sábado, 31 de março de 2012

Desistorização!


Se antes tinha-se a eternidade como pretensão prepotente, há que se pensar uma outra prerrogativa à razão. Pois, a razão deveria dar valia, justamente, às pretensões do indivíduo, não o contrário, como havia detectado Horkheimer em meados da década de 40, do século passado. Noutra direção, se verá que esta razão será, sim, uma pretensão de certo indivíduo, ou mesmo de um grupo em si, pleno de sua “vocação”.
 
O grande problema que Horkheimer tenta resolver, imagino eu, seria o de mumificação conceitual sub specie aeterni da razão. Vejamos, pois, qual o respaldo desta afirmação:

Os senhores me perguntam o que são todas as idiossincrasias dos filósofos?... Por exemplo, sua falta de sentido histórico [que aqui, e em Horkheimer é o do capital, como se verá], seu ódio contra a representação mesma do vir-a-ser, seu egipcismo. Eles acreditam que desistoricizar uma coisa, torná-la uma sub specie aeterni, construir a partir dela uma múmia, é uma forma de honrá-la. Tudo o que os filósofos tiveram nas mãos nos últimos milênios foram múmias conceituais; nada de efetivamente vital veio de suas mãos. Eles matam, eles empalham, quando adoram, esses senhores idólatras de conceitos. (NIETZSCHE, 2000: A”razão” na Filosofia, § 1, CI)

Pode parecer um contrassenso a comparação de um texto do século XIX à tese levantada por Horkheimer na metade do século XX, contudo, o que mais sobressai aos olhos é, especialmente, a semelhança de afirmações.

Enquanto Horkheimer disserta acerca do “eclipse da razão” e, consequentemente, do ocaso do indivíduo ontologicamente identitário, Nietzsche tece críticas ácidas à razão, tentando dar ao indivíduo um outro parâmetro reflexivo.

Parece que Horkheimer mostra o caminho torto desta razão pós-revolução industrial, por outro lado, Nietzsche – e sua radical crítica ao racionalismo cartesiano – nos faz propor uma reflexão inflexiva. E nesta inflexão, um caminho totalmente anti-moderno se faz transparecer, por intermédio da pena iracunda de Nietzsche.

Aquilo que, num primeiro momento, pareceu uma blasfêmia conceitual, acaba por nos mostrar uma outra direção; conseqüência radical do caminho empreendido pela razão. Consequência essa que, quase cem anos antes, mostra uma situação (este caminho) já toda torta e equivocada.

É neste momento que vem o flash: não seria, também, um eclipse do indivíduo? Pergunta que queda aberta.

Pois bem, a preocupação de Horkheimer está em soerguer, dos escombros da razão, um indivíduo que busca por um retorno à sua identidade – fica, então, a seguinte questão: não seria também um anelo de inflexão?

Essa espécie de pessimismo para com um futuro, deveras incerto, faz doer profundamente na alma deste indivíduo. Ao menos na alma daquele que tenta compreender qual é, realmente, este caminho que se mostrara eclipsado por uma variedade de fatores “materiais”.

Um pessimismo que clama por uma consciência, segundo Horkheimer, há tempo perdida. Aquela mesma consciência que ele tenta compreender na incerteza identitária do homem em seu elemento mais imberbe: sua entrada na “civilização”.

É do mesmo modo mais fraca [a afirmação de identidade] entre os primitivos do que entre os civilizados; o aborígene, na verdade, que só há pouco tempo foi exposto à dinâmica da civilização ocidental, muitas vezes parece incerto de sua identidade. Vivendo das gratificações do momento, ele parece ter uma consciência muito vaga de que como indivíduo deve preparar-se para enfrentar os riscos do futuro. Esse retardamento da compreensão, nem é preciso dizer, em grande parte é responsável pela crença muito difundida de que esses povos são preguiçosos ou de que são mentirosos – crítica esta que presumiria que os acusados tivessem o próprio senso de identidade que lhes falta. (HORKHEIMER, 1976: 140)

Longe de fazer disso uma análise antropológica, o que Horkheimer deixa transparecer seria um possível retorno a um ambiente ainda mais hostil que o – seu – atual (século XX, em sua metade). Hostilidade essa surgida de uma reflexão que tentasse acompanhar o homem, e sua história de humanidade.

Parece que este homem pensado por Horkheimer – o homem seu contemporâneo –, em uma comparação histórico-antropológica, está bem próximo daquele primitivo que ainda não “acessou” a “civilização”. Uma busca de identidade que, de uma comparação ingênua, se assemelha àquela busca antiga e “primitiva” dos homens – e percebe-se esta citação quando da palavra aborígene – por uma identidade – devido seu estado de “retardo social” –, ainda desconhecida e nebulosa. A afirmação que podemos fazer é a de que há, sim, uma identidade, entretanto, uma identidade vinda de fora – do capital – e posta sobre este homem; que parece se assemelhar ao “aborígene primitivo” em sua fragilidade identitária.

Comparação que se equipara ao homem contemporâneo de Horkheimer. Imagina-se que seu contemporâneo esteja perdido. E numa mesma busca que a dos “aborígenes”. Esta desintegração identitária, pelo que parece, seria uma consequência desta razão, então criticada por Horkheimer. E que se encontra no caminho errado.

Ainda, insistindo na comparação com Nietzsche, o que vemos é uma desincompatibilização do indivíduo, onde sentidos, considerados por este último como essenciais para a afirmação da identidade, outrora legítimos, tornam-se arremedos de razão, sendo direcionados pelo mesmo caminho torto que a razão optara. É como se o testemunho dos sentidos fosse falsificado (NIETZSCHE, CI, 2000: A “razão” na Filosofia, §2).

A ciência, com isso, passa a ser o aceite da não-utilização destes sentidos. A convenção de signos nada mais é que a aceitação deste caminho torto, donde o indivíduo, alijado de seus sentidos, perde sua identidade ontológica, deixando à razão o papel de dar-lhe uma outra identidade.

Colocando o social como outro elemento para a afirmação deste caminho torto, Horkheimer coloca os sujeitos submissos – por sua condição econômica – como sendo tolhidos de sua individualidade. Sendo, então, imitadores de uma condição social concernente a seus “superiores”; que, no caso específico, não tem mais classes sociais. Acabaram-se todos se tornando submissos e alienados.

Essa imitação viria se afirmando quando da ruidosa propaganda por apelos educacionais que não competem a este “substrato” social. Exortam, com isso, o cultivo a uma personalidade que, a uma primeira vista, lhes pareceria inevitavelmente condescendente (HORKHEIMER, 1976: 140). Haveria uma satisfação ilusória na qual eles – os “inferiores” – acalentariam um estado de ser que não lhes seja pertinente. É como se se criasse uma identidade torta, donde o anelo passa a ser o anelo alheio. 

A existência destes indivíduos se daria por uma satisfação imediata, desejo proporcionado pela razão do capital e suas nuances materiais.

Quanto mais intensa é a preocupação do indivíduo com o poder sobre as coisas, mais as coisas o dominarão, mais lhe faltarão os traços individuais genuínos, e mais a sua mente se transformará num autômato da razão formalizada. (HORKHEIMER, 1976: 141)

Admite-se que a noção de individualidade ainda estaria por ser descrita e compreendida. Pensa-se, com isso, que a formalidade da razão ganha corpo de acordo com a elite que, dos píncaros, traça suas condições de existência e identidade.

Um pessimismo presencial que não pensa o futuro de outra forma. Há apenas a afirmação de que esta “força” continuará ditando seus valores, dando ao indivíduo percepções e sentidos que não lhe dizem respeito. Acalenta-se algo que, num futuro não tão distante, eclipsará ainda mais o indivíduo e sua razão ontológico-identitária.

Este antagonismo que surge, do indivíduo com sua comunidade, dá mais vazão a este futuro obscuro. Há portanto a afirmação do conflito entre o ego e o mundo. Aquilo que o mundo oferece, além de não chegar a todos, bestifica ainda mais o ego. O arrebanhamento que surge de então distancia este indivíduo de sua identidade. Afirma-se a identidade do outro, colocando o eu dentro de um torvelinho de desincompatibilização, em que a identidade, cada vez com maior frequência, se circunscreve num ambiente hostil.

