sábado, 24 de março de 2012

Para Um Repensar da História!





Edilson Antônio Alves

Á medida que buscamos as origens, vamos nos tornando caranguejos. O historiador olha para trás; até que finalmente também acredita para trás.
Friedrich Nietzsche – Crepúsculo dos Ídolos

Em sua segunda intempestiva, Da Utilidade e dos Inconvenientes da História para a Vida, obra que data do ano de 1874, Nietzsche tenta traçar uma História da Filosofia, no entanto, despreocupada com a finalidade. Esta despreocupação se mostra na forma como o filósofo apresenta seu método (que, aliás, ao pé da letra, não tem método algum). O grande questionamento que faz diz respeito à forma como os homens vêm o passado, subordinando-se ao mesmo. Esta situação de subordinança é, para Nietzsche, sintoma de degenerescência, chamado pelo autor de Moral de Rebanho.
Quando se remete ao passado, tenta encontrar uma forma de ver este passado sem que o mesmo pese demais sobre nossas costas e, para isso, busca o exemplo da criança que, em sua inocência, esquecer-se-á do acontecido, e não preocupar-se-á com o futuro. Parábola que retoma em uma obra posterior (Za; 200: I, Das Três Transformações) e que, imagino, tem a ver com uma metodologia filosófica para a educação, como também esta obra a qual se faz referência neste ensaio.
Como se percebe, o esquecimento passa a ser ponto de partida para a filosofia nietzscheana, principalmente quando este esquecimento tem a ver com a Tradição – passado impositor e que não permite o desenvolvimento do homem enquanto espírito livre – e sua ferocidade em defender o passado.
Amparado nestes pressupostos Nietzsche busca encontrar a real ‘utilidade’ da História, e não uma farsa que desdobre sobre o homem parâmetros valorativos que não lhe competem, como estava havendo na Alemanha de seu tempo e o despotismo esclarecido do Oto Von Bismarch, como apresente Nietzsche ainda no prefácio de sua obra:

Contamos, efetivamente, expor nestas páginas por que razão devemos abominar, segundo a palavra de Goethe, o ensino que não vivifica, o saber que amolece a actividade, a história encarada como precioso supérfluo e fluxo do conhecimento – falta-nos o necessário, e o supérfluo é inimigo do necessário. Decerto que temos necessidade da história, mas temos necessidade dela de uma maneira diferente da do ocioso requintado nos jardins do saber, mesmo que ele olhe altivamente para as nossas rudes e antipáticas necessidades. (Co.Ext.II; 1976: prefácio)

Para Nietzsche a História precisa ser repensada como uma necessidade para a vida e para a ação, não mais como mero enfeite de um ocioso requintado nos jardins do saber. E, para que atinja esta estrutura, deveria se ater mais em ação e contraprova ao que está posto, e menos em reforçar a Tradição e imposição de um statu quo.
O abuso da História e sua sobrevalorização provocam a degenerescência da vida, encarcerando os homens cada vez mais em um rebanho acéfalo e obediente. Nesse sentido, penso que a História deveria ter o papel de subversão e revolução, algo que, amparado em fatos de outrora, nos permita repensar um tempo e contrapor uma ideologia. Os velhos ídolos do passado precisam ser quebrados a marteladas (CI; 2000), porém, que não coloquemos outros no lugar; faz-se necessário manter o trono vazio.
A partir do momento em que o passado for confrontado, decerto, a vontade de rebanho deixará de existir, dando à vontade seu real caráter. “Mas o homem também se admira de si próprio, de não poder aprender a esquecer e de ficar permanentemente amarrado ao passado. Por mais longe que vá, por mais depressa que corra, as suas algemas seguem-no”. (Co.Ext.II; 1976: §1)
Caso o homem se esqueça um pouco do passado enquanto amarra, talvez o conhecimento teria um outro caminho. Dessa forma, o ensino do esquecimento estaria relacionado à formação do espírito, de caráter, de julgamento preciso, de imaginação e à descoberta de valores, bem distintos dos atuais.
Acresce-se a isso a questão do rebanho e como este homem, que ainda se encontra algemado ao passado, sente-se feliz com referida situação. Mais adiante Nietzsche reforça:

