domingo, 17 de fevereiro de 2008


Como Um Reverso de Luz

Mesmo porque, o escuro é apenas uma sensação momentânea entre o instante da luz e seu reverso.
Esta situação sempre acontece quando tentamos buscar possibilidades outras àquelas que, habitualmente, encontramos no dia-a-dia. Hoje mesmo, antes de vir defronte estas letras, me encontrava a cata de palavras para complementar este libelo. Uma obsessão que passou a ser um vício... uma necessidade de fastio. Parece que, ao ficar alguns dias sem encontrar novas palavras - e até as já velhas, pois, de nova podemos entender todo seu correlacionamento com outras palavras e a tessitura de um texto qualquer, com efeito, o novo passa a ser apenas a forma como elas são dispostas umas do lado das outras, trazendo uma mensagem e um signo, estas sim, situações novas em palavras já velhas... tudo aquilo que já se escreveu é tido como velho até que alguém venha e recoloque estas palavras em novos lugares e novas ambiências, portanto, palavras novas nada mais são que significações novas em textos também novos, como também, em textos antigos -, falta oxigênio em minha corrente sangüínea e, como todos sabem, a falta de oxigênio leva à morte, contudo, o uso do oxigênio e sua queima, quando do processo da respiração, também leva à morte. Que morte então eu gostaria pra mim, aquela do fastio, ou aquela da necessidade... é uma questão difícil de responder, afinal de contas, ninguém quer morrer.

Pois bem, este escuro, como se percebe, tem muito mais luz que qualquer poste elétrico; e isso faz parte da vida... e como tenho dito desde o início deste texto: a vida é extremamente contraditória e belicosa. Não é agora que conseguirão enterrar Heráclito, como tantos tentaram. Enquanto houver um sequer que o persiga, ainda o teremos entre nós...

A luz, entretanto, a continuar como insistimos em depredá-la, chegará em um certo momento em que, nem para mim, nem para aquele que me lê, ele existirá... ou existindo, não terá nenhum significado. E aqui não me refiro a nenhum tipo de luz metafísica, mas a luz que, corporeamente, alimenta nossa alma e nos alça além. Pois alma é isso, uma constante afirmação de que podemos ser mais. Ela é apenas um mecanismo de busca, libertação e superação de nosso ser. O fato de a alimentarmos, seja com oxigênio ou luz, é que coloca-nos no rol de seres que querem mais do que realmente somos. A alma, nesse sentido, não é senão, a afirmação de nossa busca por um conhecimento cada vez mais refinado!

E por refino, nada a ver com elitização, mas com aperfeiçoamento, me refiro a algo bom sem ser, ao mesmo tempo, excludente e sectário. O grau de perfeição de nossa alma depende da busca de nosso Espírito, e nosso Espírito é a exemplificação de nosso saber, cada vez melhor e mais complexo...

Que a profundidade nos acompanhe nesta busca, pois, de insônia, já basta a da humanidade contemporânea...

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Seção D'Outro



Bento XVI lido na Universidade Sapienza - o discurso muito resumido…
Luciano Castanheira

O Papa fala como representante de uma comunidade crente (…) de uma comunidade que tem consigo a custódia de um tesouro de consciência e de experiência ética (…) neste sentido fala como representante de uma razão ética. (…) A verdade torna-nos bons e a bondade é verdadeira: é este o otimismo que vive na fé cristã, porque a esta foi dado a conhecer a visão do Logos, da Razão criadora que, na encarnação de Deus, se revelou junto com o Bem, como a própria Bondade.

Foi notícia o convite ao Papa para discursar na sessão inaugural do Ano Acadêmico da universidade em epígrafe, seguido de pedido de suspensão do mesmo por contestação de professores e alunos. Na realidade, o protesto de um professor foi assinado e/ou assumido por 667, tendo a universidade no seu todo mais de 4000; na «contestação» e invasão da reitoria tomaram parte uns 100 a 200 alunos dos 150.000 inscritos nas suas 21 faculdades, cento e trinta departamentos e institutos e cento e vinte e sete escolas de especialização.

Giorgio Israel(1) comenta ser «surpreendente que quem escolheu como lema a célebre frase atribuída a Voltaire — “lutarei até à morte para que tu possas dizer o contrário do que penso” — se oponha a que o Papa pronuncie um discurso na universidade de Roma La Sapienza».

