segunda-feira, 19 de março de 2012

Estado de Direito: Entre Imposição e Crise



A noção de Estado, assim como conhecemos hoje, está diretamente ligada à constituição de núcleos centralizados, responsáveis por administrar e tributar aqueles que se inscrevem num território geograficamente constituído. Historicamente, o primeiro reino a se constituir em tal estrutura social foi o reino de Portugal (primeiro Estado politicamente constituído), sendo seguido por Espanha, França e Inglaterra.
Vejamos como Faoro (2000) descreve a constituição desse Estado, constituição notadamente marcada pela guerra:

A Península Ibérica formou, plasmou e constituiu a sociedade sob o império da guerra. Despertou, na História, com as lutas de Aníbal, viveu a ocupação germânica, contestada vitoriosamente pelos mouros. Duas civilizações – uma do Ocidente remoto, outra do Oriente Próximo – pelejaram rudemente dentro de suas fronteiras pela hegemonia da Europa. Das ruínas do império visigótico, disciplinado e enriquecido pela cultura dos vencidos, dilacerado em pequenos reinos, gerou-se um mundo novo e ardente, que transmitiu sua fisionomia aos tempos modernos. Do longo predomínio da espada, marcado de cicatrizes gloriosas, nasceu, em direção às praias do Atlântico, o reino de Portugal, filho da revolução da independência e da conquista. (FAORO, 2000: 5)

Como se percebe, a força da espada legou aos Estados nacionais sua herança. Isso fica bem patente na forma como o Estado de Direito (constituído após a consolidação do Estado civil e político, como forma de controlar as pessoas) ainda usa da violência para se manter, embora seja uma violência silenciosa, onde a força da espada cedeu lugar à força da coerção, e como nossas leis acabam ainda praticando tão ‘valente’ feitio.
Aqui também podemos encontrar a origem do poder, tão violenta como. Pelo menos é o que nos mostra Foucault (1999: 27-48) em uma de suas várias aulas no Collége de France, entre os anos de 1975 e 1976, reunidas no livro Em Defesa da Sociedade.
Nesse sentido, a sociedade quando vista pela noção do poder exercido sobre os povos, instância praticada pelo Estado de Direito, mostra situações que nos remetem à nossa insignificância perante a imposição de seu poder, isto é, deixa-nos, de forma irremediável, onde gostaria que ficássemos. São práticas de poder que, assim como são aplicadas, em instante algum conseguimos perceber, isso por ser algo tão inerente à nossa existência de submissos que  não nos chega enquanto situação concreta: nós mesmos nos dispomos a aceitar tal imposição, uma vez que estão amparadas por leis. Apenas enquanto aparato ideológico percebemos, pois imaginamos que não conseguiríamos mudar esta situação.
Este Estado impositor sempre existiu, ele apenas se aperfeiçoa ao longo do tempo e, baseado nas necessidades de cada era, muda de roupagem e restabelece uma nova ordem.
A origem do poder, com efeito, se encontra aguerrida de aparatos sociais e jurídicos, assim, ao estudar o ‘como do poder’, apreendendo a partir de então todos seus mecanismos, além disso, tendo como dois pontos de referência tais como: as regras de Direito que o delimita formalmente e, de outro lado; os efeitos de verdade que este poder produz, conduzindo-se em si eternamente, logo podemos deduzir o quanto as verdades que nos circundam nada mais são que ‘regras de conduta’ para se viver dentro da instituição do Estado.
Dessa forma, me remeto ao discurso da filosofia da verdade – esta preconizada pelo Estado de Direito – e até do forjamento da mesma:

(...) como o discurso da verdade ou, pura e simplesmente, como a filosofia entendida como o discurso por excelência da verdade, podem fixar limites de direito de poder? (FOUCAULT, 1999: 28)

