segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Seção: Resenhas


:: A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos - Friedrich Nietzsche
Por: Hugo Santos

Nietzsche começou pela filologia clássica. Na verdade, terá antes sido da tensão entre filosofia e teologia que tudo surgiu; foi, porém, o estudo dos clássicos e o seu ensino que o filósofo primeiro levou a cabo, antes de se «tornar ele mesmo», para usar a bela formulação concisa de um especialista. Nomeado para lecionar a cadeira de Filologia Clássica na Universidade de Basileia, ainda antes de ter completado vinte e cinco anos, Friedrich era já um classicista de alguma força, tendo, à altura, já publicados alguns trabalhos – pelo que Leipzig lhe atribuiu o doutoramento sem que o jovem Nietzsche tivesse sequer de prestar provas. Durante dez anos, F.N. ensinaria em Basileia, segundo se crê, com sucesso, a cadeira para que fora nomeado. Curiosamente, apenas desempenhou funções na área da filologia, nunca no domínio que o tornou célebre, e nem tão-pouco era diplomado em Filosofia. Foi após ter deixado as aulas que começou a fase mais marcadamente de filósofo de Nietzsche.

Foi, portanto, antes, em 1873, que Nietzsche deu por concluído o manuscrito de A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Trata-se de uma obra de juventude (não esqueçamos os vinte e nove anos do filósofo), que, juntamente, com O Nascimento da Tragédia (publicado um ano antes) – que os nossos escolares ‘aprendem’, ou ‘aprendiam’, já não sei ao certo –, recolhe parte (sublinhe-se: parte, uma vez que mais há a conhecer, e apenas desta fase da sua obra me ocupo) dos seus inovadores trabalhos em torno dos Gregos. O Nascimento foi recebido com desprezo e perplexidade, pela sua metodologia heterodoxa e orientações francamente contrastantes com as práticas então correntes. No entanto, não esqueçamos, respigando as palavras de R.J. Holingdale, que «Mais consequente do que a sua influência sobre os estudos gregos foi a influência que os estudos gregos nele tiveram. O seu efeito mais geral foi o de lhe terem demonstrado que uma grande civilização – a maior, na verdade, como ele viria rapidamente a considerar –, poderia ser construída em bases morais totalmente diversas da cristã; e que a moralidade cristã não era a única.» Este pequeno trabalho é disso um índice notável. Nas suas breves páginas freme o poder avassalador da criação ensaística do jovem autor – «Esta tentativa de contar a história dos filósofos gregos mais antigos distingue-se de outras tentativas semelhantes pela sua concisão.» (p.13), nos dirá ele próprio. O modo como apresenta os filósofos gregos é não só entusiasmante, mas pleno de ensinamentos ainda hoje, parece-me, perfeitamente atuais – «é provável que jamais um homem [Heráclito], em tempo algum, tenha escrito de um modo mais claro e mais luminoso. É verdade que se trata de um estilo muito lacónico e, por isso, obscuro para leitores muito apressados.» (p.51) «O pensamento de Parménides nada tem do perfume embriagador e sombrio do pensamento hindu, que talvez não seja completamente imperceptível em Pitágoras e em Empédocles» (p.69) É, além disso, um raro momento de fruição e de aprendizado, o contato com o que teria sido objeto de leituras públicas do jovem Nietzsche – «Heraclito de Éfeso surgiu no meio da noite mística que envolvia o problema do devir de Anaximandro, e iluminou-o com um raio de luz divino: "Contemplo o devir"» (p.39).

A sua abordagem dos pré-socráticos (ou «pré-platónicos», nas suas palavras) – «Tales, ao expor a representação da unidade pela hipóteses da água, não superou o nível muito baixo das teorias físicas da sua época» (p.27) – revela toda a sua capacidade de estabelecer relações proveitosas entre sistemas filosóficos e filósofo a filósofo. É, no entanto, sobretudo em Heráclito que pousa a atenção de Nietzsche. E é porventura em torno do filósofo que ri – na formulação clássica de Juvenal – que se tecem as mais fecundas e interessantes reflexões do filósofo – «A sua [de Heráclito] concepção do tempo, é, por exemplo, a de Schopenhauer, para o qual cada instante do tempo só existe na medida em que destruiu o instante precedente, seu pai, para ser ele próprio também destruído» (p.41).

A juventude do autor intensifica a iconoclastia e informadíssima rebeldia que haveria de animar o conjunto da sua obra – (p.25). A força incontrolável do seu trabalho dota a escrita de Nietzsche de um invulgaríssimo poder de penetração e de admiráveis dotes de psicólogo (e convém não esquecer a importância que o autor atribuía a essa atividade) – «Uma época que sofre daquilo a que se chama cultura geral, mas que não tem qualquer nenhuma, nem na sua vida tem unidade de estilo, nunca saberá saber o que fazer com a filosofia, mesmo que ela seja proclamada nas estradas e nos mercados pelo génio da Verdade em pessoa.» (p.25) –; os de um poderoso prospector dos sinais, identificáveis ou não, com que se confronta, o que lhe possibilita, mesmo ao tratar autores clássicos, alvejar certeiramente a sua própria época – «o nosso tempo, habituado à peste biográfica…» (p.34).

É muitas vezes um poema com raízes filosóficas, o texto nietzcheano, e é frequentemente com a amplidão, com o poder criativo da sua palavra, que o filósofo mais marca o seu leitor – «Se alguma vez, num momento infinitamente longínquo acontecer que todas as substâncias semelhantes sejam reunidas e que as existências primordiais indivisas repousem lado a lado numa ordem bela, quando cada partícula tiver reencontrado os seus companheiros e a sua pátria, quando a grande paz suceder à grande dispersão e à grande divisão das substâncias e quando já não houver fendas nem divisões, então, o Nous regressará ao seu movimento espontâneo; não se encontrando já dividido, percorrerá o mundo em massas uma vez grandes, uma vez pequenas, sob a forma de espírito vegetal ou de espírito animal e instalar-se-á no interior de uma outra matéria.» (p.99-100)

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