No seu discurso o Papa elogia a «comunidade» da Sapienza:

«Desde sempre a Igreja de Roma olha com simpatia este centro universitário, reconhecendo o empenho, tantas vezes árduo e fatigante, da investigação e da formação das novas gerações. De fato, a “Sapienza” era, até certa altura, a Universidade do Papa, mas hoje é uma universidade laica com aquela autonomia que, na base do seu próprio conceito fundador, sempre fez parte da natureza da universidade, a qual deve estar ligada exclusivamente à autoridade da verdade. (…) a sociedade moderna tem (…) necessidade de uma instituição como esta».

E «que coisa pode e deve dizer um Papa numa ocasião como esta»? Questiona-se porque em Ratisbona, embora tendo sido convidado o Papa, tinha falado «na veste de professor daquela [sua] Universidade».

Agora o convite fora feito ao Bispo de Roma e teria mesmo de falar como Papa.

«O Papa fala como representante de uma comunidade crente (…) de uma comunidade que tem consigo a custódia de um tesouro de consciência e de experiência ética (…) neste sentido fala como representante de uma razão ética. (…). E que coisa é a universidade? Qual a sua missão? (…) Penso que se possa dizer que a verdadeira, íntima origem da universidade esteja no desejo ardente de consciência que é próprio do homem. Ele quer saber o que é tudo o que o rodeia. Quer verdade.(…) Verdade é, antes de mais, uma coisa do ver, do compreender, da theoria como lhe chama a tradição grega. Mas a verdade não é apenas teórica. O simples saber, disse [Santo Agostinho], torna-nos tristes. E de fato quem apenas vê e aprende tudo o que acontece no mundo, acaba por se tornar triste. Mas a verdade significa mais do que saber: a consciência da verdade tem como objetivo a consciência do bem. Este é o sentido do interrogar-se socrático: Qual é aquele bem que nos torna verdadeiros?

A verdade torna-nos bons e a bondade é verdadeira: é este o otimismo que vive na fé cristã, porque a esta foi dado a conhecer a visão do Logos, da Razão criadora que, na encarnação de Deus, se revelou junto com o Bem, como a própria Bondade. (…)».

E, continuando a observação do que era próprio de cada faculdade na universidade medieval — que esteve na origem daquela a quem falava:

«Diferenciando-se da filosofia neo-platônica (…) os Padres tinham apresentado a fé do cristão como a verdadeira filosofia (…) que a fé é o “sim” à verdade (…). Mas depois, no momento do nascimento da universidade, no Ocidente já não existiam essas religiões, mas apenas o cristianismo e assim era necessário sublinhar de modo novo a responsabilidade própria da razão, que não vem embebida na fé.

Tomaz encontrou-se em ação num momento histórico privilegiado(2): pela primeira vez os escritos filosóficos de Aristóteles eram acessíveis na sua integridade; estavam presentes os filósofos hebreus e árabes, como apropriações específicas e prossecuções da filosofia grega. Assim, o cristianismo num novo diálogo com a razão dos outros, que vinha encontrando, devia lutar pela própria razoabilidade. (…) Direi que a ideia de S. Tomaz acerca da relação entre filosofia e teologia poderia ser expressa na fórmula encontrada pelo Concílio de Calcedônia (3): devem reportar-se entre elas “sem confusão e sem separação” (…). A filosofia deve permanecer verdadeiramente uma procura da razão na própria liberdade na própria responsabilidade; deve ver os seus limites e também a sua grandeza e vastidão. A teologia deve continuar a atingir um tesouro de consciência que ela própria não inventou que sempre a supera e que, não sendo nunca totalmente exaurível mediante a reflexão, precisamente por isso guia sempre de novo o pensamento. E “sem separação”: a filosofia não recomeça de cada vez do ponto zero do sujeito pensante de modo isolado, mas está no grande diálogo da sapiência histórica (…); mas não deve fechar-se diante do que a religião e em particular a fé cristã receberam e deram à humanidade como indicação de caminho.

