quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Viagem ao Fundo da Alma...


Edrid
Parte I



Se o homem está condenado a ser livre, resta-lhe então encarar essa condenação da melhor forma possível, e como tal, o sofrimento torna-se elemento primordial para a depuração.

No entanto, não podemos nos esquecer, queiramos ou não, que o sofrimento nos persegue até o fim de nossos dias, nem mesmo o pêndulo da morte o apaga... apenas ameniza. Só existe felicidade, aliás, falta de infelicidade, depois da morte. A vida é isso, momentos de sofrimentos intercalados por situações menos hostis, ou seja, o lapso de felicidade que nos acomete em determinado momento nada mais é que ausência de sofrimento.

"Esse ar modorrento e hostil, este odor de poeira constante... não posso pensar a respeito, é este o destino e, afinal de contas, o noumenon kantiano jamais poderá ser empiricamente apresentado, aliás, apenas no formato de representação. A coisa-em-si independe de nossas vontades... tudo o mais são representações. Eis o mundo, vontade e representação; por mais maciço que possa parecer, esta existência vai depender de meu estado de espírito, isto é, o fenômeno depende unicamente da coisa-em-si. Se não posso apresentá-lo, apenas vivo, aliás, apenas sofro.

"Assim é a vida, sofrimento constante, interrompido apenas pela ausência de dissabores.

"Todavia, tem algo que não posso me esquecer; o olvido me seria desleal, a representação da coisa-em-si não age sozinha. Ela é parte de um todo que não se divide: juntos, objeto e sujeito se intercompletam, são duas metades essenciais, necessárias e inseparáveis. O espaço e o tempo, indivisos, são a pluralidade em nossa vida, são tudo o que temos, no entanto, a coisa por si mesma não se encontra colocada no espaço e no tempo, diferentemente, ela resulta do espaço e do tempo, e nos é apresentada através de nossos sentidos. Ou noutras palavras, existem objetos que nos chegam aos olhos através de sua representação, nunca o objeto a priori, por si mesmo. O que nomeamos nada mais é que uma representação de um fenômeno exterior, apreendido por nossos mecanismos sensitivos. Nossos sentidos captam o noumenon e o transformam em algo cognoscível, seja pelo palato, visão, olfato, audição ou tato.

"Não pensem que formulei isso sozinho... não se enganam os que reconhecem Schopenhauer nestas divagações. É fato, o chamo para falar por mim... isso é minha personalidade. Sou livre no exato instante em que me fecho nessa biblioteca modorrenta e divago junto a esse sem número de pensadores, literatos e poetas. Sempre os busco para afirmarem meus atos. São eles únicos responsáveis por minha estrutura intelecto-pessoal. É claro que os transformo e os apresento... mas são apenas reflexo de algo maior, minha personalidade consolidada.

"Enfim, a coisa-em-si, ao contrário do que Kant escreveu, é a raiz metafísica de toda a realidade. As vontades humanas têm na raiz metafísica e ilusória o ponto de partida para seus projetos... sou todo vontade. Nossos sentidos podem conhecê-la cognitivamente, sintetizando-a metafisicamente e transformando-a em fenômeno representativo. Eis o mundo, repito, vontade e representação.

"A liberdade só se apresenta aos homens quando o sofrimento amadurece sua consciência, se não podemos ser felizes, ao menos somos livres..."

No ar carregado daquela biblioteca, onde se fundem pensadores materialistas, literatos românticos e poetas niilistas, além de santos espiritualistas. A liberdade está impressa em letras grandes e pequenas, livros de brochura ou capa dura... notem ao fundo, Stuart Mill e seu tratado Da Liberdade, grande obra de linhagem liberal, apesar de algumas incongruências e contradições no conjunto da obra. Está também junto aos papéis escritos muitas garrafas de bebida, vazias no canto, tem também muita cinza espalhada por todo o cômodo. É dessa forma que se encontra o ambiente de trabalho do nosso anti-herói... ponto de encontro de materialistas versus idealistas, românticos versus realistas... todos vivem sem intrigas, lado a lado e em perfeita harmonia.

Este é o mundo de Edrid, um anti-herói, sobrevivente de uma guerra e que não acredita em felicidade... talvez lembranças do front em Monte Castelo... tanto sangue, gritos e bombas! Vive só para confirmar sua sentença... a condenação desse viver insurge todos os dias, lembrando-lhe a vida... apresentando-lhe o mundo e suas dores; e neste interregno, nosso anti-herói apenas confirma o sofrimento.

Longe dos ares doentios da raça humana; a mesma que massacra seu irmão e decepa seu pai, Edrid respira sabedoria, se embriaga nos clássicos... sorve a vida com seus males sem desperdiçar uma gota de dissabores. Seu ciclo de vida são as quatro paredes que povoam este mundo acre, sombrio e gélido... as letras também podem endurecer o coração.

As quatro estações do ano se mostram apenas em formato de tratados especializados: os livros têm cores e formas primaveris, além de apresentarem o escaldante calor do verão. Temos também mórbidas letras que caem como as folhas do outono, mas, acima de tudo, a frieza invernal da pena schopenhaueriana... esta última a predileta de nosso anti-herói.

