quinta-feira, 29 de maio de 2008

Nietzsche e Descartes... uma Peleja!


Ao atrelar instinto e razão, é como se o homem visse de forma mais profunda os elementos que o circunda sem, com isso, ainda reforçar o externo para dizer sobre o que viste tão profundamente em seu Eu. Este ver em profundidade tira do homem sua situação de rebanho, como não convém tirar isso do homem, pois, não tirando, ele será mais facilmente manipulável, optou-se por destruir os últimos resquícios daquilo que poderia fazer do homem um objetivo em si mesmo – seu instinto. Daí se aproximar mais da profundidade do saber.

Por outro lado, o alheamento, que desde o início fora adotado como estratégia para Nietzsche, só faz sentido quando o que está posto seria, justamente, o mundo moderno, este mesmo que Descartes racionalizara, dando uma mãozinha para seu nascimento, logo, nos mostrara sua superficialidade, pois, de outra forma, não haveria necessidade do mesmo.

E seria o medo de se aprofundar, pois isso não conserva a espécie, que faz com que Descartes se apresente como superficial, pois, para Nietzsche em Além de Bem e Mal; § 59: “Quem observou o mundo em profundidade, percebe quanta sabedoria existe no fato de os homens serem superficiais. É o seu instinto conservador que lhes ensina a ser volúveis, ligeiros e falsos. Aqui e ali encontramos, entre filósofos e entre artistas, um culto apaixonado e excessivo das “formas puras”: ninguém duvide que quem necessita de tal maneira adorar a superfície, em algum momento fez uma incursão infeliz por baixo dela.”

O fato de tentar se conservar, fez com que, no jogo entre razão e instinto, a filosofia tenha sempre optado pelo primeiro elemento, apesar de antes de Descartes ambos aparecerem, ao menos, como algo a se pensar; diferente do período pós Descartes. E o projeto Iluminista, por não ser diferente, e por fazer parte deste percurso, nada fez que, também, priorizar a razão. Deixando o mais profundo do filosofar, sempre, em segundo plano – mais profundo, ao menos sob o ponto de vista de Nietzsche; mas não somente o instinto, e sim o eterno embate entre instinto e razão.

Se Descartes fora superficial, também o fora o projeto Iluminista. A crença na inexorabilidade do saber racional, sempre tentou se fundamentar por apenas um saber racionalmente comprovável, e não o instinto: que traria um outro norte, e um outro elemento – como o abismo, por exemplo, ou mesmo o pensar sobre o abismo – para o próprio saber.

E André Luís Mota Itaparica, num artigo de 2000, publicado na revista Cadernos Nietzsche da USP, intitulado Nietzsche e a “Superficialidade” de Descartes nos afirma isso com mais veemência, na seguinte passagem: “Vemos então que, dentre os filósofos mencionados [Sócrates e Platão], Descartes teria sido o mais astuto, pois, ficando na superfície, negando toda e qualquer importância aos instintos, teria sido o mais eficaz em ocultá-los.”

Apesar de tudo isso, o que diferencia Descartes de Platão e Sócrates é que estes ainda postulavam a probabilidade dos instintos, diferente de Descartes que, pelo cogitare, negaria completamente estes instintos, como elementos necessários e constitutivos da fundamentação e criação do saber.

E como Descartes seria o pai da modernidade, e o avô do Iluminismo, a inflexão nietzscheana teria nele, exatamente, seu maior referencial de contra-prova.

O próprio alheamento seria diferente do cogitare, como afirma Descartes em Meditações, que faria o seguinte caminho: “Quando alguém diz: Penso, logo existo, ele não conclui sua existência de seu pensamento como uma coisa conhecida por si. Ele a vê por simples inspeção do espírito. Como se evidencia do fato de que, se a deduzisse por meio do silogismo, deveria antes conhecer esta premissa: tudo o que pensa é ou existe. Mas, ao contrário, esta lhe é ensinada por ele sentir em si próprio que não possa se dar que ele pense, caso não exista.”

Até há o sentir em si próprio, como o fragmento se-nos apresenta, contudo, este sentir em si próprio parte da premissa de que tudo o que pensa é ou existe, eis quando surge a possibilidade do erro, justamente por este ser pensante partir do exterior para poder se afirmar, ou melhor, partir do que é ou existe, e, com isso, afirmar seu próprio pensamento, afirmando com isso, cada vez mais, o rebanho.

O elemento externo, e isso fica bem evidente em Nietzsche, está propenso a um constante enganar-se, até para não deixar transparecer as segundas intenções.

A superficialidade de Descartes, poderíamos resumir da seguinte forma, como nos apresenta, novamente, Itaparica: “Descartes foi superficial, enfim, por conceber o pensamento em sua superfície – a linguagem –, escondendo que a lógica repousa na crença em uma verdade universal e necessária, cujo único fundamento é a postulação de um Deus sumamente bom. É assim que Nietzsche pode se dirigir àquele que diz eu penso, e ao menos sei que isso é verdadeiro, real e certo da seguinte forma: Caro senhor (...), é improvável que o senhor não se engane; mas por que sempre a verdade? – (JGB/BM, 16).”

E o próprio fato de Descartes pensar Deus como sendo sumamente bom, já nos demonstra uma certa inocência de sua parte, pois, esta noção nos fora incutida por toda a Tradição, logo, por elementos externos, propensos ao erro. Basta pegar as tragédias euripidianas, no exato momento em que a trama apresenta um nó, e como o deus ex machina intervém, ou seja, como ele direciona para um fim que ele desejaria que acontecesse, e não o fim no qual a trama desembocaria consequentemente.

Ora, pode-se dizer que o Deus cartesiano, sendo também o Deus cristão, não faria isso, mas fica a grande questão: e por que há a intervenção? Se não por parte dele, ao menos por parte da culpa que nos fora incutida, quando de nosso nascimento, e do pecado original.

E isso é totalmente válido para a filosofia cartesiana, o quê dizer então duma possível filosofia nietzscheana?

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