O homem defende-se do peso progressivamente mais pesado do passado, que o esmaga ou o desvia, que torna pesada a sua caminhada como um invisível fardo de trevas, que ele pode negar por vezes, e que nega com gosto no contacto com os seus semelhantes, para despertar a sua inveja. Por isso é que se emociona ao ver o rebanho a pastar como se se tratasse da reminiscência de um paraíso perdido ou, numa proximidade ainda mais familiar, a criança que não tem qualquer passado a recusar e que brinca, na sua feliz cegueira, entre as barreiras do passado e do futuro. (Co.Ext.II; 1973: § 1)

E aqui retomamos o papel da criança nesta transvaloração dos valores, com um espírito sem-medo para com o passado, até mesmo porque há um esquecimento, onde o que acaba interessando é a ação de um tempo presente, com re-configurações futuras e re-visão passada.
Os sintomas de nossa época podem trazer clareza aos olhos, e se estes sintomas se evidenciam de forma deturpada, como é o caso da a-criticidade e do arrebanhamento dos homens, é sinal de que a mudança, ou mesmo re-valoração, poderá ser dolorosa. Talvez o esquecimento teria um caráter de emplasto – talvez de cura –, uma vez que o homem precisa encontrar alguma cura para tais sintomas.
Ao negarmos nossos valores mais primitivos apenas por estarmos em estado de civilidade, é sinal de obediência e subordinação a este estado o qual, segundo Rousseau (1997), deixa os homens doentes. Pode parecer uma visão romântica, contudo, a partir do instante em que o homem consegue seu arrebatamento, repensando seus valores, pode ser que nossa comoção, ao ver o rebanho pastar, acabe sendo meramente a comoção para com os miseráveis, jamais uma vontade de voltarmos a este estágio.
Esta visão que Nietzsche traz, gravada a ira e cólera, é muito antiga; do tempo em que virtude era sinal de força e não de degenerescência, como tornou-se após a efetivação da sociedade socrático-cristã. Como pode ser visto, a noção valorativa que aqui se apresenta é algo da Antigüidade: talvez aquilo que Heráclito chamou de estado de guerra de uma multiplicidade, surgida na unidade do Logos.
Em face disso, o vigor pretendido por Nietzsche, bem como se mostra na vontade humana, também pode ser remetido à História: movimento constante e processual que joga o homem em ambientes e que também pode submetê-lo ao tempo da Tradição e da subordinança.
O homem, quando não consegue impor este vigor à obra de seu tempo, na comparação de Nietzsche, é como um animal de uma vida não-histórica. Quando se pensa que este seria o homem ideal, de fato, o é para a Tradição. Com efeito, a existência do homem deveria ser pensada como algo imperfeito, e que não há de se completar jamais. Eis, quiçá, o maior pressuposto para se viver extemporâneo, encarando o conhecimento como um acúmulo aberto e não um acúmulo fechado como o é na História que Nietzsche questiona.
Vejamos então como se faz este homem, segundo o filósofo, e como deveria ser:

Quando, por fim, a morte traz o esquecimento desejado, rouba-nos simultaneamente o presente e a existência e põe o selo definitivo sobre a verdade, que ser não passa de um ter sido ininterrupto, uma coisa que vive de se negar e de se consumir, de se contradizer a si própria.        (Co.Ext.II; 1973: § 1)

