sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

O Diário do Farol: A Face do Mal


Questão que perpassa conceitos de moralidade, ética e religião a dicotomia entre bem e mal é discussão de interesse milenar. Dos relatos bíblicos da queda de Satã e do livre arbítrio do homem, fábulas infantis, sabedoria do senso comum, às inúmeras obras artísticas e narrativas literárias, a discussão gira em torno da negatividade do mal e fator positivo do bem. Em uma perspectiva contrária, a personagem central de O Diário do Farol, de João Ubaldo Ribeiro, incita o leitor a uma reflexão sobre a essência humana no mal, motivo central desta edição.

A obra é narrada por uma personagem voluntariamente anônima que se denomina o faroleiro, e que, aos sessenta anos de idade, vive isolada em uma ilhota deserta, inóspita e de difícil acesso, se dedicando a registrar, em um relato em forma de diário, suas memórias de uma vida calcada na vingança, no ódio e na ambição.

Vítima da dor da perda da mãe, morta por seu pai, e da incessante violência paterna, física e psicológica, cresce com a determinação de vingar-se do pai assassino e de sua tia materna, irmã de sua mãe, parceira e cúmplice no crime, que passa a ser sua madrasta. Mostra-se com uma aptidão prazerosa em toda forma de vilania para atingir sua meta, desenvolvendo uma personalidade dissimulada e voltada para a farsa. Conta com o auxílio da sua mãe morta, que se mostra presente através de uma voz que acompanha e incentiva os atos do filho vingador: ... sou movido a escrever este relato, mais fortemente que pelos outros motivos, pela minha Vaidade em me considerar o pior dos seres humanos, o único, que eu saiba, que encarnou em si tudo o que lhe conveio, sem permitir que o filtro de qualquer valor erguesse impedimento. Veja bem, isso não me retira a solidão, antes a sublinha. Não fiz, nem de longe, tudo que de mau já se fez, mas teria feito, se houvesse oportunidade. Sou, portanto, para o espelho de minha absoluta Vaidade, o pior dos homens, o que cometeria o que de mais hediondo se pudesse conceber e chegou a uma quantidade difícil de igualar, não em número, mas em qualidade. Eu sou um grande mau, dir-se-ia (p. 23).

Batiza o farol em que vive com o irônico nome de Lúcifer, o príncipe da luz, criado por Deus, que se revolta contra o Criador, formando um reino adverso. E intenta com seu relato (e a vaidade que o leva à escritura) incutir no leitor um incômodo, levando-o a entender sua própria solidão e loucura, condição, acredita ele, perene a todo e qualquer ser humano. Entende o homem como um ser solitário por nascimento, natureza, sentimento e vida, que teria uma curiosidade essencial sobre a confirmação secreta de sua sanidade. Os atos que aparentemente seriam mais repugnantes aos seus olhos e aos do mundo são interiormente praticados, encontrando na especulação da alma alheia o confronto com sua própria natureza de assassinos, invejosos, devassos, traidores, egoístas, mentirosos, pusilânimes, canalhas, mesquinhos, hipócritas, adúlteros, santos neuróticos, antropófagos, parricidas, matricidas, infanticidas, estupradores, todos, todos, todos os que estão dentro dele mesmo (p. 18).

Esse lado mau que cada homem traz dentro de si, e por condições externas impostas pela educação e convívio social, mantém reprimido, ganha um contorno fantástico na história do visconde Medardo di Terralba, em O Visconde Partido ao Meio, de Ítalo Calvino. Em certa guerra contra os turcos, nas planícies da Boêmia, o visconde é atingido por uma bala de canhão que o corta em dois no sentido longitudinal. A parte direita se mantém intacta, perfeitamente conservada, exceto pela enorme rasgadura que a separara da parte esquerda estraçalhada – esta, dada como inválida. É socorrido, e, após uma incrível intervenção cirúrgica, resiste, vivo e partido ao meio. Os habitantes de Terralba – após o retorno de Medardo à terra natal – logo perceberiam que não era só a aparência do mestre que havia mudado. De aspecto sombrio e taciturno, dedica-se a praticar pequenas maldades e, após a morte do pai, que morre em uma espécie de entrega desgostosa, Medardo assume o viscondado e inicia uma série de maldades pela região. Condenava culpados e inocentes à forca, incendiava bosques inteiros, vitimando pobres camponeses, e até mesmo o próprio castelo com sua ama dentro – ela que outrora lhe substituira a demanda de afeto causada pela ausência materna.