Várias coisas ditas por teólogos ao longo da história, ou então traduzidas nas práticas das autoridades eclesiásticas, foram demonstradas falsas e hoje confundem-nos. Mas ao mesmo tempo é verdade que a história dos santos, a história do humanismo que cresceu tendo por base a fé cristã, demonstra a verdade desta fé no seu núcleo essencial, tornando-a com isso, também, uma instância para a razão pública. [Claro é que há quem não tenha fé] Porém é verdade que, ao mesmo tempo, a mensagem da fé cristã não é nunca apenas uma “comprehensive religious doctrine”, no sentido de Rawls (4), mas uma força purificadora para a própria razão, à qual ajuda a ser mais ela própria. A mensagem cristã, tendo por base a sua origem, deveria ser sempre um encorajamento em direção à verdade e, desse modo, uma força contra a opressão do poder e dos interesses».

A terminar refere-se Bento XVI à Universidade e saberes do nosso tempo de progresso, no anseio do homem «melhor se compreender a si próprio».

Destaco este aviso:

«O perigo do mundo ocidental — para falar apenas deste — é hoje que o homem, tendo em consideração a grandeza do seu saber e poder, ceda diante da questão da verdade. (…) Dito do ponto de vista da universidade: existe o perigo de que a filosofia, não se sentindo já capaz de levar a cabo a sua verdadeira tarefa, se degrade em positivismo; que a teologia, com sua mensagem remexida pela razão, fique confinada à esfera privada de um grupo mais ou menos grande». (…)

«Do seu ministério de Pastor da Igreja (…) é sua tarefa manter a sensibilidade pela verdade; convidar sempre de novo a razão a pôr-se em busca do verdadeiro, do bem, de Deus (…) e a perceber assim Jesus Cristo como a Luz que ilumina a história e ajuda a encontrar o caminho em direção ao futuro».

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(1) Artigo de em «L’Osservatore Romano»

(2) Estuda (…) com o erudito alemão Alberto Magno em Paris (1243-1248) e em Colônia (1248-1252). Volta a Paris, em 1252, iniciando os seus comentários da Bíblia. Começa a ensinar nesta cidade, sendo nomeado mestre da Universidade em 1257, dois anos depois regressa a Itália. Em 1265 é encarregado de organizar os estudos da Ordem dos Dominicanos em Roma. Em 1269 volta a Paris ocupando a sua cátedra de mestre de teologia. http://afilosofia.no.sapo.pt/10aquino.htm

(3) Concílio de Calcedônia, reunido em 451.

(4) J. Rawls (1921-202): «Procurou formular as bases de um sistema ético-político que fosse garantia de um estado de justiça equitativa, e onde a desigualdade só seria justificada no caso de estar ligada a funções e posições abertas a todos em condições de justa igualdade de oportunidades, e servir para maior benefício dos menos favorecidos. Na sua obra fundamental — A Teoria da Justiça (1971) —, estabeleceu um conjunto de princípios segundo os quais uma sociedade poderia ser considerada justa». http://afilosofia.no.sapo.pt/12rawls.htm

Mais Reminiscências

Dá-me Fastio!
Esta sensação de fastio, combinada com uma certa intenção de se alimentar mais (mesmo porque, toda comida é gostosa, desde que gostemos dela), gera um ser barrigudo. Acho que isso não pode ser tão ruim, pelo contrário, estamos falando de bem-estar a todos. O alimento, seja ele físico ou psicológico, é sempre bem vindo. E estas ondas estranhas que, em certos dias, tomam conta da gente, são como ondas de mau-agouro. Tudo parece estar indo muito bem; no minuto seguinte nos tomam a dianteira, destronam a polícia e criam sua própria lei.

O abismo fica bem perto, a natureza se mostra bastante terrorista (o que só reforça nossa tese de que tudo se resume à primeira pessoa) e a humanidade dá seus belos saltos; ainda mais quando o próximo passo é tão imprevisível como qualquer buraco escuro. Da mesma forma que, outrora, afirmei a importância do abismo, não significa que, agora, com esta crítica, eu esteja dizendo o contrário e pregando outra coisa. Apenas levo à máxima afirmação os preceitos do velho Heráclito: sim, somos contraditórios, e o estado de guerra espiritual que nos persegue apenas nos conduz, dialeticamente, adiante.

As religiões, neste sentido, têm um motivo bem original de ser e de existir. Elas partirão exatamente deste conflito constante que é a condição humana, no entanto, seu problema está em separar estes opostos (é a famosa guerra do bem contra o mal), fazendo disso um mercado assaz lucrativo. Se não de uma lucratividade concreta e efetivamente econômica, uma lucratividade cognoscente e psicológica de ser, tão macabran quanto. Caso não tenhamos mais o conflito, e este conflito não se coloque dos dois lados da margem – e aqui a terceira margem de Guimarães Rosa surgiria para resolver este problema de sectarização –, não teremos mais a necessidade de alimentar a insaciável religiosidade humana. Algo tão bom quanto o próprio conhecimento, além de deveras importante!

Sim, meus caros, somos religiosos por natureza, daí a força e o sucesso de toda e qualquer seita de fundo de quintal que surja instantaneamente, como também, a importância das religiões tradicionais – e ocidentais, em especial. Não é por mera sorte, ou meras ignorância e supertições, que faz com que as religiões ganhem todos os dias – mesmo em uma sociedade secular – cada vez mais adeptos.

Mas, vá lá, esqueçamos o viés religioso, tentemos reencontrar este abismo que perdemos. Temos que perder alguma coisa sim, mas essa coisa seria o medo de se atirar de cabeça nesse buraco escuro...

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Reminiscências Íntimas II


Coisas de Abismo

Pois bem, a complexidade, como dito outrora, tem um quê de reminiscências. Especialmente aquelas que não nos lembramos mais e que, contudo, em alguns momentos ela volta. Talvez num momento de trauma, outros de estresse... e assim vai. Apenas somos legítimos quando de nossos limites à prova. Não é à toa que gosto da filosofia de Nietzsche, principalmente quando de sua noção de abismo. Para ele, é necessário retirar nosso solo dos pés e nos jogar no abismo para encontrarmos o momento extremo de nossa complexidade, e também de nossa personalidade. O mais interessante, neste momento, é justamente o medo que nos dá quando estamos de frente a este buraco escuro. Apesar de não sabermos o que tem no fundo, um temor nos acomete, e tira-nos de nossa autenticidade.

Tem também uma outra noção que gosto muito de utilizar e que, de forma direta, nos coloca num certo abismo, embora um abismo em sua mais profunda e tenebrosa efetivação. Me refiro, neste momento, ao que Kant nomeou como terrorismo da natureza: apenas em estado de constante terror e êxtase que descobrimos o quanto o assombro e o medo podem ser úteis. Se nas primeiras linhas me referi a este medo, agora busco-o de volta, senão para confirmar esta minha afirmação.

Este estado de assombro, perante a natureza, segundo Vico, é que nos colocou diante da grandeza de nossa inteligência, mostrando-nos que somos capazes de fazer mais que o mero grunhido. Somente quando descobrimos o quanto éramos mínimo que ousamos buscar o outro lado, caindo de cabeça no abismo. Sim, o abismo pode ser o caminho... e seria por meio da reminiscência que este caminho poderia ser melhor visualizado, mesmo na escuridão do abismo.

Este outro caminho, tal como a terceira margem de Guimarães Rosa, concretamente não existe. Sua existência está condicionada ao nosso pensamento. Neste sentido, a terceira margem só existe enquanto possibilidade de transgressão. Apenas criamos uma nova realidade, quando damos ao mundo novos signos e sentidos. Se falta palavra para compreender o inaudito, é necessário que criemos, daí pensar o inaudito enquanto possibilidade constante... isto é pensar livre... isto é transgredir o pensamento e, por conseguinte, a linguagem. E esta linguagem pode estar no outro, ou no reverso deste outro!

Por isso, tem coisas que tentamos buscar no outro uma solução, e até um emplasto para nossa doença. No entanto, nos esquecemos que o outro pode ser apenas o espelho do que somos... por isso a conjugação em primeira pessoa. Um som qualquer, uma necessidade outra àquelas habitualmente constantes em nossa vida, pode mostrar o local desta terceira margem.

