vivi. Bem, e daí?, as experiências que vivi, conforme as lembranças que omiti, teriam tanta coesão psicológica - e até histórico-filosófica, visto que somos o montante, e a consequência, dos erros vários de nossas gerações precedentes - para determinar o que eu poderia ser a partir do presente tênue que me re-faz constantemente, e a cada instante?

As revoluções são sintomáticas para melhor entendermos isso. Elas surgem, quando despontam do fogo, com a intenção de botar tudo abaixo (vide o exemplo da Francesa, que pensou, inclusive, em mudar o tempo, aliás, a contagem do tempo - seria o tempo tão vigoroso assim, como imaginamos?) e, das cinzas, sem usá-las, é claro, construir algo novo.

No entanto, quando surgem vigorosos debates acerca de como fazer isso, alguns vestígios acabam sendo poupados, inventando com isso os museus públicos, e as lembranças deles advindas... poucas décadas depois da Revolução Francesa nascem os conceitos de patrimônio histórico e de preservação de monumentos, surgindo, com isso, grande interesse pela narração e compreensão da História...

Como conquistar o novo sem se desvincular do antigo, do velho e do passado... e ainda, até de nossas lembranças?

Reminiscências de outrora...

Seção: Filosofia de Boteco - Dioniso Sóbrio VIII


Aforismos: Doctor Suresh

É a habilidade do homem de lembrar-se que nos diferencia, como também de esquecermos que nos individualiza na espécie. Nós somos a única espécie que se preocupa com o passado, e precisamos fazer deste passado um novo presente, ou até um novo passado para as necessidades do espírito. Nossas lembranças nos dão voz, mostrando-nos, também, que podem nos deixar roucos; com gritos que tentam dizer vida e liberdade. Elas testemunham a História para que outros possam aprender e, com isso, reinventar seus quotidianos, ensinando-nos a esquecer deste passado quando o mesmo não convém à espécie, e à liberdade do espírito. Para que possam celebrar as nossas vitórias e nos advertir sobre nossos fracassos, ensinando-nos a deles nos usufruirmos. Existem várias formas de definir nossa frágil existência, e a memória, além de definir nossa frágil existência, também define a linha da História e o liame constante que a humanidade tem passado. Várias formas de dar significado a ela, significando assim uma nova-nossa-vida. Mas são nossas memórias que dão forma ao seu propósito, e dão contexto a ela, fazendo da História algo mais que fatos envoltos em bolor e pó. Os sortimentos particulares de imagens, medos, amores e arrependimentos, dando-nos nossa humanidade necessária, também nos torna titânicos. Por essa cruel ironia da vida é que estamos destinados a manter a escuridão com a luz. O bem com o mal. O sucesso com a decepção. Isso é o que nos separa, o que nos torna humanos. E no fim, temos que lutar para nos sustentar. Mesmo sabendo que a convivência destes opostos não nos é uma dádiva mui benquista.

Seção: Resenhas


:: A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos - Friedrich Nietzsche
Por: Hugo Santos

Nietzsche começou pela filologia clássica. Na verdade, terá antes sido da tensão entre filosofia e teologia que tudo surgiu; foi, porém, o estudo dos clássicos e o seu ensino que o filósofo primeiro levou a cabo, antes de se «tornar ele mesmo», para usar a bela formulação concisa de um especialista. Nomeado para lecionar a cadeira de Filologia Clássica na Universidade de Basileia, ainda antes de ter completado vinte e cinco anos, Friedrich era já um classicista de alguma força, tendo, à altura, já publicados alguns trabalhos – pelo que Leipzig lhe atribuiu o doutoramento sem que o jovem Nietzsche tivesse sequer de prestar provas. Durante dez anos, F.N. ensinaria em Basileia, segundo se crê, com sucesso, a cadeira para que fora nomeado. Curiosamente, apenas desempenhou funções na área da filologia, nunca no domínio que o tornou célebre, e nem tão-pouco era diplomado em Filosofia. Foi após ter deixado as aulas que começou a fase mais marcadamente de filósofo de Nietzsche.