Este homem que se quer em rebanho é justamente o homem do negar-se a sua vontade e do consumir-se a si mesmo. Chega então o selo da morte, que se há de dizer daquilo que tal homem deveria ter feito? Há de se dizer que sua vida não existira, que sua vontade não acontecera e que é justamente o oposto do homem que usa de seu esquecimento para ousar repensar o passado e toda a História da Filosofia. Na obra em específico o grande questionamento de Nietzsche é sobre estes homens; os velhos moralistas, guardiões da sacralidade do Tempo. Senhores de ofício e gosto requintados e que, por serem assim, se negam e se consomem em detrimento do statu quo epistemológico.
Nietzsche esboça encontrar um homem o qual, baseado em seu cinismo, não bajula, ao contrário, está sempre disposto a ironizar o passado, questionar a História e propor novos valores. Portanto, os valores antigos precisam ser transvalorados, necessita-se, para isso, de um homem o qual tenha espírito livre e vontade de potência; mostrando-se sempre que é capaz. Imagina-se que referido homem tenha a possibilidade de esquecer, ou mesmo a faculdade de sentir-se momentaneamente fora da história, em suspenso, até mesmo com a intenção de compreendê-la com um outro olhar e novos valores.
Todo ato de ação, nesse contexto, requer que tal homem se utilize do esquecimento e, como verdadeiro discípulo de Heráclito, se insira no devir e guerreie com o mesmo, contrapondo valores e fazendo explodir um caos na unidade, mostrando que, a partir do Uno, possa explodir um universo estelar, com uma estrela dançante. Este homem não se deixa perder na torrente do devir, mas se deixa envolver na luz e na obscuridade deste acontecimento sem, jamais, abrir mão da contradição; jogar com o jogo dos contrários é o único meio de desobrigar a Tradição de seu posto de única dona da verdade.
Para que se torne o coveiro do passado, conforme Nietzsche, seria necessário conhecer a medida exata da foca plástica de um homem, de uma nação, de uma civilização. Aqui temos, portanto, o conhecimento do homem baseado na faculdade de crescer por si mesmo, transformando e assimilando o passado e o heterogêneo, fazendo com que as feridas se fechem – porém, sempre deixando a cicatriz –, reparando perdas e reconstruindo formas que foram destruídas pela História. “Quanto mais o temperamento do homem está fortemente enraizado nele, tanto melhor saberá apropriar-se de largas porções do passado, ou dominá-las”. (Co.Ext.II; 1973: § 1)
Cabe aqui a intervenção no passado, não com um instrumento qualquer, mas com o vigor de uma transformação conceitual, de um caos interior que parteje uma estrela dançarina, assim como nos apresenta Nietzsche em Humano, Demasiado Humano. Se o passado já existe não significa que esteja fechado, caso o encontre fechado há que se quebrá-lo, pois: o sentido histórico e a sua negação são igualmente necessários à saúde de um indivíduo, de uma nação e de uma civilização.
Assim, a História deve ser pensada não como um emplasto apenas, mas como uma cura. Cura esta somente possível quando a força plástica de um homem entra em cena, não quando tememos este passado (talvez por sua pretensa autoridade). A autoridade do passado precisa ser questionada, apenas como tal poderíamos ter uma transvaloração de valores. Trata-se, pois, de saber esquecer o tempo, como de saber recordar o tempo, cada qual em seu momento. Somente um espírito vigoroso nos adverte a saber o momento certo de ver as coisas historicamente. E, para tal, o sentido histórico nem sempre é o melhor caminho para evitarmos o definhamento e a degenerescência. Se falta sentido histórico não deve faltar força plástica, pois é ela a responsável por determinar a coerência de nossos atos. Aquilo que é grande e humano nem sempre é ‘ético’ e histórico!
Para que compreendamos melhor a colocação acima:

É, pois, pela faculdade que ele [homem] tem de fazer servir o passado à vida e de refazer a história com o passado, que o homem se torna homem; mas um excesso de história destrói o homem e ele não teria começado a pensar, sem esta nebulosa que envolve a vida, antes da história. (Co.Ext.II; 1973: § 1)

Como se vê, nem sempre os valores que possuímos dão conta de entender o mundo onde habitamos. Quando de uma situação tal como essa, o melhor a se fazer é repensar os valores e, se necessário, recriarmos verdades, nem que para isso usemos de uma etimologia totalmente nova. O âmbito do conhecimento não pode ser sistematizado, nem tampouco seccionado. Existem fenômenos epistemológicos os quais não competem à consciência humana, daí a necessidade de se expandir para compreender (jamais sistematizar).
A nossa memória, ao girar dentro do mesmo círculo, se cansa. O incrível é que não vemos isso, a não ser num estágio de assombro perante certas situações inabituais. Caso continuemos com a memória girando ao redor do mesmo círculo ela tornar-se-á excessivamente fraca, incapaz de ultrapassar os limites da nossa razão. É neste momento que deve entrar a sem-razão – non-sense – do conhecimento e seu salto no escuro.
O conhecimento, quando do non-sense, deve ser compreendido fora de qualquer pensamento histórico-temporal, por isso a necessidade em ultrapassar a História, repropondo-a. Há que se pensar o resultado possível de cogitações históricas.
Para Nietzsche, todo o passado merece condenação, uma vez que nele se misturaram toda a fraqueza e força do homem. A partir do momento em que o submetemos a um critério rigoroso, tornamo-lo crítico; instante em que o homem aplica sua força sobre o mesmo e se debruça sobre hipóteses nunca dantes pensadas. Porque, uma vez sendo frutos das gerações passadas, também somos frutos dos seus desvios e paixões, como dos seus erros e até mesmo de seus crimes, daí a importância em haver um julgamento que zele pela clareza e pela verossimilhança. Podemos condenar estes erros, achando que assim estaríamos isentos deles, todavia tal situação não impede nossa origem nestes erros. A origem de nossos valores e hábitos, além de nossas fraquezas e erros. E, de acordo com Nietzsche, na melhor das hipóteses, chegaremos a um conflito entre a nossa natureza herdada e hereditária e o nosso conhecimento, a uma luta entre uma nova e estrita disciplina e o que é inato em nós ou nos foi inculcado pela educação. (Co.Ext.II; 1974: § 3)
A partir do momento em que alvejamos este passado de erro é como se estivéssemos implantando uma segunda natureza, que farão morrer a nossa primeira natureza. É como se poderíamos conseguir, posteriormente, um passado que poderia ter sido, e não o que temos enquanto instrumento de conhecimento. Este novo passado, talvez menos deturpado poderia ser utilizado como mecanismo de mudança futura, desde os valores mais básicos do homem até sua relação com a sociedade e seu estado civil. Contudo, isto poderia nos jogar em um erro maior, pois a segunda natureza é sempre mais débil que a primeira e bem mais corruptível, claro que toda tentativa é perigosa e, indo mais além, muito mais perigoso é não perscrutar este passado e, quiçá, não repensar esta primeira natureza (a mesma que seguimos junto a um passado bajulador e nem um pouco crítico, ou até passível de crítica). A História crítica deve ser posta a serviço da vida e é justamente o contrário o que, atualmente, se faz.
O homem que quer a verdade a quer não:

Não como um conhecimento frio e estéril, mas como verdade que julga, ordena e pune, como uma verdade que não é propriedade egoísta do indivíduo, mas direito sagrado de deslocar os limites de todas as propriedades egoístas, uma verdade, em suma, que é julgamento final e que, em nenhum caso, é presa fortuita e prazer de um caçador isolado. (Co.Ext.II; 1974: § 6)

Na medida em que a verdade não for mais presa de um tempo e de uma História equivocada, assim como a que temos, ela terá mais fidedignidade para com suas palavras, dando novas margens e novos valores a este que o é o mundo mais falso e ilusório de todos. Vivemos sob máscaras, mas ao invés de às pensarmos como algo positivo, o qual temos controle, a vivemos como algo pejorativo e prejudicial à sabedoria e, em específico, à verdade na Filosofia.
Temos que nos rebelar contra o hábito inveterado de repetir, aprender e imitar; há que se buscar o novo no novo e não o novo no que está aí e se faz passar por novo. A cultura deve ser pensada como algo mais, além do mero ornamento da vida que cultuamos. Esta maneira que temos de disfarçar a verdade tem deixado as verdades escondidas e obscurecidas pelo clarão da História; qualquer ornamento esconde aquilo que enfeita. Quando arrancarmos referidos ornamentos, aí sim, teríamos uma revolução, onde o conhecimento teria valor, de fato, de sabedoria e verossimilhança, para com cada um de nós e para com nossos espíritos inquietos.
Enfim, a cultura deve ser pensada sem distinção entre o interior e o exterior, sem dissimulação e sem convenção, cultura concebida como a união da vida e do pensamento, da aparência e do querer. Todo progresso em sinceridade deve preparar e favorecer a cultura autêntica, mesmo que a sinceridade prejudique aqueles que gozem do status de classe culta, ou mesmo elite intelectual de um povo (Co.Ext.II; 1973: § 10). E a cultura em progresso é justamente o que Nietzsche concebe como sendo a História que precisa ser repensada, dando margem para que o conhecimento tenha validade extemporânea, mantendo-o aquém das dissimulações de uma Era em específica.

Referência Bibliográfica


NIETZSCHE, F.W. (1973). Considerações Intempestivas. Lisboa: Editorial Presença.
NIETZSCHE, F.W. (2000). Sobre la utilidad y los Perjuicios de la Historia para la Vida. Madrid: Editorial EDAF.
NIETZSCHE, F.W. (2000). Crepúsculo dos Ídolos, ou como filosofar com o martelo. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
NIETZSCHE, F.W. (2000). Assim Falou Zaratustra, um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Martin Claret.
ROUSSEAU, J.J. (1997). Discurso Sobre a Desigualdade dos Homens. São Paulo: Abril Cultural.

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