A pergunta acima, feita por Foucault na década de 1970, também pode ser feita nos dias atuais, porém, sob o primas de uma reflexão mais profunda. Será que a estrutura, outrora e ainda reinante, não pode ser vista dentro do atual Estado de Direito, onde público e privado são, por excelência, uma babel de interposições? E ainda, uma teia criada por homens, de tal maneira tão perfeita que acabamos por reportar-lhe uma áurea natural e verdadeira, digna de nos representar.
Assim se constitui o Estado, este mesmo que, já em sua criação, mostrou-se violento e que, eivado dessa herança, persegue-nos; como se o homem não conseguisse viver senão dentro de uma relação de força e poder.
Portanto, essa relação de poder, remetida à teia de verdades que a mesma criou, impõe regras de conduta que por sua – semelhante – tão natural  justaposição chega como se sendo únicas e verdadeiras, dignas de submissão e respeito, eis então o motivo de se refletir acerca, o que poderia possibilitar ao homem que o mesmo se torne agente de compreensão e até mudança, bem aos moldes marxistas; todavia sem o ranço de seu economicismo.
O corpo social que então seguimos perpassa toda a noção de relacionamento, caracterizando-nos e nos constituindo como tal, instaurando a produção, acumulação e funcionamento do discurso – do Estado tornando-se também nosso – que, verdadeiro concebemos, sem ao menos indagarmos o porquê. Assim, somos submetidos pelo poder à (re)produção da verdade e só podemos exercer este poder mediante a produção da verdade (FOUCAULT, 1999: 29). Vale ressaltar que este poder, o qual seguimos e até nos subordinamos, é o poder constituído por um ideário burguês de livre iniciativa – sem o ser um pontinho sequer –, que nos persegue desde tempos mais remotos (pelo menos desde a instauração do Estado burguês que, na cola da simbologia ibérica e do pensamento Iluminista, dá ‘liberdade’ aos homens), amparados pelo corpo judiciário, incitando-nos, dentro da liberdade burguesa, á docilidade e subserviência, posto entre nós por aqueles que, desde longínqua data, exerce sua soberania na sociedade.
Essa verdade que somos forçados a reproduzir é exigida pelo poder e, sendo assim, também é necessária a esse poder para que o mesmo sobreviva na instituição do Estado. Pelo fato de sermos coagidos a dizer a verdade, buscando-a como a uma condenação, ademais, se institucionaliza a busca da verdade, restando aos homens a subserviência à mesma – incorporada no Estado e sua instituição personalista, onde elementos políticos os mais distintos, representantes do público, pesam o privado e o institui como público, pondo suas vontades pessoais acima da vontade de toda a população que os elegeram; talvez esta seria a maior crise da atual instituição denominada Estado, notadamente seu braço político –, isso para que sejamos lícitos junto ao corpo social – um corpo social muito mais rousseauniano que hobbesiano –, portanto esta verdade se forja como regras de Direito, mecanismos de poder e efeitos de verdade.
A noção do pensamento jurídico, responsável por dar corpo ao Estado, voltado à elaboração do poder, fez-se corpo concreto, nas sociedades ocidentais modernas, no limiar da Idade Média – visto que Portugal se faz Estado nacional por volta de 1385, com um patente apoio da burguesia –, isso com a justificativa de instrumentalizar a soberania daquele que a elaborou, ou seja, um direito sob encomenda, tendo como papel essencial a legitimação do poder enquanto aparato jurídico, com o único intuito de dominação – aquém da centralização –; uma encomenda régia aos súditos.
Contudo, essa elaboração jurídica teve como função mascarar duas coisas: os direitos ilegítimos da soberania monárquica – ainda sob a tutela do Manual de Bossuet – e a obrigação legal de obediência, para que não haja uma perda (pelo fato de que essa posse tenha sido ordenada juridicamente em proveito do ‘real’ proprietário, aquele que eterniza e centraliza o poder).
O Direito – todo e qualquer aparelho institucionalizado para regulamentar a aplicar as jurisprudências jurídicas – torna-se instrumento de dominação e veiculação das relações sociais, tendo como centro a soberania daquele que, então, forjou tal aparelho (a propósito, uma caricatura assaz honesta do Estado).
As várias formas responsáveis pela sujeição do corpo social ao Direito faz com que todo o aparelho estatal se condicione ao reduto de seu locus uno, assim, nada mais é necessário para poder congregar em si todo o rebanho social que se condicionou aí.
Neste momento, parece que o replicar de Nietzsche sempre fora coerente e profético quando de seu denominação de Instinto (ou Moral) de Rebanho:

Em qualquer lugar onde nos deparamos com uma moral, encontramos uma avaliação e uma classificação hierárquica dos instintos e dos atos humanos. Tais classificações e avaliações expressam as necessidades de uma comunidade, de um rebanho: aquilo que beneficia o rebanho, que lhe é útil em primeiro lugar – e em segundo e em terceiro – é o que serve também de medida suprema do valor de qualquer indivíduo. A moral ensina ao homem a ser a função do rebanho [o Estado apenas condiciona], e a se atribuir valor somente como função. Uma vez que as condições de conservação eram muito diferentes; e, se considerarmos todas as transformações essenciais que os rebanhos e as comunidades, os Estados e as sociedades são ainda chamadas a sofrer, pode-se profetizar que haverá ainda morais muito divergentes. Moralidade é o instinto gregário no indivíduo. (NIETZSCHE, 2003: § 116)

Enquanto colocamos o ser social como o alimento do Estado, em Nietzsche o mesmo assume o nome de Moralidade. Pode até destoar do tema em questão, no entanto, aquilo que aproxima os homens, chamado por Hobbes de estado de civilidade, para Nietzsche, é o grande elo que mantém o Estado ainda imponente e, sempre, presente.
Se a discussão gira em torno da crise do Estado, imagino que a mesma esteja justamente nas pessoas que, para além da sensação de rebanho, há por parte de alguns de nossos representantes políticos justamente o uso deste arrebanhamento para continuarem na máquina estatal, dando ao público um caráter cada vez mais privativo, daí a importância em inserir Nietzsche nesta discussão.
Para que possamos compreender este poder e sua institucionalização – e até mesmo tentando reconcebê-lo, faz-se necessário uma reavaliação de todo Estado de Direito, máquina que garante integridade ao atual Estado, sendo responsável, inclusive, pela crise que o mesmo tem passado –, e tendo como viés sua face externa; aquela que se encontra arraigada no corpo social, responsável por produzir seus efeitos reais na exteriorização do Estado; pode-se dizer que a noção de Estado, assim como hoje se encontra, precisa ser reavaliada. Assim compreendido, passa-se para a etapa da indagação, pois o poder, tal como aparelhado, não pode mais ser visto através de uma reprodução, senão de uma higienização de seu teor.
O poder, como o vemos no Estado de Direito, circula como em uma cadeia; só funciona m se complementando-o com seu circuito, é um para-si e não um em-si – talvez um dos motivos desta confusão, onde o privado se sobrepõe ao público –, suas justificativas só têm efeito quando postas em prática, dessa maneira o indivíduo torna-se um efeito desse poder, sendo também um intermediário; isto é, seria o locus onde esse poder se aplica e se constitui como tal.
Situação que acaba ocasionando a repressão do indivíduo em detrimento do Estado:

Pois bem, simplesmente, como o corpo humano se tornou essencialmente força produtiva a partir dos séculos XVII e XVIII [Revolução Industrial], todas as formas de dispêndio irredutíveis a essas relações, à constituição das forças produtivas, todas as formas de dispêndio assim manifestadas em sua inutilidade, foram banidas, excluídas, reprimidas. (FOUCAULT, 1999: 37)

Assim foram surgindo aparatos, dentro do Estado de Direito, para que houvesse a (auto)repressão de pessoas que não se enquadram no perfil dessa sociedade industrial-burguesa. Tudo instrumentalizado pelo poder político de uns sobre outros, exercido a cada dia sob a proteção da justiça; a mesma que proporciona aos excluídos ‘uma chance de se reabilitarem’, de acordo com o processo apregoado por eles e seus instrumentos ideológicos, podendo assim citar a repressão sexual iniciada ainda na infância ou até mesmo a excludente política de banimento da loucura; a mesma que aprisiona quem não quer se enquadrar junto ao processo social, processo que se fundamenta no poder político-jurídico. Um exemplo dessa adequação seria o uso da força de trabalho, conduzindo o homem a uma caminhada junto ao corpo social e ao seu mundo do trabalho.
Tais mecanismos são complementos do conjunto social, ambos se igualam na caminhada da construção do Estado de Direito – até mesmo a noção de democracia se encaixaria nesta adequação, pelo menos a noção que rege nosso corpus político –, conduzidos pelo poder político e institucionalizado pelo poder jurídico:

(...) o poder, quando se exerce em seus mecanismos finos, não pode fazê-lo sem a formação, a organização e sem pôr em circulação um saber, ou melhor, aparelhos de saber que não são acompanhamentos ou edifícios ideológicos. (FOUCAULT, 1999: 40)

Se molda o corpo social de acordo com o poder jurídico e político que, no momento em específico, se mostra soberano, nesse sentido, as ideologias têm papéis importantíssimos, pois, as verdades como as conhecemos advêm de sua criação.
Com relação à instância público e privado podemos encontrar em Habermas (1997) uma discussão muito interessante, até mesmo como forma de balizar as preocupações político-jurídicas até então em evidência.
O grande erro, responsável pela crise do Estado atualmente, diz respeito, como dito acima, à confusão das noções de esfera pública e privada:

Esfera ou espaço público é um fenômeno social elementar, do mesmo modo que a ação, o ator, o grupo ou a coletividade; porém, ele não é arrolado entre os conceitos tradicionais elaborados para descrever a ordem social. A esfera pública não pode ser entendida como uma instituição, nem como uma organização, pois, ela não constitui uma estrutura normativa capaz de diferenciar entre competências e papéis, nem regula o modo de pertença a uma organização, etc. Tampouco ela constitui um sistema, pois, mesmo que seja possível delinear seus limites internos, exteriormente ela se caracteriza através de horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis. (HABERMAS, 1997: 92)

A comunicação de conteúdos, capaz de melhor gerir o aparelho do Estado, esta sim pode ser compreendida e descrita como esfera pública, diferente da institucionalização de um poder burocratizado dum certo grupo, tal como perpassa o atual Estado.
Acresce-se a isso a noção de democracia que, como se saber, também oferece uma enorme confusão para aqueles indivíduos que aparelharam o Estado. São situações que, dentro de um determinado ambiente social, gera incerteza e crise, pois as pessoas não têm plenas condições de melhor escolher seus representantes.
Imagino que esta crise nada mais é que uma má interpretação de certos preceitos como público e privado, além de má-fé por parte de alguns indivíduos que, se utilizando de seu poder de arrebanhamento, coloca todo mundo dentro de seu âmbito de poder e controle, uma vez que já vimos que existem forças muito constantes em nossa estrutura filosófico-jurídica, acarretando uma pressão invisível e uma violência silenciosa sobre as pessoas.
Se começara violento não seria agora que o Estado mudaria, apesar de haver um mal uso da máquina, ainda somos coagidos por um código de leis que mostra seu poder punitivo a todo momento.
Enfim, o poder enquanto instituição de ‘direito’, condutor dos rumos que os homens ‘optam’ por seguir, nada mais é que veículo peculiar de dominação e soberania alheia; bem , peculiar em que instância? Ora, a partir do momento em que o homem conduz sua vida moldado em leis que, nem sempre – ou nunca – foram criadas de forma natural, esse mesmo homem acaba por acatar sua inferioridade enquanto possibilidade de poder social. E, dessa maneira, não consegue refletir – nem tampouco agir – sobre seu real papel no meio social em que vive, tornando-se indivíduo inerente ao que o corpo social apregoou como normas a serem seguidas, as mesmas que são criadas com o único intuito de reprodução dos inúmeros instrumentos sociais em que está exposto, os mesmo que repercutem no aparelho de Direito como controle da passividade humana.


BIBLIOGRAFIA UTILIZADA

ALLEZ, Eric (1988). Contratempo: ensaios sobre algumas metamorfoses do capital. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
FAORO, Raymundo (2000). Os Donos do Poder (vol. I), 10 ed. São Paulo: Globo; Publifolha.
FOUCAULT, Michel (1999). Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes.
HABERMAS, Jürgen (1997). Direito e Democracia: entre facticidade e validade (vol. II). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
NIETZSCHE, Friedrich (2003). Gaia Ciência. São Paulo: Martin Claret.

Nenhum comentário: