domingo, 7 de junho de 2009

Imbricamento Entre Política e Liberdade


Nietzsche e Espinosa - Parte II


O futuro do homem, enquanto uma vontade de realização, só se mostraria na forma de um aprimoramento, a partir do momento em que essa vontade de futuro se tornasse importante. Diria mais: num momento em que esta vontade de homem seria importante e inerente ao fazer político. E por vontade (seja de futuro, seja de homem) poderíamos dizer: uma potencialização de valores que trariam ao homem a possibilidade de libertação de seu ser, do coletivo, mesmo estando dentro do coletivo.


Um indivíduo – e não o Estado – que investe em sua liberdade, este sim, teria qualidades de estadista. Esta noção pode parecer-nos um tanto quanto aristocrática, todavia, é isso mesmo que acontece com o pensamento de Nietzsche. Em face disso, imagino que o filósofo não tenha se preocupado tanto, de forma direta, com a Política. Pelo fato de ele estar muito mais interessado no indivíduo que, posteriormente, faria esta “Grande Política”. Daí o imbricamento tão íntimo com a questão da liberdade, e a preocupação em pensar valores que gerariam fruto num futuro próximo.

Giacóia Jr. (na introdução de textos políticos de Nietzsche, com sua tradução) é bem explícito quando dessa preocupação de Nietzsche, para com as idéias políticas da modernidade contratualista; momento em que se instituiu o quesito democracia nos discursos políticos.

Vejamos: Ao instituir-se como valor absoluto, submetendo a si toda e qualquer outra forma de sentimento de valor e parâmetros de avaliação, as 'idéias modernas', ao mesmo tempo em que levam a efeito o nivelamento massivo do homem ocidental, satisfazem seu impulso inconscientemente tirânico. Expressões desse movimento são a estéril auto suficiência do moderno filisteísmo cultural, a redução utilitarista do ideal de felicidade e conforto, segurança e bem estar, a hipócrita auto compreensão do europeu civilizado como sendo o sentido do progresso e o 'final da história'. (2005: p. 12)

Talvez, o que mais Giacóia Jr. nos chama a atenção, ao comentar sobre os fragmentos políticos de Nietzsche, seria a própria crítica que o filósofo estaria direcionando à sua sociedade, herdeira do movimento moderno que pensa a Política como benfeitora, e responsável por trazer em seu seio a preocupação “do ideal de felicidade e conforto, segurança e bem estar”, quando, numa confirmação, Nietzsche resolve pensar noutra direção; aquela do nivelamento e mediocrização do homem, e como isso se torna importante para certa dominação e, principalmente, um maior controle das possíveis liberdades humanas – fonte de uma possível revolução cultural e política de determinado povo –; esta última, sim, grande e maior preocupação de Nietzsche para a efetivação da “Grande Política”. A qual se propõe, mesmo que de forma indireta; orientando seu pensamento de forma direta no indivíduo, e não no coletivo.

O grande anátema para Nietzsche nem seria o pretenso bem estar que esta modernidade traria, mas a constituição de uma moral de rebanho, onde o pastor poderia continuar controlando as liberdades alheias e individuais.

E essa preocupação de Nietzsche tem seu fundamento na obra de Espinosa, intitulada Tratado Político, e que será nosso contraponto de constatação. Embora um fundamento tão-somente no que concerne à questão da liberdade, uma vez que Espinosa reconhece esta liberdade, a colocando no patamar de paixões necessárias para a constituição do Estado.

Por outro lado, Espinosa reconhece que o homem faz parte da Natureza, e que é esta Natureza que o determina, dentro de suas paixões, como sendo constitutiva do Estado. Visto que, a Natureza é que traz estas paixões e as possíveis contradições humanas; que acaba não sendo tão contraditórias assim, uma vez que, todos estes elementos da paixão, logo, desta pretensa contradição, advém desta Natureza, sendo o homem um fragmento da mesma.

Em Espinosa há claramente a efetivação do Estado, enquanto gestor da razão coletiva. E é neste ponto que a liberdade poderia ganhar fundamentação prática e, principalmente, poderia se tornar arma de consolidação e constituição do Estado moderno.

Antes, porém, de seguir adiante nesta discussão, gostaria de apresentar o que Espinosa denomina de Razão coletiva, ou mesmo, Razão do Estado: (...) como a Razão ensina a praticar a moralidade, a viver na tranqüilidade e na paz interior, o que só é possível com a existência de um poder público, e como, por outro lado, não se pode conceder que as massas sejam conduzidas como por um só estatuto, tal como é requerido no Estado, se não existissem leis estabelecidas de acordo com as prescrições da Razão, não será abusivo chamar pecado ao que é contrário à injunção da Razão, pois que as leis do Estado melhor ordenado devem ser estabelecidas conforme a Razão. (...) [De forma que] aquele que detém o poder público e dispõe do direito natural1 pode, segundo este direito, ser controlado pelas leis e pecar. (Tratado Político, 2004: II, § 21)

Pelo que se percebe, a Razão do Estado estaria intimamente ligada à Razão do homem. Sendo o homem responsável pela constituição do Estado, esta mesma razão não pode estar submetida por outra lei, senão a lei humana. Jamais a lei divina, pois esta traz ao cerne do homem a noção de pecado e de livre-arbítrio, colocando-o num patamar de mero joguete dos desígnios divinos. Por desígnios, portanto, apenas aquilo que faz parte da Natureza, ou melhor, aquilo que está concentrado na capacidade do homem.

