terça-feira, 18 de setembro de 2007

Seção: Resenhas


Declínio e Queda da História Filosófica
Por: Carla Bretão

The History of the Decline and Fall of the Roman Empire, de Edward Gibbon, editada em seis volumes entre 1776 e 1788, é um dos mais notáveis monumentos literários da humanidade. Mas o seu tema é a miséria da glória antiga.
O livro cobre 1300 anos do Ocidente, do reinado de Cômodo (180-193) à queda de Constantinopla (1453). Dezenas de episódios e aspectos, das heresias às cruzadas, das tribos das estepes ao calendário persa, são tecidas na narrativa. Tudo é feito com extremo cuidado em anotar fontes, confrontar autores, discutir alternativas. Gibbon faz a transição da crônica para a história científica.
Num estilo elegante, Decline and Fall constrói uma descrição cristalina do passado, que se torna vívido e palpitante. O autor envolve-se e envolve-nos no assunto, mesmo remoto e complexo. Não hesita nos elogios e censuras. Esbanja louvores sobre Trajano e Marco Aurélio, Diocleciano e Alarico, Belisário, Saladino e Tamerlão, enquanto Caracala, Heliogábalo e Maximino Trácio, Teodora e Nicéforo Focas são vituperados sem apelo. Discute povos, pondera expedições, ralha a imperadores. Ele sabe o que eles pensam.
Esta exuberância nasce de um programa claro e explícito: a "história filosófica". O autor assume-se como "o olho filosófico do historiador imparcial". Esta pretensão, que nos parece algo infantil, é típica do Iluminismo de Hume e Voltaire, para quem era fácil condenar o passado. A própria tese do declínio e queda é uma imposição artificial do autor. A República e o Império inicial são exaltados, para depois se ficcionar uma decadência mais longa que muitas civilizações, 13 séculos de altos e baixos.
Gibbon descreve sempre fatos reais, mas impõe-lhes um significado que vem, não da Filosofia, mas da SUA filosofia. Ele intui isso quando, ao analisar a primeira cruzada, diz: "A fria filosofia dos tempos modernos é incapaz de sentir a impressão que teve num mundo pecador e fanático" (cap. LVIII, vol.III, p.567). Esta insensibilidade pode ser-lhe atribuída em geral: apesar do rigor, não entende a alma do que descreve.
A distorção mais patente está no tratamento do Cristianismo. O leitor nota com surpresa que a religião é sempre denominada "superstição". O tal olho filosófico minimiza as perseguições dos imperadores, simpatiza com hereges, empola a violência e vícios dos fiéis. A sua "clarividência" desconfia das descrições cristãs, ridiculariza milagres, devoções, teologias. Admira figuras como Atanásio, Gregório Magno e Luís de França, mas lamenta-lhes o ponto fraco: o "fanatismo que lhes obscureceu a razão e a humanidade".
O espanto surge no capítulo L, que descreve a expansão do islã. O leitor prepara-se para os extremos de severidade, mas o autor é muito suave com os discípulos de Maomé. Da doutrina chega a dizer que "um teísta filosófico pode subscrever o credo popular dos maometanos, um credo demasiado sublime talvez para as nossas presentes faculdades" (cap. L, ed Allen Lane, 1994, vol. III, p.178). Quanto à ação, os louvores não escasseiam porque, ao contrário das fontes cristãs, ele aceita pelo valor facial as descrições e justificações muçulmanas. Este juízo do londrino não vem de conversão, mas da mesma atitude que o fez simpatizar com Juliano apóstata e os heresiarcas: os inimigos da Igreja têm a sua complacência.
A obra opõe-se à visão enviezada da historiografia moralista anterior, que escrevia para tirar lições. Mas Gibbon, como tantos sucessores, cai no enviezamento oposto: por preconceito, condena sumária e injustamente pessoas e épocas. A ingênua arrogância parece-nos ridícula, mas muitas das suas distorções e juízos arbitrários mantêm ainda credibilidade e sustentam o anticlericalismo.
A História é uma das mais exigentes atividades humanas. Mesmo fiel às fontes, o historiador sempre se projeta a si no relato. Como disse Aristóteles: "Tal como cada um é, assim lhe aparece o fim" (Ética a Nicômaco 1114 a 32). A historiografia pós-moderna extrema este ponto, rejeitando a possibilidade de objetividade histórica, e também ela cai no desequilíbrio oposto ao que critica. A única forma séria de fazer História é manter a humildade e respeito pelos antigos. Afinal, é tão fácil condenar o passado!

Um comentário:

Walmir disse...

Caro professor,
ótima a resenha aqui postada. Eu que gosto das histórias antigas, as que nenhum vivente de agora testemunhou, mas sabe de ouvir contar, e por isso inventa a seu modo e de acordo com suas próprias falcatruas - acho que assim ficam mais verdadeiras, acabadas de inventar.
Deu-me vontade de ler o livro.
Estou aqui, visitando seu boteco de pouco em pouco.
Paz e bem, meu amigo