Foi, portanto, antes, em 1873, que Nietzsche deu por concluído o manuscrito de A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Trata-se de uma obra de juventude (não esqueçamos os vinte e nove anos do filósofo), que, juntamente, com O Nascimento da Tragédia (publicado um ano antes) – que os nossos escolares ‘aprendem’, ou ‘aprendiam’, já não sei ao certo –, recolhe parte (sublinhe-se: parte, uma vez que mais há a conhecer, e apenas desta fase da sua obra me ocupo) dos seus inovadores trabalhos em torno dos Gregos. O Nascimento foi recebido com desprezo e perplexidade, pela sua metodologia heterodoxa e orientações francamente contrastantes com as práticas então correntes. No entanto, não esqueçamos, respigando as palavras de R.J. Holingdale, que «Mais consequente do que a sua influência sobre os estudos gregos foi a influência que os estudos gregos nele tiveram. O seu efeito mais geral foi o de lhe terem demonstrado que uma grande civilização – a maior, na verdade, como ele viria rapidamente a considerar –, poderia ser construída em bases morais totalmente diversas da cristã; e que a moralidade cristã não era a única.» Este pequeno trabalho é disso um índice notável. Nas suas breves páginas freme o poder avassalador da criação ensaística do jovem autor – «Esta tentativa de contar a história dos filósofos gregos mais antigos distingue-se de outras tentativas semelhantes pela sua concisão.» (p.13), nos dirá ele próprio. O modo como apresenta os filósofos gregos é não só entusiasmante, mas pleno de ensinamentos ainda hoje, parece-me, perfeitamente atuais – «é provável que jamais um homem [Heráclito], em tempo algum, tenha escrito de um modo mais claro e mais luminoso. É verdade que se trata de um estilo muito lacónico e, por isso, obscuro para leitores muito apressados.» (p.51) «O pensamento de Parménides nada tem do perfume embriagador e sombrio do pensamento hindu, que talvez não seja completamente imperceptível em Pitágoras e em Empédocles» (p.69) É, além disso, um raro momento de fruição e de aprendizado, o contato com o que teria sido objeto de leituras públicas do jovem Nietzsche – «Heraclito de Éfeso surgiu no meio da noite mística que envolvia o problema do devir de Anaximandro, e iluminou-o com um raio de luz divino: "Contemplo o devir"» (p.39).

A sua abordagem dos pré-socráticos (ou «pré-platónicos», nas suas palavras) – «Tales, ao expor a representação da unidade pela hipóteses da água, não superou o nível muito baixo das teorias físicas da sua época» (p.27) – revela toda a sua capacidade de estabelecer relações proveitosas entre sistemas filosóficos e filósofo a filósofo. É, no entanto, sobretudo em Heráclito que pousa a atenção de Nietzsche. E é porventura em torno do filósofo que ri – na formulação clássica de Juvenal – que se tecem as mais fecundas e interessantes reflexões do filósofo – «A sua [de Heráclito] concepção do tempo, é, por exemplo, a de Schopenhauer, para o qual cada instante do tempo só existe na medida em que destruiu o instante precedente, seu pai, para ser ele próprio também destruído» (p.41).

A juventude do autor intensifica a iconoclastia e informadíssima rebeldia que haveria de animar o conjunto da sua obra – (p.25). A força incontrolável do seu trabalho dota a escrita de Nietzsche de um invulgaríssimo poder de penetração e de admiráveis dotes de psicólogo (e convém não esquecer a importância que o autor atribuía a essa atividade) – «Uma época que sofre daquilo a que se chama cultura geral, mas que não tem qualquer nenhuma, nem na sua vida tem unidade de estilo, nunca saberá saber o que fazer com a filosofia, mesmo que ela seja proclamada nas estradas e nos mercados pelo génio da Verdade em pessoa.» (p.25) –; os de um poderoso prospector dos sinais, identificáveis ou não, com que se confronta, o que lhe possibilita, mesmo ao tratar autores clássicos, alvejar certeiramente a sua própria época – «o nosso tempo, habituado à peste biográfica…» (p.34).

É muitas vezes um poema com raízes filosóficas, o texto nietzcheano, e é frequentemente com a amplidão, com o poder criativo da sua palavra, que o filósofo mais marca o seu leitor – «Se alguma vez, num momento infinitamente longínquo acontecer que todas as substâncias semelhantes sejam reunidas e que as existências primordiais indivisas repousem lado a lado numa ordem bela, quando cada partícula tiver reencontrado os seus companheiros e a sua pátria, quando a grande paz suceder à grande dispersão e à grande divisão das substâncias e quando já não houver fendas nem divisões, então, o Nous regressará ao seu movimento espontâneo; não se encontrando já dividido, percorrerá o mundo em massas uma vez grandes, uma vez pequenas, sob a forma de espírito vegetal ou de espírito animal e instalar-se-á no interior de uma outra matéria.» (p.99-100)

sábado, 10 de novembro de 2007

Novidades dos Altiplanos Andinos


Notícias dos Altiplanos Andinos, local onde boas-novas (não tão-novas, porém um pouco diferentes) vêm revestidas de notícias velhas. Direitistas e esquerdistas, como ainda são auto-intitulados pelo mercado, tentam se igualar em tons (e sons amistosos) populistas.