Se a vida é sofrer, não há diferença entre sofrer em casa ou fora dela. Pelo menos no recinto pessoal podemos exercer nossa plena liberdade, se é uma condenação ser livre, a intenção é usufruir ao máximo dessa condenação... vêem, ao fundo, do lado direito, em cima daquela pilha de livros? É O Estrangeiro de Albert Camus... pergunte-o... ele lhe responderá que estamos condenados e não sabemos. Tem também o Campos de Carvalho e A Lua Vem da Ásia, segundo ele, o hospício é um hotel de luxo e a liberdade, um relógio de ouro nos braços de um enforcado... Existem mais loucos fora dos muros que neles confinados.

A liberdade... ora essa, é o fruto de anos a fio, sorvendo os sabores e os sensabores das humanidades... ao humanizar-se, o homem confirma sua liberdade... só muita leitura pode referendar tão nobre estado.

No intervalo entre Kundera e Turgueniev sempre sobra um tempinho para Machado de Assis, mas a personagem preferida de Edrid é o Ludvik de Kundera. Foi ele quem teve a coragem de desafiar todo o aparato ideológico da ditadura stalinista com uma brincadeira juvenil, em um cartão-postal. Sim, este anti-herói, assim como nosso anti-herói, acreditam na liberdade humana, e ela só se torna possível quando, a dor causticante de uma ferida exposta, apresenta a putrefação sórdida e entediante de um sistema falido. Nem mesmo nossa jovem Lucie Sebetkova foi capaz de mudar o rumo da brincadeira juvenil de Ludvik... bem que Helena tentou... no final das contas, tudo acaba em Fumaça, como muito bem profetizou Ivan Turgueniev: a vida é uma aparente ilusão, em que o grupo intelectualóide das aparências traça planos e esbraveja verborragias. Até Aldous Huxley o disse, aliás, Huxley o disse pelas mãos de Anthony Beavis, e seu estudo contundente acerca da cegueira do homo sapiens..., está lá registrado em Sem Olhos em Gaza, do lado direito, na estante de Edrid.

Cego vivemos, sem compreender a real consistência de nossa vida e de nosso espírito que, diga-se de passagem, nada mais é que uma representação imperfeita e irracional de vontades mesquinhas e fúteis, todavia, aos nossos olhos adquire a perfeição sensual de Afrodite.

Essa irracionalidade mesquinha engana tanto os homens, e tão bem, que sua vida, repito, tem a aparência de uma perfeita existência... "Mal sabem estes tolos humanos que vossas vidas não passa de um mundo irracional e cego!" É por essa razão que nosso anti-herói ainda prefere a companhia dos livros, traças e garrafas vazias.

Apesar de sensabor realidade, o homem ainda tem um último consolo: sua consciência interior; desde que a mesma não esteja reduzida a mesquinhas imagens televisivas. Refletidas pela ignorante ideologia dos filisteus, revelaria a vontade primeva do em-si, trazendo á tona as fronteiras do entendimento humano, abrindo assim As Portas da Percepção, na parte central da prateleira poeirenta, assinado, também, por Huxley.

Dentro das fronteiras do entendimento se chegaria em algum lugar, uma vez que o homem teria maior consciência de seu corpo, sabendo então que sua matéria orgânica não passa de massa de objetivação da vontade. Nada poderia fazer, no entanto, encontrando explicações para suas vontades, apenas minimizaria seu sofrimento, exercendo a partir de então, sua plena liberdade.

Sísifo, rei coríntio, teve como condenação sua liberdade, todavia, sua obrigação eterna seria carregar pedras até o cimo do monte, que, automaticamente, cairiam logo em seguida. Todo esse suplício porque ousou ser livre e desafiar os deuses do Olimpo, contando segredos dos mesmos aos mortais... sua liberdade o levou à condenação eterna... sim, meu caro leitor, temos que carregar a herança de Sísifo, ele era livre, mas estava condenado ao eterno suplício... assim somos todos nós!

"Muitos me chamam niilista, porém, a estes homens pergunto: o que têm feito, senão reforçar sua falta de vontade? Se esqueceram de Sísifo?

"Pelos menos em meu estado niilista, carrego pedras até o cimo, entretanto questiono os poderes que interceptam minha vontade (eu já estava condenado mesmo...), sabendo discernir os vários estágios da dominação constante, consigo impedir sua entrada... pelo menos dificultá-la. Se ainda não roubaram minha vontade, sei que posso impedir-lhes de o fazer.

"Se isso é ser niilista, prefiro desejar o nada que servir de ovelha para este rebanho utilitarista e irracional. Lembrem-se de Bazárov..., caso se esqueceram... vão até a estante, ao lado de Fumaça está Pais e Filhos, sim, convoco novamente Turgueniev para falar-vos...

"Ser niilista é ser livre... posso comandar o ritmo que carrego as pedras, logo, comando também minha vontade, mesmo que em direção ao nada."


2002

2 comentários:

Walmir disse...

POIS O MUNDO É ASSIM, MANO BLOGUEIRO, POR DEMAIS. o MUNDO, A VIDA, OS VIVENTES HUMANOS. uMA LIBERDADEZINHA AQUI E ALI PRA ILUDIR NOSSA DEPENDÊNCIA ATMOSFÉRICA, AQUÁTICA, TERRENA, IRREMISSÍVEL.
PAZ E BOM HUMOR, SEMPRE.

Anônimo disse...

Gostei do blog e dizeres! Mude a formatação pois as letras estão mt escuras para a leitura. Parabéns!