No entanto, a sua metade dada por perdida sobrevivera e volta em uma espécie de antípoda, sendo toda ela boas ações. Em um comportamento maniqueísta, o Mesquinho e o Bom seguem vidas de atos divergentes – um destrói e o outro repara – até o confronto final, no qual, bem e mal, tentando sobrepujarem-se, terminam por destruírem-se mutuamente. Após uma elaborada cirurgia, o visconde tem suas partes restauradas e reunificadas: Assim, meu tio Medardo voltou a ser um homem inteiro, nem mau nem bom, uma mistura de maldade e bondade, isto é, aparentemente igual ao que era antes de se partir ao meio. Mas tinha a experiência de uma e de outra metade refundidas, por isso devia ser bem sábio (p. 11).

Essa caricatura do uno que concentra em si virtude e vício, em medidas exatas e conflitantes, ilustra nitidamente o pensamento maniqueísta. O Maniqueísmo foi fundado na Pérsia, no século III, por Mani, também conhecido por Maniqueu, e tem como principal fundamento o dualismo absoluto. Defende que o universo está, assim, dividido em dois princípios básicos e absolutos: Luz e Trevas, ou Bem e Mal, tendo cada qual um reino próprio, que são distintos e separados entre si. O reino da luz é a manifestação do bem e do espírito; o das trevas, morada da matéria e lugar próprio de todo mal. A doutrina maniqueísta pregava um perene exercício de purificação que consistia em uma constante discriminação do bem e do mal, visando, através de uma conduta de vida reta e obediente aos preceitos maniqueus, libertar as partículas de luz aprisionadas na matéria, permitindo seu retorno ao reino da luz e, dessa forma, facilitando e apressando a separação definitiva entre bem e mal. Não podendo ser definitivamente destruído, já que é um princípio da realidade, o mal deve ser relegado ao mundo interior, o reino das trevas. Essa seria, então, a vitória maior que o bem pode almejar.

O principal nome ligado ao maniqueísmo foi o de Santo Agostinho, que durante um tempo foi um adepto de seus preceitos e, depois, um de seus mais ferrenhos detratores.

Nascido em Tagaste, província de Numídia, atual Argélia, filho de pai pagão e mãe cristã, viaja a Cártago para aprimoramento dos estudos. Lá se desvia moralmente e leva uma vida licenciosa, repleta de prazeres, principalmente sexuais. Converte-se ao cristianismo aos vinte e dois anos, vindo a tornar-se bispo em Hipona. Agostinho influenciou toda a Idade Média e fez parte do que os historiadores da Filosofia denominaram de Patrística, a filosofia dos padres da igreja. É, na realidade, uma apologia que sintetiza a filosofia grega clássica com a religião cristã. Suas experiências no campo dos estudos filosóficas foram intensas – além de seu contato com a experiência maniqueísta antes da adentrada ao mundo cristão. A questão do bem e do mal sempre foi uma preocupação em suas reflexões. Na obra Confissões, uma biografia em que contrasta sua vida de pecador com a graça divina, mas atento às preocupações filosóficas, a busca do entendimento da origem do mal é uma constante para o bispo de Hipona.

Francisco Renato de Souza
Colaborador


2 comentários:

Walmir disse...

Querid professor mano blogueiro,
Feliz Natal.
Vida longa, fértil, criativa e bem sucedida e este blog.
Paz e bom humor sempre.
Walmir
http://walmir.carvalho.zip.net

Walmir disse...

Querido professor, estou de volta após feriar.
Topo com o maniqueísmo, este olhar nunca superado por qualquer vivente em suas labutas do dia-a-dia. Superado pela reflexão, claro, mas presente em primeiro momento.
O Bertolt Brecht, dramaturgo e diretor teatral, tem uma obra assim: Seu Puntila e seu criado Matti.
Seu Puntila, quando sóbrio é um canalha egoísta. Quando bêbado é generoso.
O criado vai se servindo como pode.
Achei ótimo o post.
Paz e bom humor, meu amigo.
Senti saudades das suas reflexões enquanto feriava.
Walmir
http://walmir.carvalho.zip.net