Locais onde vários estopins se acendem sucedâneos e que, por isso mesmo, tentam trazer novidade em táticas de outrora - até mesmo esse discurso de direita e esquerda, além de estar bastante outrora, carrega um sentimento moral de pior espécie; como índoles que, por serem distintas, não podem conviver: não com o mercado. São problemas antigos e que se vestem - um de farda, outro de paletó - de novidade: diferenças ideológicas que se traduzem em sons correlatos: direitistas e esquerdistas (se assim querem, assim será) que se igualam em populismo: venezuelanos e colombianos que se igualam em guerrilha: tem as do campo (aliás, das matas amazônicas) e as da cidade; bolivarianos e não-bolivarianos.

Relações boas que se fazem em ideologias - totalmente - contrapostas. É Uribe e Chavez que trazem notícias, fresquinhas, dos Altiplanos; notícias que poderiam também vir do Sul (ao menos assim poderíamos pensar no mercado, deus ex-machina), mas o Sul oferece apenas a diferença: mulheres e homens que triunfam em monarquia conjugal.

Encontros promovidos em prol da guerrilha e que escancaram uma incrível semelhança entre dois opostos.

Até mesmo a direita é acusada de "chavismo"!, como isso é possível? Parece que, ao criar situações e nomes, o próprio mercado se confunde com sua retórica. Falseiam tanto que não conseguem nem mesmo voltar ao conceito outrora forjado! Verborragia intestinal das mais fétidas!

Nada como complementar uma prosa com outra prosa. Esta da Folha de São Paulo do dia 04/11 (boas-vindas ao mundo de Chavez... "grande modelo" para o Sul e os Altiplanos): A popularidade os leva a destruir ou mudar as instituições [grande medo do deus mercado] que condicionam o seu poder. Os dois são inimigos da divisão e rotação de poderes, que pretendem concentrar em si.

Ambos concentram o que a(s) América(s) tem de melhor, e o que tem de pior. Ambos são a diferença que nos falta neste mar de igualdade.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Seção: Reflexões


Viva La Presidenta


E viva la presidenta... novamente a América Latina ficou em evidência. Novamente o mundo se voltou para este pequeno mundo... um pequeno que quer ser grande, fazendo disso uma lição de casa para a casa do outro; um rincão que quer ser algo deixando de ser a si-mesmo. Quando temos mais uma mulher no cargo, e mais vários homens a olhando de lado, alguns de baixo, outros tantos por cima, novamente temos nuestros hermanos construindo seu mítico passado... ancianidades com cara de modernidades, e de novo estão falando em rever, em renegociar, em repensar... Fica, no entanto, a grande pergunta: quando há a discussão de um mundo novo, num universo dos tempos que antecedem Adam Smith, e o liberalismo escorreito buscado por Thompson, há realmente alguma novidade? Dirão alguns... agora é uma mulher, mas e aí!!! Nossa igualdade se faz pela diferença, por outro lado, querer fazer da igualdade o fim das diferenças, mostrando para o mercado que ele tem razão, não seria um caminho tão novo assim. Será que algum dia teremos direito à diferença, ou continuaremos ciscando no terreno da verborragia que fala da diferença? Cristina dirá... ou não!

domingo, 28 de outubro de 2007

Um Aparte Regional: Democracia e Mercado


As instituições democráticas, como bem apontado por Clio, em publicação anterior (e outras mais), ao invés de ser uma solução para a economia e a vida política dos países emergentes, acabam se tornando uma negaça econômica de uma escumalha que ainda domina a OMC - Organização Mundial do Comércio. Dominando a OMC, impõe uma democracia a lá liberalismo (vedete pós-moderna do Fim da História), a todos aqueles que, desta escumalha não participam, e que ainda lutam, e relutam, para disso participar (não estariam querendo impôr os mesmos elementos aos outros que, posteriormente também emergentes tornar-se-iam?), onde todo aquele que tenta, também dessa democracia compartilhar, restaria o quinhão da próxima rodada.