Assim se mostra, plenamente, este abismo, e o quanto seu terrorismo pode servir-nos como emplasto. Qualquer fato que foge à rotina nos põe a pensar além. E seria a falta deste pensamento profundo e assombroso o chato quotidiano de nossos dias, de nossas angústias, e das noites insones, entrando madrugada adentro. A necessidade de se pensar em algo outrora não pensado, e que nos acomete por vezes, estando em nosso cognoscente mais íntimo, é que nos faz lembrar o quanto as reminiscências podem ser importantes. Especialmente aquelas reminiscências ocultas, escondidas em algum capacho onde escondemos a poeira.

Por outro lado, não há como se esquecer de que outras reminiscências, longe de nos ajudar, apenas atrapalham. E estas últimas são justamente aquelas que fazem com que acreditamos em algo outro. Sim, existem verdades que não nos pertencem, mas pertecem ao outro. Um outro caracteristicamente direcionado. Temos que olhar este lado também, de preferência para evitá-lo... ou talvez para fazer de sua lembrança um momento não necessário – embora a não-necessidade não seja pensada, stricto senso, como a uma linguagem concreta, mas a um discurso non-sense que se afirma por si mesmo e perante o mundo circundante –, e que precisa ser superado como a algo necessário. Neste caso a memória serve de ajuda e de consolo. Ela pode ser útil quando da fuga, sempre lembrada, destas verdades que não nos competem e que, entretanto, nos fazem acreditar em algo não nosso.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Schopenhauer, ensina-me a viver


Autor de Fragmentos apresenta articulação de idéias dirigidas à experiência e não à ostentação pública

Em Schopenhauer Educador, um dos mais belos textos já dedicados ao grande pensador, Nietzsche demonstra toda a sua admiração por aquele que, segundo suas palavras, conseguiu ir além das deficiências de seu tempo e ensinou “de novo” algo que a filosofia jamais deveria ter esquecido: a simplicidade e a honestidade, tanto no pensamento quanto na vida. Schopenhauer é simples, íntegro e, sobretudo, sereno como Montaigne, diz Nietzsche. Mas ele não é só isso. É forte, vigoroso e, concordando ou não com os seus princípios, somos tentados a refletir sobre suas idéias, sempre coerentes e harmônicas.

Schopenhauer produziu um sistema extraordinário e, apesar de Nietzsche considerar a “vontade de sistema” uma espécie de desonestidade diante da vida (sempre tão fluida e pulsante para ser colocada em uma fôrma), em Schopenhauer tudo é honesto. É claro que tal honestidade não impediu Nietzsche de romper posteriormente com seu “mestre espiritual” e chegar a idéias completamente distintas. Porém, apesar das críticas mais tardias feitas pelo próprio Nietzsche à filosofia de Schopenhauer, o elo entre o filósofo da “vontade de potência” e o filósofo da “vontade de vida” é profundo - embora para entender isso seja preciso conhecer a obra dos dois filósofos.

Aliás, como diz muito bem o próprio Schopenhauer, quem deseja mesmo conhecer a filosofia deve ir direto às fontes. Ler uma “história da filosofia” em vez de ler as obras dos próprios filósofos, diz, é como querer que outra pessoa mastigue o que comemos. É o que nos ensina o filósofo nas primeiras páginas de seu Fragmentos Sobre a História da Filosofia, publicado pela Martins Fontes em tradução de Karina Jannini: nenhum manual, nenhum comentador, pode nos fornecer o que a obra de um filósofo oferece. Alguém leria a história universal se pudesse ver com seus próprios olhos os acontecimentos do passado que lhe interessam?, pergunta.

Esses Fragmentos fazem parte do Parerga e Paralipomena. Longe de ser uma história da filosofia no sentido ortodoxo, representam um olhar visceral sobre os caminhos e descaminhos da filosofia ao longo dos séculos. É, no fundo, um brilhante exercício de pensamento, que não exclui a crítica implacável a alguns filósofos que, embora muito considerados, são chamados de confusos e até de medíocres. Schopenhauer não poupa ninguém e muito menos teme atacar o hegelianismo que domina o mundo acadêmico de sua época. Diz que ele não tem “nem clareza, nem espírito” e que seu sucesso representa claramente a vitória de uma filosofia de cátedra, estéril e afetada.

Na verdade, ninguém está fora da mira desse filósofo que defende que a verdade não foi feita para agradar e nem deve depender de aplausos ou de adesões. É assim que ele deixa claro, por exemplo, que embora a sabedoria de Sócrates seja um artigo de fé filosófica, não parece muito inteligente um pensador limitar-se a uma minoria que o acaso aproxima dele. Ele deve, ao contrário, buscar estender a sua influência a toda a humanidade e isso só é possível pela escrita. Para o filósofo alemão, Sócrates assemelha-se aos heróis práticos, que agiram mais com seu caráter do que com sua cabeça.

É claro que, dentre todos os filósofos, Kant é de longe aquele pelo qual Schopenhauer tem maior apreço, embora também não concorde com ele em todas as coisas. Dito de outra maneira: como todo grande pensador, Schopenhauer não é discípulo de ninguém. Ele é o criador de sua própria filosofia e, nesse caso - como diz Deleuze -, é um criador de conceitos. Mas criar, segundo Deleuze, também pode ser reativar conceitos anteriores e é quando Schopenhauer se associa com Kant que ele produz o maior de todos os seus conceitos: o da Vontade como a única coisa em si.

Sobre este ponto, recomendamos a leitura de outro texto que se encontra também nessa edição: o Esboço de Uma História da Doutrina do Ideal e do Real. Nesse breve ensaio, Schopenhauer considera mais do que justa a afirmação de que Descartes é o pai da nova filosofia (ou, mais propriamente, da filosofia moderna). Isso porque ele teria sido o primeiro a refletir sobre o que é objetivo e o que é subjetivo na ordem do conhecimento (ou seja, o que pertence ao mundo e aquilo que pertence à própria estrutura da razão). Subjetivo, nesse caso, não tem o sentido de pessoal ou individual, mas de inato, inerente. Dialogando, portanto, com as filosofias de Descartes, Espinosa e, sobretudo, com a de Kant, Schopenhauer reafirma sua posição com relação à representação. O mundo é minha representação, diz ele, e isso quer dizer que existe um abismo intransponível entre a imagem que temos das coisas e as coisas em si mesmas. Schopenhauer não esconde a influência kantiana sobre o seu pensamento, mas distingue-se dele ao defender que só existe uma coisa em si: a Vontade. É ela que anima todos os corpos. O ser é a Vontade e cada indivíduo nada mais é do que o clamor, a expressão profunda dessa Vontade una e eterna.

Schopenhauer é tudo isso e muito mais e ler a sua obra é conhecer a filosofia em seu estado mais puro e vital. Ele mesmo gostava de dizer que sua filosofia era feita de poucos elementos, porque a verdade sempre é simples. Longe dos vícios que corrompem a filosofia de cátedra, seu pensamento é talhado para objetivos superiores e não para a vã ostentação pública. Enfim, esse é Schopenhauer: o filósofo-educador, o eterno mestre de uma humanidade que precisa, cada vez mais, de alguém que a ensine a viver!


Colaboradora: Regina Schöpke é doutora em filosofia, medievalista e autora de Por uma Filosofia da Diferença: Gilles Deleuze, o Pensador Nômade

Reminiscências Íntimas


Esse Negócio de Ser Livre é Complicado...



Sabe de uma coisa, esta confusão que se mostra todos os dias, em nossa vida, e, como tal, sendo também a vida, pode muito bem ser explicada pela confusão e complexidade com que o ser humano, e aqui me refiro à espécie, lida com seus problemas. Não tentam resolver: ou se vão de cara para cima deles, mas recria-os todos os dias e de acordo com o humor daquele dia... o que sei é que, o lidar com estes problemas é que coloca a vida no patamar de coisa confusa e difícil.

