sábado, 21 de junho de 2008

Transgênero Literário!

Caminhos e Descaminhos da Internet...





Entender o significado dos textos, da comunicação deixado por outrem sempre acompanhou a curiosidade humana. Ao longo dos tempos, os homens criaram técnicas e métodos para desvendar a polissemia dos discursos. Eis, algumas questões sempre atuais que atravessaram o tempo em busca do discernimento do sentido: como caracterizar o sentido de um discurso? Quais são os critérios para tal investida no interior de um texto? O sentido se revela pelo que é dito ou pela maneira de dizer? Quais aspectos extra-texto poderemos levantar como variáveis para a construção do sentido de um discurso?


Para Roland Barthes – escritor, semiólogo e crítico literário – nascido em Cherbourg, na Normandia, no ano de 1915, o significado das coisas que o mundo oferece, por meio de suas mais variadas linguagens, seria a representação psíquica de uma coisa e não a coisa em si.


O significado de uma imagem é sua representação gráfica aos olhos de quem a está observando, e de seu conteúdo se inteirando. O significante materializaria a figura do significado (a figura propriamente dita) com seu significado segmentado e entendido de várias formas, segundo as diferenças culturais de cada leitor ou observador.


Acima de tudo, porquanto, uma tradição literária implica num senso histórico ativo do passado, vivo no presente e, ao mesmo tempo, moldando este presente.


Dessa forma, parece existir uma espécie de tempo literário – ou mesmo gênero literário – encontrado entre o ensaio, o tratado e o discurso literário e que, de uma forma congênere e nova, não cabe em nenhum destes parâmetros; criando para si algo novo, além do que está posto.


Fora, também, a questão do hipertexto e da Internet, com sua explícita gama de informações livres, e das mais variadas (às vezes muitas não muito confiáveis).


Este mesmo tempo que, outrora, fora pensado por Marcel Proust (1871-1922) dentro de um parâmetro mais literário e menos epistemológico, e que acaba sendo resgatado por Barthes com um caráter mais acadêmico – e, ao mesmo tempo, debruçado fora do teor terrificante dos muros da Academia –, mais recentemente, e, no Brasil, pelo professor Evando Nascimento, da Universidade Federal Fluminense.


E é com base na obra de Roland Barthes, e do estudioso de tecnologias vinculadas à Internet, o francês Jean Baudrillard, que se tentará pensar este transgênero literário dentro dos parâmetros da Internet, e sua intensa liberdade de expressão.


Expressa nos mais variados assuntos, nas mais variadas páginas pessoais – os blogues, por exemplo – e em ferramentas como o Universia e o Wikipedia, que vêm, justamente, nos mostrar sua cara, com a tentativa de aplicar este conceito de liberdade escrita e epistemológica em uma localidade estrita e plena de significados, embora, uma localidade que ultrapassa seu mero estar físico (ou virtual, como é o caso da Internet).


Este novo universo epistemológico e linguístico tem muito de reinvenção. Destas que a linguagem não comporta mais seu objeto de constituição. Sendo, para além de sua concretização em signos e letras, um local situado numa terceira margem, onde nem a esquerda ou a direita determinam alguma correlação de força, ou mesmo de significação.


Em recente descoberta – dessas em que certo autor, com suas reminiscências pessoais, dá à sua já grandiosa obra uma força ainda maior, em especial quando de sua valoração conceitual – nos escritos de Samuel Beckett (1906-1989), encontrou-se uma carta – escrita em 7 de junho de 1937 – direcionada a um amigo alemão de nome Axel Kaun, onde a linguagem assume um significado de não-linguagem, tendo no silêncio um novo ponto de referência.


Vejamos, pois, alguns fragmentos desta carta: "Tomara chegue o tempo, graças a Deus que em certas rodas já chegou, em que a linguagem é mais eficientemente empregada quando mal empregada. Como não podemos eliminar a linguagem de uma vez por todas, devemos pelo menos não deixar por fazer nada que possa contribuir para sua desgraça. Cavar nela um buraco atrás do outro, até que aquilo que está à espreita por trás seja isto alguma coisa ou nada comece a atravessar; não consigo imaginar um objetivo mais elevado para um escritor hoje."


O uso desmedido da linguagem tem desses contratempos. Até pela quantidade excessiva de informações, ocasionadas contemporaneamente pela Internet, não temos mais lugar para localizarmos conceitualmente a linguagem. Seu não-lugar é hoje o que de mais evidente se nos mostra na infinita teia virtual.


Por outro lado, quando solicita o não-uso dessa linguagem, o autor está nos colocando uma questão que, cada vez com maior evidência, tornara-se algo essencial. Isso pode ser encontrado no conglomerado de gírias que circulam na Internet, onde não se fala muita coisa, falando demais aquilo que não significa nada.