Pois bem, em momento ainda anterior, nos referimos à democracia, tendo como exemplo a Argentina (na boca de uma eleição que apenas reforça o que resta à democracia deste lado de baixo do equador), e como suas instituições - as instituições da democracia -, baseadas em partidos, e no livre-comércio, ainda estão impregnadas de bolor. E, baseado neste bolor, como nós somos responsáveis pela democracia, os males que a ela acometem, acabam recaindo em nós como uma carga de culpa. A culpa de não sermos ilustrados o suficiente para escolher bem nossos representantes. E aí, nós tiramos o peso das costas desta escumalha que, mesmo quando votamos direito, continuarão fazendo a mesma coisa. O problema é bem maior do que imaginamos. E a escumalha tão maior quanto... e a democracia, ainda um maior problema - pois ela ainda é um caderno marcado, com cartas curingas! E uma outra democracia, seria possível? Boa pergunta... nem opino a respeito...

Em artigo do dia 26/10, escrito por Flávia Marreiro, na Folha de São Paulo, há a seguinte afirmação, ainda corroborando com o tema Argentina: O Brasil é um jovem de cinco séculos. a Argentina, uma anciã de 200 anos. O país do futuro versus o do passado mítico. Uma breve história de duas nações próximas e, ao mesmo tempo, tão distantes. Em momentos distintos, e por anos afim! Até que ponto, e quem assim determinou, o Brasil é país de futuro, e a Argetina uma velha anciã de passado mítico, com toda carga de sacro posta nesta afirmação?

Imagino que nosso futuro esteja baseado em nosso modelo econômico, ainda pensando na afirmação de Flávia e na do mercado. E o passado de nossa tão nobre vizinha baseado na aversão do mercado à mesma, e na forma como um país de graus educacionais tão altos, conseguiu chegar à desavença da democracia em tão pouco par de anos... sintomático não?

Será que a forma como representamos, ideologicamente, as instituições brasileiras não seria um sintoma do grau futurístico de nosso país? E, por outro lado, a forma como os argentinos representam suas míticas e anciãs instituições, e seu descontentamento com relação à democracia, não seriam também sintomas desta percepção democrática, tão vilipendiada pelo mercado, e por seu falso liberalismo (centro e controle das relações econômicas) a lá Adam Smith, como bem demonstrara o artigo de Clio?

A forma como as duas fronteiras, abaixo do equador, vêem esta relação democrática é bastante interessante, quando tentamos compreender qual o grau e qual a faceta da atual condição democrática dos povos.

Dois fragmentos do artigo de Flávia Marreiro dão-nos uma dica de como nós, vizinhos abaixo do equador, podemos melhor-ver a democracia e o mercado! Ao menos é isso que se deseja, não é mesmo!

Os brasileiros ainda enxergam na Argentina um parceiro pouco confiável. "Se pudesse dialogar com os entrevistados, diria que esse sentimento está relacionado aos nossos ciclos históricos como curtos nos últimos 20 anos, se comparados aos do Brasil", diz o antropólogo [argentino], citando os problemas do governo Alfonsín (1983-89) com a hiperinflação, as políticas liberais de Menem (1989-99) e a crise de 2001. "Mas o que não mudou, e tem de ficar claro, é o interesse no Mercosul." Olha o mercado tentando ditar as regras de novo.

É no processo histórico do país que também aparecem pistas do "passado mítico" e nenhuma referência o tal "futuro promissor" citado pelos brasileiros. "A idéia de passado tem a ver com o processo geracional e a contínua mobilidade social interrompida há 20 anos". Com o fim da crise, a percepção começa a mudar. "O horizonte fica mais previsível e faz as pessoas começarem a pensar no futuro. Mas é um processo lento e há a inflação, fantasma que ressurgiu nos últimos meses". Pois é, meu caro, sabemos onde está o mal?

