segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Tarso


Viagem ao Fundo da Alma (Parte II)



Sentada em um sofá gasto pelo tempo, Mátria observa o barulho das crianças no lado de fora. Nestes momentos ela sente uma certa nostalgia, não se sabe de que... É uma saudade constante, como um memorialista ao final de sua obra. Tempos idos..., forte espírito do passado em sua alma.

As sensações se debatiam, mas logo voltavam à mente, perscrutando no fundo da alma uma leve picada de dor e solidão. É o tempo apresentando sua história e a transformando em pêndulo passado... como se a ampulheta invertesse seu ciclo e as pessoas começassem a olhar atrás, andando de costas, sempre com as mãos no bolso... É o tempo que tudo consome, sendo consumido pelas lembranças de uma matriarca anciã.

Ao rememorar o passado. Muitas sensações acometem Mátria... as vezes boas, outras ruins. O maniqueísmo da vida tem em mãos gastas, a grave significação de felicidade desgostosa, ociosa e nostálgica. Assim, sua cabeça apresenta a trilha sonora de uma película de 16 mm., do tempo de Chaplin... o silêncio do preto e branco é a personagem central da tela de lona branca, no meio da praça mal iluminada.

A vida parece se repetir, contudo, para Mátria cada repetição tem a ilustração de um passado novo, revisto, porém mal visto. As córneas parecem turvas, no entanto apresentam sombras de um passado imberbe como a bunda de um recém-nascido. É assim, apenas sombras povoam a vida de Mátria a muito tempo, por isso que, as vezes, o passado assume a limpidez de uma nascente bem cuidada. As imagens aparecem, todavia, como reflexo de um inconsciente experiente e vivido. Apesar de ter as vistas turvas, sua consciência assume a limpidez de anos que não se passaram, apenas foram arquivados em gavetas bem cuidadas.

A superioridade e altivez que emana dessa senhora, consegue encorajar o mais biltre dos homens. Uma sensação de indiferença atravessa os sensores humanos, exercendo sobre tais homens a impressão desagradável de um instante de solidão. Eis como se sente o homem que é alcançado pelo espírito altivo de Mátria.

O amor parece exigir muito mais quando se está ao lado dessa mulher. Talvez essa faculdade de limpar as sombras, até tornar sereno seu olhar, amedronte as pessoas. Fazendo com que as mesmas busquem em algo maior, a segurança de porto onde atracar. O que seria este porto seguro? A busca de um amor maior, superior a toda e qualquer vontade individual... dessa forma é Mátria, a personificação de um amor maior.

Começa a chover, Mátria escuta o alvoroço da criançada em festa... Uma correria desenfreada toma conta de toda a rua. Mas o incrível disso tudo é a sóbria posição de nossa personagem, mesmo perante tanto alvoroço, sua mente vaga nas areias da ampulheta invertida. O silêncio desta alma é maior que a tempestade.

Seria a nostalgia, o motor de tão serenos arquivos? Sim, ao olhar Mátria, imóvel em seu sofá, resta-nos apenas a limpidez desta afirmação. Um sentimento maior que as eras do tempo... contudo, são arquivos muito bem organizados e sóbrios. A ordeira posição dos fatos, cronologicamente delimitados em linha reta, mostra-nos o caráter incorruptível de nossa heroína. Uma vida sem excessos, amparada na, sempre presente, preocupação de resolver os problemas, sob a tutela de sua proteção. Sua família sempre foi exemplo de vida digna e ordenada.

A busca pacífica dos conflitos internos fez dessa anciã a matriarca de uma família unida. Os interesses da família sempre foram os seus interesses, a vontade individual é iníqua perante seu pensar, sua pessoa é superior, dessa forma, os interesses individuais assumem o caráter de um interesse maior... a vontade de Mátria. O fato de nossa heroína existir já é suficiente para instaurar a identidade de uma família, e posso afirmar com veemente certeza que, Mátria é a identidade de sua família, aliás, ela é a própria família.

Nem mesmo a nostalgia de um tempo que ficou é capaz de macular a certeza de um corpo unido e pacífico. Não nos esqueçamos, porém, que este corpo é a ampulheta invertida, a sombra límpida e a água cristalina de uma nascente familiar.

O sofá gasto é o sinal de um tempo cronológico, ordeiro e possessivo...


2002


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