Beckett não está desconsiderando este tipo de linguagem, está, sim, tentando encontrar uma linguagem que se iguale ao homem. Uma linguagem que diga mais que sua composição tipológica. Este tipo de linguagem, ao contrário daquela típica da Internet, tem o que dizer, sem existir. Diferente desta internética onde se diz muito, sem nada para informar.


Quando pede que a linguagem seja mal empregada não está, de modo algum, fazendo dela um mal emprego tipológico como o visto nos bits da Internet, mas um mal emprego epistemológico, dando significações, até então, não recorrentes no universo linguístico humano.


O caminho original, quando redirecionado – e isto tentava fazer Beckett –, tende a ser novo e mais criativo. Deixando de ser original, no sentido teológico, e tornando-se original no sentido filosófico e histórico.


Este mesmo caminho pode ser constatado neste outro fragmento da carta de Beckett: "À caminho dessa literatura da despalavra, para mim tão desejável, alguma forma da ironia nominalista poderia ser um estágio necessário. Mas não é suficiente que o jogo perca um pouco de sua sacrossanta seriedade. Ele deveria cessar. Ajamos então como aquele matemático louco(?) que empregava um princípio de mensuração diferente a cada etapa de seu cálculo. Um ataque às palavras em nome da beleza."


Um caminho que tem muito de descaminho e de despalavra, como bem expressa o autor. Com efeito, a partir do momento em que não mais mensuremos este caminho, e esta mesma linguagem, de forma nominalista, nomeando elementos e determinando fatores; aí sim, a partir desse momento teríamos um descaminho mais original, e sem muita explicação. Talvez seja esta não-linguagem a qual Beckett faça referência.


Noutro fragmento, mais um (des)caminho teríamos traçado, e novas informações teríamos acumulado: "Ou será que a literatura, solitária, deve permanecer atrasada em seus velhos caminhos preguiçosos que há tanto tempo foram abandonados pela música e pela pintura? Há alguma coisa paralisantemente sagrada na natureza viciosa da palavra que não se encontra nos elementos das outras artes? Há alguma razão pela qual a terrível e arbitrária materialidade da superfície da palavra não seria capaz de ser dissolvida, como pode, por exemplo, a superfície do som, rasgada pelas enormes pausas, da Sétima Sinfonia de Beethoven, de forma que, por páginas a fio, nós não podemos perceber a não ser um caminho de sons suspensos nas alturas vertiginosas, ligando insondáveis abismos de silêncio? Uma resposta faz-se necessária."


Uma resposta que não coloque limites, como o faz as palavras, mas que, realmente, dê respostas a este longo e lento caminho. Um caminho que tenha muito mais de simbologia que propriamente de nominalismo. Símbolos são muito mais que meras letras nominadas, eles têm muito de significações e de re-significações. É como se novos valores linguísticos dessem novas conceituações aos já pisados valores existentes.


Mais que um projeto de futuro, o que se quer com tal proposta é recolocar a linguagem num local donde ela nunca teria saído: o local das significações e re-signifações humanas. Homens que somos, tentamos colocar peia em nossos devaneios, situação que, diretamente, também afeta a linguagem e sua objetivação de conceitos e nominação de saberes – alguns nem sempre nomináveis, nem tampouco mensuráveis.


A literatura está repleta de obras em que o autor mergulha junto nas atribulações de seus personagens, a ponto de modificar a estrutura da narrativa para acomodá-las.


Um mundo fraturado naturalmente separado em partes. Você não consegue ter uma relação orgânica, natural, com um país ou uma pessoa, por exemplo, se apenas dispõe de uma imagem na televisão. Trata-se de uma versão contemporânea de um velho problema: o mundo sempre nos pareceu fraturado. Nossa mente não está em sintonia com nosso corpo, nossas vidas não têm nenhum elo óbvio com o divino, a consciência dos outros não nos é acessível. A vida está cheia de descontinuidades (Zadie Smith, Folha de São Paulo, 27/05/2006).


Nem sempre um escrevinhador consegue comunicar ou revelar as volúpias literárias que impulsionam a sua pena. Num bom escritor, porém, o prazer do texto, como dizia Barthes, desemboca no prazer da leitura. A frase “uma expressão feliz” descreve uma felicidade literal. Daí a possibilidade de escrever uma obra-prima praticamente do nada, como as famosas crônicas sem enredo: o escritor, como um poeta, limita-se a tocar um instrumento que é ele mesmo (Hugo Estenssoro, As musas se divertem, Primeira Leitura, 51).


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