Diferente de Nietzsche, Espinosa também vê o Estado como um contrato, não aos moldes de Deus, ou para coibir a natureza humana, mas, nos moldes da Natureza e da laicidade. Passa-se, também, pelas paixões do indivíduo, não para coibí-las, como se vê em Rousseau, Montesquieu, Locke e Hobbes, mas para submetê-las à sua real necessidade.

Constatemos pois, na obra de Espinosa, esta afirmação: Há o costume de chamar poder público a este direito que define o poder do número, e possui absolutamente este poder quem, pela vontade geral, cuida da coisa pública, isto é, tem a tarefa de estabelecer, interpretar e revogar as leis, defender as cidades, decidir da guerra e da paz etc. (2004: II § 17)

Apesar de esta ser uma obra inacabada, há grandes possibilidades de elucidar certos preceitos de Espinosa, no que concerne à Política. Espinosa que, apesar de tentar dar outro direcionamento, àquilo proposto pelos modernos, acaba reforçando certa máxima dos outros, que o faz compactuar com as teorias modernas – até mesmo por estar inserido neste tempo. Máxima essa que já expomos e que diz respeito ao papel de salvo-conduto do Estado, papel esse utilizado para salvaguardar as liberdades individuais, propondo uma certa racionalização do bem estar dos outros, ou seja, do bem estar do coletivo. E isso nos basta para contra-argumentar com parâmetros da “Grande Política” de Nietzsche.

E como justificativa, ao expor Espinosa como estando na outra margem do rio, e corroborando com a afirmação de que, apesar de moderno, ainda tem métodos distintos dos outros pensadores do período, podemos detectar que o autor, ao trazer à baila a questão política, o faz sem que o elemento natureza humana sirva de justificação para o controle da conduta dos indivíduos.

E esse preterimento do quesito natureza humana – o que o faz pensar, também, em certa liberdade humana, apesar de uma liberdade mais voltada à questão moral que propriamente coletivo-social, traz novos elementos para se compreender o indivíduo com uma maior autonomia, apesar de ainda ter em mente a constituição de certo Estado coletivo – pode ser bem compreendido no fragmento abaixo: Os filósofos concebem as emoções que se combatem entre si, em nós, como vícios em que os homens caem por erro próprio; é por isso que se habituaram a ridicularizá-los, deplorá-los, reprová-los ou, quando querem parecer mais morais, detestá-los. Julgam assim agir divinamente e elevar-se ao pedestal da sabedoria, prodigalizando toda espécie de louvores a uma natureza humana que em parte alguma existe, e atacando através dos seus discursos a que realmente existe. Concebem os homens, efetivamente, não tais como são, mas como eles próprios gostariam que fossem. (ESPINOSA, 2004: I, § 1)

Presumo que o grande diferencial de Espinosa, com relação aos modernos tradicionais, esteja justamente na laicização do Estado, preterindo desta Instituição toda e qualquer pecha religiosa. Pois, o que a maioria destes modernos fez, foi, com base na noção de natureza humana, institucionalizar religiosamente o elemento representativo do Estado.

Ao salvaguardar uma maior liberdade, não permitindo que culpas religiosas recaíssem sobre o sujeito, Espinosa, de certa forma, apesar de ainda moderno, é o que mais se aproxima de Nietzsche. E seria basicamente este “respiro” de liberdade que o diferencia dos outros modernos.

A questão da culpa é tão preponderante na constituição do Estado Moderno, que nem mesmo em nossos dias vimos isso desaparecer por completo. A começar pela organização de nossas instituições contemporâneas. E isso Espinosa, ao contrário de seus contemporâneos, já havia detectado. Daí a preocupação em escrever um tratado político que, sabemos, apesar de diferente, ainda se encontra baseado em premissas modernas – e não custa relembrar que premissas são essas: a noção de representatividade e delegação de deveres (e direitos), bem com de valores; e da própria liberdade.


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1Por direito natural, portanto, entendo as próprias leis ou regras da Natureza segundo as quais tudo acontece, isto é, o próprio poder da Natureza. Por conseguinte, o direito natural da Natureza inteira, e conseqüentemente de cada indivíduo, estende-se até onde vai a sua capacidade, e, portanto, tudo o que faz um homem, seguindo as leis da sua própria natureza, fá-lo em virtude de um direito natural soberano e tem sobre a Natureza tanto direito quanto poder (ESPINOSA, 2004: II, § 4). Como se percebe, a noção de direito natural, empregada por Espinosa, se difere sobremaneira da noção tradicional. Por direito natural podemos entender toda a capacidade que o homem tem de se utilizar racionalmente de suas paixões. Estando o homem inserido na Natureza, automaticamente, também aquilo que o homem faz, faz parte do direito natural. Também sua virtude estaria agindo sobre este direito natural.


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