Aliás, como falar em mal se a questão do mercado nunca pensou nisso? Ou será que o mal é a democracia, em tempos de capitalismo? Ou ainda, o problema não estaria na forma como conduzimos (e vimos que não é bem assim, pois não conduzimos turba nenhuma) a democracia? Caramba..., que dúvida cruel!

sábado, 27 de outubro de 2007

Economia Moral versus Liberalismo - um comentário crítico acerca do texto de E. P. Thompson

No texto: A Economia Moral da Multidão Inglesa no Século XVIII, que compõe um dos capítulos do livro Costumes em Comum, E. P. Thompson, desenvolve algumas hipóteses inspiradas em Marx. Nesse sentido, o livro tem uma ligação estreita com a Formação da Classe Operária Inglesa e com as Particularidades dos Ingleses, nestes trabalhos Thompson visa com suas críticas combater alguns pilares da ortodoxia marxista.
O principal era o que estabelecia uma correspondência direta entre infra-estrutura e superestrutura, cuja principal conseqüência para os estudos históricos era o reducionismo que via uma relação direta entre desenvolvimento industrial e consciência de classe. Noutra perspectiva, Thompson verifica que a consciência de classe não depende da formação de um partido, do desenvolvimento tecnológico e muito menos da ideologia comunista para conduzir esta luta de classes. Inversamente, é na luta de classes que se configura a consciência da luta e da classe e esta se dá no transcurso histórico de luta e não apriori ou de fora para dentro por intermédio de um partido ou de uma vanguarda revolucionária.
Esta primeira crítica combate a idéia de movimentos operários, aos quais eram considerados utópicos com um nível de consciência inferior, nestas análises reducionistas eram encaixados todas as revoltas pré-industrial, os socialistas ditos utópicos pré-1848 e mesmos os anarquistas. Tais movimentos eram preconceituosamente denominados turbas. Contra isso, Thompson inverte a perspectiva de que a classe operária é fruto do desenvolvimento industrial, pelo contrário, o que se verifica na Inglaterra do século XVIII, objeto histórico de Thompson neste texto, é que a classe operária está em formação desde antes da Revolução Industrial e que os operários de fábrica vítimas históricas dos cercamentos que os impuseram à venda da força de trabalho como única forma de sobrevivência são herdeiros da cultura popular que lutava contra as imposições do laissez-faire nascente que estava destruindo uma economia moral. Esta noção de Thompson conceitua as práticas culturais antigas que regulamentava os costumes, inclusive as relações de troca, evitando os açambarcamentos e possíveis usuras dos comerciantes. Entre outras coisas, aquilo que impedia moralmente os fazendeiros de venderem suas colheitas para intermediários, obrigando-os a irem vender seus produtos no mercado para que o preço não aumentasse com a inclusão de atravessadores nas transações comerciais.
Neste texto Thompson nos mostra que o estabelecimento do liberalismo se deu através de lutas e em confronto com uma prática cultural existente que
... tinha como fundamento uma visão consistente tradicional das normas e obrigações sociais, das funções econômicas peculiares a vários grupos na comunidade, as quais, consideradas em conjunto, podemos dizer que constituem a economia moral dos pobres. Os desrespeitos a esses pressupostos morais, tanto quanto a privação real, era o motivo habitual para a ação direta. [1]
Dessa forma, o que Thompson denomina de economia moral eram as práticas costumeiras de uma cultura que impunha que: Os agricultores deviam trazer os cereais a granel para a praça do mercado local; não deviam vendê-lo enquanto ainda estivesse no campo, nem deviam retê-lo na esperança da elevação dos preços. Tais costumes nos parecem hoje em dia absurdos, pois estamos tão inseridos e habituados com os imperativos liberais, que esses fatos se apresentam com uma tonalidade exótica. E aí está um grande problema, pois alguns historiadores em vez de investigar como se deu a transposição de uma economia moral para o liberalismo, já tomam este como natural, como uma organização inerente da sociedade. Havia um controle nos mercados que impedia os abastados de comprar antes dos pobres e a supervisão dos mercados também era uma proteção ao consumidor. Nesse sentido, as revoltas não eram meramente motins espontâneos gerados por épocas de más colheitas e fome e sim calcados numa cultura consensual que fora aos poucos sendo destruída pelas práticas mercantis liberais, mas não sem resistência e conflito advindo das revoltas das classes subalternas.
