quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Nem Tudo Merece Ser Relembrado!




 

O ofício de um historiador é cheio de responsabilidades, a maior delas, talvez, seja a do compromisso não só com a verdade, mas também com o que chamarei de fazer o bem. Seu trabalho começa pela escolha de seu objeto de estudo, pela construção de sua temática que, às vezes, é voluntária, racional e meditada e, em outras, é completamente involuntária, ou melhor, passiva e passional, pois se dá quando o objeto, a coisa fisga o historiador, quando ele se vê sugado pelo seu tema. Em nenhuma dessas ocasiões ele se pode ver eximido de sua responsabilidade, pois para além de tentar ser "fiel" e verdadeiro com a história que vai escrever, com as memórias que vai decidir codificar historicamente e com aquelas que por omissão, limitação vai relegar ao esquecimento, o historiador deve ser justo em sua presentificação do passado, muito mais que buscar a verdade, ele deve fazer o bem. Em outras palavras, evitar males à memória coletiva.


 

O historiador não é só um manipulador da memória, é também do esquecimento. Nesse sentido é que vem a questão crucial para o ofício do historiador: o que merece ser esquecido, o que deve ser lembrado. O historiador torna-se um semi-deus do tempo, ou melhor, daquilo que vai se alongar numa duração para além da morte, da existência biológica. É ele que escolhe quem, o quê e que lugar vai merecer uma sobrevida, qual "memória" vai ser a escolhida, qual vai florescer e vingar.


 

Nesse ponto cabe a pergunta: onde está o estatuto que dá a qualquer historiador o direito de escolher o que deve ser relembrado? Em outras palavras, qual a legitimidade desse poder? E quais são os critérios "científicos" desse poder de vida e de morte exercido pelo historiador? Por outro lado, precisamos indagar sobre aquilo que merece ser lembrado, de pontos de vistas quantitativo e qualitativo, pois se o trabalho primordial do historiador, como afirmou certa vez Hobsbawm, é o de lutar contra o esquecimento "coletivo" e, nesse sentido, o de constantemente reatualizar a memória, reescrevê-la e revigorá-la com novos procedimentos, instrumentos e lugares de memória, é preciso também indagar sobre aquilo que não merece (mais) ser lembrado.


 

Levar o questionamento a esta margem do assunto é tentar perceber que a memória, e que o abuso que dela se faz ideologicamente causa resultados opressores, já que a memória "resgatada", atualizada, presentificada é sempre história de algo, de alguém, de algum lugar, de pessoas, de um país. Partindo do pressuposto de que toda a sociedade foi um dia erigida sobre a vitória de uns sobre outros numa guerra declarada ou não, e sendo o governo (Estado), como bem identificou Hobbes, oriundo da promessa de trazer segurança, de regulamentar espaços e condutas, antes de ser um instrumento das liberdades. Dessa forma, toda memória redimida pode ser uma memória traumatizadora, pois como ser justo com a memória dos vencedores sem garantir a lembrança da vitória (um ato de justiça do ponto de vista dos vencedores) e ao mesmo tempo, destacar a derrota revelando suas cicatrizes aos herdeiros dessa condição de derrotados no presente (o que seria injusto do ponto de vistas destes).


 

Como disse também certa vez Sérgio Buarque de Holanda, muito mais do que relembrar o que está prestes a ser esquecido, o trabalho do historiador é exorcizar a memória, relembrando de forma justa para que as feridas possam ser cicatrizadas, para que, enfim, o esquecimento possa cumprir o seu papel na história. Não basta ao historiador relembrar por meio de seu ofício a história das vítimas, é preciso ter em mente até que ponto esta memória já não cobrou sua "dívida" histórica para com os vivos, é preciso indagar se os vivos ainda devem às vítimas históricas que estão sendo historicizadas pelo historiador, até que ponto não há um excesso de memória, portanto opressora, de determinados temas da história, até que ponto este excesso de memória presumível pode afetar sensivelmente os vivos e abrir mais feridas do que realmente cicatrizar as que foram abertas pela história de opressão sofrida pelas vítimas que ora se quer relembrar. Estes temas da memória e esquecimento justos, entre outros, são objetos de análise, erudita por sinal, do livro: "A memória, a história, o esquecimento" de Paul Ricoeur.