domingo, 8 de fevereiro de 2009

Viagem ao Fundo da Alma...


Albertina
Parte II



Duas horas da manhã, Albertina ainda não foi dormir (nem irá...), deus Dioniso resolveu se encontrar com Orfeu. E do alto de seu apartamento, no centro da metrópole, as luzes da cidade a chama. As garrafas de vinho, vazias ao canto, foram o aperitivo... Ajeita seu cabelo, fecha a calça jeans e pula da cama. Foi buscar sua bolsa, companheira inseparável das noites em claro. Já a esperam na portaria, o tempo é curto, mas a vida é intensa.


"Essa lucidez me mata, há horas olhando as estrelas e a mesma coisa não me sai do pensamento, será que essa idéia absurda vai continuar martelando minha cabeça? Preciso beber, olhar as pessoas ao meu redor... fugir dessa tragédia grega... aliás, não é melhor me embrenhar nela e sorver até a última gota dessa loucura? É isso que farei... Apolo que me perdoe, mas hoje quero Dioniso. Não suporto mais esse marasmo.


"Se a ambigüidade faz parte do existir, também quero me esconder... não, não! Preciso dar as caras, gritar muito... a rotina me massacra.


"Sou dúbia, dissimulada... porém tenho convicção de meus anseios, prezo muito a liberdade e é nela que entrego todo meu segredo... diante do espelho não preciso me esconder, Tina me vigia.


"Sim, oscilo entre o natural e o extraordinário, o absurdo e o lógico, o trágico e o cotidiano... é isso! Quero a companhia de Édipo... onde está meu oráculo...?"


Repentinamente a porta se abre e Tina, fugindo de seus devaneios, se assusta... o extraordinário confirmou sua existência mais uma vez. Este ato repentino de abrir uma porta é o suficiente para trazê-la ao mundo novamente... essa inconstância a persegue.


"Vamos Tina, até quando vais conversar com Narciso?"


"Tá bom, vamos..."


O elevador está quebrado a dias, todavia isso não é problema, a saúde é o ponto forte dessa moça de 22 anos. As escadas são muitas, porém a luz do corredor está acesa.


Neste instante o lustre do absurdo irradia suas ondas luminosas sobre as ruas, os grandes problemas estão lá, em cada esquina... na criança que deita sob a lua cinzenta do frio humano ou no pedinte que mastiga o lixo adormecido do edifício. Nesse ínterim, invoco Camus: em Kafka, a revolta dos homens dirige-se também contra Deus; as grandes revoluções são sempre metafísicas. E Deus, ao se fazer presente no meio dos homens, assusta as vezes, mesmo sabendo de sua existência o apresentamos... apenas nos surpreendemos quando ele se faz presente; é uma criança arteira correndo atrás de ovelhas.


A luz, o metal, ligas de ferro... é o deus-homem mostrando seu mundo... temos também fibras ópticas, raio laser... e daí! Isso não me interessa...


Se existem problemas na rua, minha casa também foi profanada... e nessa dubiedade do absurdo, a segurança faz parte das letras verborrágicas de nossas Assembléias Constituintes... somos deuses também, por isso nos profanamos. Nossas escolas... instituições corretivas, família, instituição também corretiva... nós nos profanamos todos os dias... quebramos o compromisso das vontades primevas e instintivas. Assistimos ao espetáculo da humanidade, ora em camarotes vazios, ora em limusines de luxo, aliás, também em carroças de gente.


A condição humana é uma implacável grandeza, temos também, em concomitância, uma absurdeza fundamental... Vivemos em casulos de seda... tecemos internamente nossa liberdade e nossa segurança, se nos profanam, entramos no casulo para daí sair só depois da confecção do tecido... ele agasalha. A inconstância de Albertina é exemplo disso, enquanto se volta à inquietante morada de sua consciência, se fecha ao mundo, mas sempre que quer, abre suas pernas, e introduz em seu sexo todo o concreto da metrópole e as lojas do shopping. A propósito, como ela conseguiria viver num apartamento, na região central de uma metrópole? ... é o caos revisitado. É o homem e sua implacável grandeza... isso é absurdo!


Exprimindo a tragédia pelo cotidiano e o absurdo pelo lógico, Albertina vai vivendo em seu casulo, tecendo sua seda. Entretanto, tal casulo nunca foi uma amarra, ao contrário, é ele que a liberta. Pode parecer absurdo (mas é absurdo mesmo), porém, contrastes como estes fazem parte de uma constância chamada vida. Mesmo no casulo seu envolvimento social é exemplar, afora as noites de boemia em que a alegria da vida se confirma, sendo festejada todos os dias, aliás, todas as noites... essa penumbra é uma ótima moderadora. A liberdade de Albertina se tece no casulo nobre da seda, acondicionado com o vagabundo perambular do pedinte. Anda livre pela noite, ora acompanhada de Dioniso, como hoje, ora de Apolo... senão, por vezes sozinha.


Quando chama pela tragédia grega, Tina se encharca de ensinamentos: ao pular no lago atrás de sua imagem, descobriu a beleza da grama rasteira e se encantou... voltou à terra. Tentou enfrentar Tróia, mas descobriu a beleza de Helena, dando razão a Menelau. Vendo os abutres que se aproximavam de seu fígado, pediu desculpas ao Olimpo... mas logo fugiu dali, foi para o submundo... sem se preocupar com Hades, consultou o sábio cego e voou até seu mundo (Tirésias sabe o que diz), como uma odisséia de 10 anos. Sob a escolta de Possêidon, que se irritou com seu irmão Olímpico, mandando uma onda gigante até o Monte, subiu aos céus novamente. É pena que não viu Édipo (também não queria...), o parricídio sempre foi seu desejo...


Quantos segredos escondem a mente humana, acho que os cogumelos do estábulo, ao fundo de seu edifício, morreram, restou a merda... Acabou-se o tempo das chuvas... ou será que está iniciando? Tina não sabe... Hoje é noite de Dioniso e Orfeu está a acompanhando. A noite promete!, e só isso importa... no momento.


"O coração humano tem uma tendência aborrecida, para só chamar destino àquilo que o esmaga. Mas também, a felicidade a seu modo, é sem razão por ser inevitável... o trágico e o lógico (ao mesmo tempo) fazem parte de nosso cotidiano, sabia? Li isso ontem, em Camus..." O carro está veloz, acho que ninguém ouviu nossa Tina...


Também, pouco importa... sei que o absurdo não se explica... porém traz a liberdade de ultrapassar os limites do coerente e do incoerente... o mundo está muito louco!



2002

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