As práticas liberais foram sendo impostas gradativamente e, com isso, o mercado cada vez mais foi ficando menos transparente, pois os fazendeiros moralmente obrigados a venderem suas colheitas no mercado, burlavam os costumes e as vendiam para os intermediários, no entanto, para manterem as aparências iam assim mesmo ao mercado, e quando os consumidores chegavam diziam-lhes: já acabou. Outra prática que estava entrando em vigor contra a economia moral era o da recusa dos fazendeiros venderem em pouca quantidade, pois muitos já estavam vendendo toda a sua colheita antecipadamente para comerciantes.
Aos poucos também o governo que, baseado no direito consuetudinário que tendia a regulamentar as velhas práticas que estavam sendo burladas por comerciantes, fazendeiros e moleiros, começava a ser cada vez mais ambíguo em suas normas, pois a ideologia liberal já estava alcançando um status científico que garantia que o próprio mercado regularia a oferta e a procura e que em tempos de más colheitas, os altos preços garantiriam o racionamento dos gêneros evitando a fome, o que teoricamente seria muito bom para o governo. O mito da auto-regulação do mercado estava se tornando hegemônica.
Entretanto, o autor é consciente de que a economia moral a qual se baseavam as revoltas contra a carestia, a fome, o açambarcamento e os sujeitos históricos que impunham estas situações aos populares como mercadores, fazendeiros da gentry e moleiros agiam segundo um modelo teórico consistente, esse era [porém] uma reconstrução seletiva do paternalismo, extraindo dele todas as características que mais favoreciam os pobres e que ofereciam uma possibilidade de cereais mais baratos.
Assim Thompson a seguir escreve:
Pois um aspecto a economia moral da multidão rompia decisivamente com a dos paternalistas. A ética popular sancionava a ação direta coletiva, o que era categoricamente reprovado pelos valores da ordem que sustentavam o modelo paternalista.[2]
Thompson nos mostra que os preceitos do liberalismo não poderiam ser comprovados empiricamente nas práticas comerciais do século XVIII na Inglaterra e para desmitificar o que, na verdade, se constituía como uma ideologia liberal da auto-regulação do mercado, ele escreveu:
Não deveria ser necessário argumentar que o modelo de uma economia natural e auto-reguladora, funcionando providencialmente para o bem de todos, é tão supersticioso quanto as noções que sustentavam o modelo paternalista – embora, curiosamente, seja uma superstição que alguns historiadores econômicos têm sido os últimos a abandonar. Em alguns aspectos, o modelo de Smith se adaptava mais acuradamente às realidades do século XVIII do que o modelo paternalista; e, em simetria e alcance de construção intelectual, era superior. Mas não se deve deixar de perceber o ar ilusório de validação empírica que o modelo contém. Enquanto o primeiro apela a uma norma moral – ao que devem ser as obrigações recíprocas dos homens -, o segundo parece dizer: "é assim que as coisas funcionam, ou funcionariam se o Estado não interferisse". Entretanto, quando se consideram essas seções de A Riqueza das Nações, elas impressionam menos como um ensaio de investigação empírica do que como um excelente ensaio de lógica que se autovalida.[3]
Thompson assim é consciente de que a tradição paternalista também é ilusória na medida em que tais costumes se baseavam numa moralidade tradicionalista e demonstravam o medo pelo “novo” além de ser embutido de superstições de todo o tipo. Por outro lado, o liberalismo aparentemente obra do intelecto humano e de sua ciência mais desenvolvida, na realidade do século XVIII não poderia ser mais comprovado do que o paternalismo. A sua lógica, nesse sentido era uma construção ideológica que procurava romper com os costumes vigentes, até então, em benefício de uma classe ou de grupos que, com elas, ascendiam socialmente.
Quando consideramos a organização real do comércio de cereais do século XVIII, não temos à mão a verificação empírica de nenhum dos dois modelos [nem o do protecionismo da economia moral nem o do liberalismo]. Tem-se feito pouca investigação detalhada acerca do mercado; não há nenhum estudo importante sobre a figura-chave do moleiro. Até a primeira letra do alfabeto de Smith – o pressuposto de que os preços altos eram uma forma eficaz de racionamento – continua a não ser mais do que uma afirmação. É notório que a demanda de cereais ou de pão é altamente inelástica. Quando o pão custa caro, os pobres (como lembraram certa vez a uma observadora das altas esferas) não comem bolo. Da perspectiva de alguns observadores, quando os preços subiam, os trabalhadores talvez comessem a mesma quantidade de pão, mas cortavam outros itens nos seus orçamentos; talvez até comessem mais pão para compensar a perda de outros itens. De um xelim, num ano normal, seis pence seriam gastos com pão, seis pence com ‘carne inferior e muitos produtos da horta’; mas num ano de preços altos, todo o xelim seria gasto com pão. [4]