A derrota, neste ambiente hostil, e seu possível sacrifício, dão mais força à vontade de superar o statu quo, mesmo sabendo da quase total impossibilidade de superação – em poucos casos –, ou se inteirar ao grupo.

Pode-se dizer que a vida do herói não é tanto uma manifestação de individualidade quanto um prelúdio ao seu nascimento, através do casamento entre a autopreservação e o auto-sacrifício. (HORKHEIMER, 1976: 141)

Esta autopreservação nada mais é que o subjugar-se ao grupo. Há aqui uma deturpação do conceito de heroísmo. Herói passa a ser aquele que mutila sua identidade, colocando nos sulcos, abertos por esta mutilação, pedaços de um tecido estranho. Como um câncer silencioso, o organismo se auto-mutila, padecendo devagar e com chagas; nem sempre, tão escancaradas.

Por mais que haja a facilitação de um equilíbrio entre o Estado e seus membros, cria-se uma liberdade do governante. Todos os membros, ademais, se deixam perecer – principalmente sua liberdade individual – em detrimento de um grupo dominante, que nem mesmo tem controle da situação, pois já se dessubjetivaram também. A liberdade individual que floresce é a do burguês e seu desejo consumista. Há os que consomem, e os que querem consumir; não mais o que se rebela.

O antagonismo entre a individualidade e as condições sociais de sua existência é um elemento essencial desta nova individualidade (HORKHEIMER, 1976: 142). Em contrapartida, este antagonismo passa a ser suplantado por um desejo consciente dos indivíduos, querendo se adaptarem a esta nova realidade que lhes fora incutida por meio do sacrifício.

O câncer, com isso, ganha um caráter de pandemia. Apenas sobrevive aquele que o organismo melhor se adapta. Seres mutantes ganham força, e o câncer passa a ser a própria existência desses indivíduos.

A crise do indivíduo, em poucas palavras, estaria consolidada pela confirmação desta idéia cancerígena. Há aqueles que, embora se adaptem, carregam marcas fortes e abrasivas. Tornam-se, então, ponto de fuga – embora em dor – de indivíduos cada vez menos identitários.

Há a consolidação de uma identidade de oprimido. Um escravo que reconhece seus trapos e a eles se veste. Marcas profundas marcam toda a vida. O valor de cada ser se afirma à luz de uma teologia preexistente. (HORKHEIMER, 1976: 143)

Os trapos que vestem estes homens são o próprio trauma de sua existência. Uma existência que se afirma de uma negação constante. Por indivíduo entendemos, tão-somente, a patologia de um alienado.

A razão que se afirma, ao mesmo tempo, reforça seu eclipse. Em especial quando tem nos indivíduos almas, a purgar erros identitários.

Uma noção que para Horkheimer terá dois pontos, não muito em comum, de referenciação. Seriam eles: 1) a transição da razão objetiva, esta mesma que está externa ao indivíduo, para a razão subjetiva, o que inaugura um processo de constante intromissão da razão externa – a do Estado burguês – no sujeito e 2) a idéia de que a doutrina do processo essencializaria diretamente o ideal de dominação que daí deriva, colocando o sujeito como objeto essencial para este progresso sem, no entanto, levar em consideração seu anseio ou não. Progresso esse que não levaria a cabo a contradição que é inerente ao sujeito, senão uma harmonia – forçada, sabemos – estática e não contraditória.

E é neste momento que o erro da razão do capital reforça ainda mais seu caminho torto:

A circunstância de que o cego desenvolvimento da tecnologia reforça a opressão e exploração social ameaça a cada passo transformar o progresso em seu oposto, o barbarismo completo.

Tanto a ontologia estática quanto a doutrina do progresso – ou seja, as formas objetivistas e subjetivistas de filosofia – esquecem o homem
. (HORKHEIMER, 1976: 145)

Circunstâncias que mostram apenas um fim possível: a total desimcompatibilização do indivíduo com sua identidade, e o prolixo e constante estado cancerígeno dos que se “adaptam” a esta nova razão social.

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