Temos uma condição humana que, em primeiro lugar, preza por nós mesmos, e isso é algo meio que inquestionável. Estamos inseridos num sistema psicológico coletivo, que tem muito de relação econômica a determinar saberes e condutas. Quando nos dispomos – e quando falo nós, estou me referindo à sociedade burguesa – a adotar a liberdade e, de quebra, o liberalismo psicológico de nossos desejos e anseios, advindos desta liberdade, de forma automática incorporamos algo que é só nosso e que, além disso, nos faz humanos ocidentais do século XXI. Mas, em contrapartida, nos impede de sermos totalmente livres. A liberdade que se tem é a mesma de um casulo do bicho da seda, prisão que condiciona nossa liberdade e, de forma técnica, nossa mudança de patamar cognoscente. Numa de minhas anotações antigas eu falaria em Casulos da Liberdade. Mas é bem isso mesmo, apenas somos livres quando do controle de nossos desejos – é onde o velho Hegel entrará em discussão e dirá que há liberdade dentro do Estado burguês, e o fato de o seguirmos é que nos dará tal liberdade; seria uma liberdade condicionada e condicionante.

Este nosso desejo de ser livre, de ser algo mais do que realmente somos é que coloca a vida neste patamar de dificuldade e confusão, e que também nos faz dar um salto adiante, como o bicho da seda, ou o casulo da borboleta. Apenas vamos adiante quando de uma requentada na comida e uma re-buscada no que podemos fazer e naquilo que deixamos de fazer por um motivo qualquer. Por natureza queremos o bem, pelo menos deveria ser assim, de outrem, entretanto, quando este outrem interpõe-se em nosso caminho passamos a não querer mais seu bem, mas nosso bem. E quando queremos nosso bem estamos sendo deveras egoístas e, ao mesmo tempo, unânimes e legítimos para com nós mesmos. E esta crença e busca em algo para nós mesmos, é uma sintomática dessa melhoria que anseiamos, até com certo anelo. A pujânça de nossa vida é que determina, ou limita, nossa condição de seres livres que somos. Livres, porém, aferrados ao casulo.

Aquela noção de primeira pessoa, neste contexto, ganha uma força quase sobre-humana. Adotamos um labor que nos quer bem, e o outro acaba não se encaixando, mais, neste querer bem. E isso é o mal desta liberdade e deste liberalismo psicológico que nos moldou lá no final do século XVIII, logo após a publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos e, algumas décadas depois, com o advento da máquina. Este último o vetor econômico e cada vez mais primordial em nossa vida.

Estas angústias que nos acometem em noites frias, em plena madrugada, são, tão-somente, um sintoma deste mal-estar que adotamos como sendo bom – e que no fundo de fato o é – e acaba sendo, também, e no mesmo espaço, ruim. Neste momento o velho Heráclito nos dá uma lição de vida que nem mesmo a caverna de Platão – a anterior nestas inflexões e posterior na linha cronológica da História, este bicho que não nos deixa quietos – conseguiu apagar, apenas adormeceu.

Sim, a contradição que é inerente ao homem, e que surgira quando de suas relações com o mundo, sempre nos perturba. O que fazemos é virar a cara para o outro lado e fazer de conta que não é com a gente.

Aquela dor no peito que, anteriormente, se mostrara como uma busca da serenidade e, ao mesmo tempo, um reconhecimento da alteridade, nada mais é que a confirmação deste estado contraditório e belicoso que nos dispomos a seguir; desde o momento em que nos inserimos nesta loucura que é a coletividade social, e a adotamos como nossa também. O ser coletivo, neste sentido, seria um escravo de um ser que, não sendo ideal, faz uma busca de reconhecimento a este ideal, criando com isso realidades distintas e peculiares, todavia, dentro de uma diversidade constante que é a vida humana e sua psicologia comportamental.

Temos uma condição de ser que, devido também o aparato econômico que seguimos, nos deixa meio tontos. Ao mesmo tempo em que temos certeza de que aquilo que falamos e fizemos parece ser algo definitivo, no minuto seguinte se mostra tão obscuro e superficial quanto realmente o somos.

A verdade é que, de fato, não há uma única verdade, nem tampouco uma única certeza. Se de madrugada nossa mente vaga por campos freudianos, à luz do sol, vem o cogito cartesiano e nos diz que a coisa não é bem assim. Temos ainda uma racionalidade que nos persegue e, que, aos moldes do velho Heráclito, não anda só, nem é a única certeza de nossa existência. Não fica só, nem determina, tão-somente, nosso ser. Esta torrente de palavras, prova cabal desta contradição, no dia de amanhã, pode perder seu significado e dar-nos outros símbolos de compreensão de nós mesmos e deste nosso mundo estranho e non-sense.