quarta-feira, 19 de setembro de 2007

A Evolução...


Parte IV


Sim, a memória é esta pedra pesada, pois ela foi a única que se encarregou de manter viva uma pequena chama de que ainda podemos ser humanos, todavia, uma pedra pesada que se configura do outro lado do monte, em sua desabalada, e criativa, descida. E este peso sobre-humano nos tira o chão, nos tira o sofá e nos faz seres medíocres, pois somos relapsos, e não gostamos de carregar tamanho peso, nem tampouco, mesmo com referido peso, criar uma liberdade leve e perspicaz. Uma náusea, aquela do esforço que está além de nosso alcance - principalmente quando, além de nosso alcance seria nosso promissor intelecto livre -, é o que deveríamos sentir, perante este processo não-humano que fora o processo evolutivo, por nós proposto, e por nós exorcizado.

Quando introduzimos nas coisas certos significados, por meio de nosso intelecto, ou quando se cria uma linguagem para que este objetivo de infinitize, fazemos aparecer o fenômeno. O fenômeno de que, até nas coisas fundamentais e germinativas, introduzimos errôneas concepções fundamentais, pois, tiramos de nós a possibilidade de pensar além da linha reta de uma descida em semi-castigo.

Dissemos que a pedra é muito pesada, e nos esquecemos que só estamos carregando-a pelo fato de termos nos tornado deuses, que, a exemplo de Prometeu (e que foi condenado a ter seu fígado devorado por aves de rapina durante toda a eternidade), roubando dos Deuses seu fogo sagrado, tornamo-nos mais astutos que estes mesmos Deuses, enganando-os tal como fizera Sísifo... e do saber e da existência, a fundação da memória.

Todo este processo só veio a ser porque aceitamos este peso, e tudo por uma causa bem simples: dentro do absurdo que é subir uma pedra até o alto da montanha, eternamente, para ela voltar a cair logo em seguida, devido seu exagerado peso, nos esquecemos que dentro das amarras impostas pelo conhecimento, temos a liberdade de, no retorno, quando voltamos para o sopé do monte, o caminho que fizermos é o que queremos, pois, assim também continuamos enganando os Deuses, mostrando para eles que, mesmo em castigo, ainda somos mais astutos.

Mesmo estando em castigo - e é isso que acontece com a gente, quando deixamos a linguagem falar por nós, propondo-nos uma consciência gregária - ainda resta-nos a liberdade de, num mínimo lapso de tempo, podermos dizer para a linguagem, que é o castigo, que optamos por descer de maneira sincopada, e não mais em linha reta... o caminho da liberdade ainda não está traçado, e por isso mesmo sabemos muito bem como usá-lo.

E a experiência, e seu mundo externo a nós - pois ela só se faz do lado externo, jamais internamente - nos parece tão nossa, e tão íntima que o seu próprio reconhecer já nos escraviza de novo pelo simples fato de a ela recorrer, eternamente.

O essencial de toda essa história é o castigo, e a experiência (e o que é experiência, senão repetição), por meio de uma linguagem não-verbal, nos exorta a buscar este essencial... a pedra já faz parte de nossa vida, e ainda assim nos recusamos a reconhecê-la, pois não queremos ser astutos, descendo do outro lado, e ainda enganando os Deuses. Não aceitamos que estamos presos às armadilhas do tempo, e dos homens - no caso do mito, às armadilhas dos Deuses - e fingimos não reconhecer este passado, tão presente. Há um ressentimento, devido o fato de sermos astutos, termos recebido tão grande castigo; sabemos que a única possibilidade de mudança estaria apenas no retorno ao sopé, pois a história já está definida.

No aforismo §16, ainda em Humano, Demasiado Humano, ao se referir ao maior problema criado pela linguagem (os conceitos de fenômeno e coisa-em-si) Nietzsche faz a seguinte constatação: Tarde, bem tarde - ele cai em si: agora o mundo da experiência e a coisa em si lhe parecem tão extraordinariamente distintos e separados, que ele rejeita a conclusão sobre esta a partir daquele - ou, de maneira terrivelmente misteriosa, exorta à renúncia de nosso intelecto, de nossa vontade pessoal: de modo a alcançar o essencial tornando-se essencial. Outros, ainda, recolheram todos os traços característicos de nosso mundo do fenômeno - isto é, da representação do mundo tecida com erros intelectuais e por nós herdada - e, em vez de apontar o intelecto como culpado, responsabilizaram a essência das coisas como causa desse inquietante caráter efetivo do mundo, e pregaram a libertação do ser. O mais incrível disso tudo é que a linguagem fez com que, com o acúmulo da poeira, e devido nossa preguiça em buscar um outro caminho de volta; até mesmo o significado de palavras, além de constatações de signos, acabaram ganhando novas significações. E neste caso posso me referir ao conceito de essencial. Há uma confusão do mesmo, tão grande, que o usamos de uma forma totalmente errônea e externa... fugidia até!

Ainda no mesmo aforismo, nova constatação: (...) o que agora chamamos de mundo é o resultado de muitos erros e fantasias que surgiram gradualmente na evolução total dos seres orgânicos e cresceram entremeados, e que agora herdamos [e por que cargas d'água não herdamos a astúcia de Sísifo, mas apenas a pedra erguida, ou seja, apenas o castigo?] como o tesouro acumulado do passado - como tesouro: pois o valor de nossa humanidade nele reside. (...) Talvez reconheçamos então que a coisa em si é digna de uma gargalhada homérica: que ela parecia ser tanto, até mesmo tudo, e na realidade está vazia, vazia de significado.

E novamente me pego a buscar mais palavras para definir a tal da evolução, tão cara a nossos ancestrais, e ainda mais cara para aqueles que virão, caso continuemos nos lembrando da pedra apenas na subida. Terei que pedir mais paciência ao leitor, pois nossa prosa ainda não se encerrou... tamanho peso, tamanho esconjurar!!

Um comentário:

Walmir disse...

Pois continue a prosa, caro professor. Essas superfícies enganosas do saber merecem um confronto dionisíaco.
Gostei do modo como se expressa, como vai organizando o olhar do seu leitor.
Paz e bem