Tais documentos nos remetem ao problema de se considerar como lei natural as relações de mercado de oferta e procura, estas “leis” só são apreensíveis e inteligíveis no interior de uma sociedade, levando-se em conta as práticas culturais e os costumes dessa mesma sociedade. O caso do aumento do trigo concomitante com o aumento do consumo do pão, ao contrário, do que a “lei de mercado” afirmava, é emblemático porque nos permite evidenciar que os hábitos alimentares e os costumes da sociedade não estão à mercê das intempéries da natureza ou da ganância dos mercadores que escondiam o estoque de trigo quando o preço estivesse em baixa para vender em alta em um momento melhor, muito pelo contrário, estas práticas também são determinantes no contexto histórico.
Por outro lado, o que se percebe é que por trás da ideologia liberal defensora do livre-câmbio que garante um ambiente propício ao que pode lucrar mais sobre os que podem menos, é que há o predomínio marginal do monopólio entre os comerciantes que, detentores únicos de certas mercadorias essenciais, passam a controlar o preço dos produtos de primeira necessidade no mercado.
Assim, o liberalismo escamoteia o que seria o seu contrário, o monopólio. E torna-se além de uma ideologia, também uma utopia, pois na prática ele não existe ou quando existe é um momento transitório, imposto por discurso ideológico, que transfere um mercado controlado pelo consenso moral de uma cultura há muito vigente para o controle de indivíduos que se enriquecem monopolizando o comércio dos gêneros essenciais à sobrevivência da população, como nos mostra a pesquisa histórica de Thompson.
E para além destes documentos o que todo defensor do liberalismo sonha é com o monopólio do mercado e a eliminação de seus concorrentes. Em um plano mais geral podemos constatar a luta dos países chamados emergentes na OMC contra os subsídios fiscais dos países ricos que sobretarifam os produtos primários importados que aportam em seus mercados consumidores. Os mesmos países ricos que impedem a concorrência de igual para igual entre os produtos primários são os mesmos que impõem o livre-mercado aos países “emergentes” para que seus produtos tecnológicos mais avançados entrem sem sobretaxa nos mercados alheios.
Portanto, o liberalismo é uma fachada que disfarça a luta intensiva pela instituição do monopólio pelo maior tempo possível. Em tempos imperialistas em que a tecnologia vai aos poucos eliminando a força de trabalho, que foi no capitalismo industrial a fonte privilegiada de lucro que se dava na produção, a criação de valor passa a ser obtida em outra esfera: no controle do mercado consumidor, por meio de leis protecionistas, de imposição tecnológica, enfim, pelo controle do mercado por parte das transnacionais. Mas este controle não ocorre à margem dos governos e sim por eles, através dos Estados e não sem a gerência deles, pelo contrário, quase tudo acontece via governo, ora escusamente ora por lei, obviamente submetido aos ditames das grandes empresas, os grandes patrocinadores das eleições. Em suma o dia que o liberalismo existir de fato e não apenas como ideologia que é um outro nível de realidade, nunca mais se gastará tanto nas eleições, e o governo será, se existir, apenas um chefe de Estado de luxo tal qual a monarquia inglesa. É por vias legais e governamentais que as regras de mercado, supostamente auto-regulado, se concretizam. Assim, o Estado tão rejeitado pelos papas do neoliberalismo é o canal privilegiado por onde passa os ditames de mercado e por onde são legitimadas suas práticas. É por isso que o neoliberal é um defensor da democracia, pois por meio dela se legitima práticas antidemocráticas e em vez de combater tais práticas, troca-se os governos e mantém o regime que as legitima, pois na democracia o culpado é sempre o povo que escolheu errado, que deu “azar” nas cartas que escolheu para jogar num jogo que as cartas já são marcadas e as regras já estão dadas e que, portanto, dentro delas, jamais se mudará o jogo. Precisaríamos virar a mesa e impor um outro jogo em que as regras seriam ditadas por nós.
[1] THOMPSON. “A Economia Moral da Multidão Inglesa no Século XVIII”. In: Costumes em Comum, p. 152.
[2] THOMPSON. “A Economia Moral da Multidão Inglesa no Século XVIII”. In: Costumes em Comum, p. 167.
[3] Ibdem, p.162.
[4] Ibidem, pp. 162-3.