domingo, 29 de abril de 2012

Quem é o Defunto?



Bem, meu dia começou tranquilo. Como sempre, pulei da cama assim que meu celular despertou, sabe, o barulho de um despertador é meio incômodo, por isso o celular... meio que ainda cambaleante e sonolento levantei-me... acho que só fui abrir os olhos mesmo quando senti a água fria da pia batendo em meu rosto, sabe como é, a gente se levanta, mas nem sempre acorda... após isso comecei a escovar meus dentes e foi quando tocaram a campainha, achei estranho, baterem, aliás, me chamarem a esta hora. Ainda com água no rosto e a boca meio branca de creme dental peguei uma toalha e fui me enxugando até a porta... foi quando veio o susto! Bem em frente ao meu tapete, estirado no chão, vi um corpo ali caído. Ainda assustado resolvi cutucar o homem, vai que ele tocou a campainha e caiu, imagine que tinha sido um mal súbito, sei lá... nestas horas, ainda meio sonolento, a gente não raciocina direito. E foi aí que me assustei mais; ao cutucar sua cabeça vi que ela estava tombada, meio de lado... senti um frio, parecia algo molhado, em minhas mãos e foi quando a vi vermelha de sangue, desci um pouco mais meus dedos e foi quando notei que ele estava frio e rígido... sei lá, na hora a primeira coisa que pensei foi ligar para alguém, mas aí me lembrei da polícia. Vai que, ao demorar, ainda acham que eu tentei ocultar cadáver ou, sei lá, ter assassinado esta pobre pessoa, pois é seu delegado, foi isso. Foi assim que aconteceu... agora, uma pergunta: quem é o defunto?

sábado, 28 de abril de 2012

José das Couves... Um Solitário!




__ E então meu senhor, fala seu nome completo e, não se esqueça, aqui não pode haver mentira, isso é um depoimento.
__ Me chamo José das Couves, moro na rua das Taturanas, nº 01, bairro da Concórdia.
__ Conta como aconteceu o ocorrido...
__ Olha seu delegado, não sou muito de sair de casa, recebo poucas visitas, ou seja, sou uma pessoa muito reservada...
__ Tá, e aí, conte o que aconteceu primeiro, depois você fala de si mesmo. Não se esqueça que isso é uma investigação policial.
__ Muito bem, como eu estava dizendo, como sou uma pessoa reservada não sou de receber visitas, ainda mais a esta hora do dia, mas aconteceu.
__ Sim, que mais.
__ Eu tinha acabado de me levantar, já estava no banheiro, escovando meus dentes, e foi aí que a campainha tocou. Não pensei duas vezes, peguei uma toalha, ainda enxugando meu rosto da água fria e fui atender.
__ E depois disso.
__ Abri a porta e não vi nada, aquilo estava estranho, nenhum sinal de ninguém por perto, até achei que fosse trote. Foi quando olhei para o chão... e aí veio o susto.
__ E você conhecia a pessoa que estava ali no chão?
__ Não, pelo contrário, sinto que ele era era até um pouco estranho, parecia estrangeiro.
__ Por que você teve esta impressão...
__ Pela cor da pele dele, nunca vi uma pessoa tão cinza...
__ Não seria porque ele já estava morto?
__ Pois é, acho que é isso mesmo... interessante, eu não tinha percebido!
__ Tudo bem, volte aos fatos.
__ Abaixei meu corpo e toquei sua pele, ainda receoso... vai que o sujeito estava tirando uma com minha cara e deitado ali só para incomodar. Sabe, não sou um vizinho muito sociável, mas bem que gostaria que o sujeito fosse uma visita.
__ Sim... mas, se atenha aos fatos.
__ Foi aí que percebi que o caboclo estava frio. Aquilo foi estranho, nem estamos no inverno nada, e este sujeito gelado desse tipo...
__ Meu amigo, cadáveres são gelados, não sabia?
__ Ih é mesmo, estamos falando de um defunto. Agora que me toquei...
__ Tudo bem, termina logo seu depoimento que você já tá exagerando e tem mais gente para ser ouvido.
__ Certo, a partir daqui o senhor já sabe, né. Liguei para cá e falei com uma mocinha de voz macia. Gostei disso, sabe, não converso com muitas pessoas...
__ Tudo bem, já chega... o próximo!
__ Mas, seu delegado, ainda não acabei...
__ Acabou sim, próximo!!
__ Mas...
__ Sem mas, sai daqui senão o prendo por obstrução da justiça.
__ E a mocinha do telefone, posso falar com ela?
__ Alfredo, prende este sujeito. Tá obstruindo o serviço da polícia... sujeitinho abusado.
__ Sim senhor, delegado Feitosa!
__ Mas, espera aí eu sou a testemunha, não o culpado...
__ Sai daqui logo, antes que te dê uns tapas... libera este sujeito Alfredo, manda este elemento para... vai embora daqui, antes que eu fale alguma besteira e ainda serei processado por abuso de autoridade!
__ Que sujeitinho estranho heim doutor?
__ Realmente, é muito estranho. É como se o sujeito tivesse se utilizado do fato para ter alguém com quem conversar, não parece ser uma pessoa nem um pouco sociável esse talzinho aí. Daí as divagações constantes dele... isso é falta de gente na vida dele, Alfredo.
__ Tem razão, doutor, e agora, como faremos?
__ Vamos ver se tem mais alguma testemunha, que esse aí... sem chance.

sábado, 21 de abril de 2012

O Lobo da Estepe - Hermann Hesse (Recomendação de Leitura)



Só Para Loucos

O dia passara como normalmente passam os dias: eu o havia desperdiçado, dissipado suavemente, com minha primitiva e arredia maneira de ser; trabalhara algumas horas a compulsar velhos livros e sentira dores durante duas horas seguidas, como os velhos costumam sentir; engolira uns pós e me alegrara porque as dores se haviam deixado enganar; metera-me num banho quente e absorvera o agradável calor; recebera três vezes o correio e correra a vista pelas cartas e os impressos sem importância (...). Agradável, assim como ler os livros antigos [alfarrábios] ou demorar-me no banho quente, mas, afinal de contas, não fora a bem dizer um dia encantador [acho que bebi demais, e esta cerveja não me fez muito bem], nem brilhante, nem feliz, nem plácido, mas tão-somente um desses dias como desde algum tempo [um tempo tênue que não cessa em passar] costumam ser os normais de minha vida: moderadamente agradáveis, totalmente suportáveis, toleráveis, tépidos dias de um velho e descontente senhor, dias sem dores particulares, sem singulares preocupações, sem aflições especiais, sem desesperos, dias em que até mesmo a pergunta, de que se não seria o momento de seguir o exemplo de Albert Stifter e degolar-se com a navalha de barbear, era meditada tranquilamente sem emoção, sem qualquer sentimento de angústia. (Hermann Hesse: O Lobo da Estepe)

Ás vezes é isso, a escrita não-somente agustia, mas dá motivos para que a angústia vire vida. Quando leio Hermann Hesse me sinto assim: angustiado por mais vida.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Diálogos Impenetráveis II



Não é isso, a idade faz a gente encarar as coisas com um outro ponto de vista. Aparecem responsabilidades, as loucuras vão se esmaecendo e a gente vai virando refém de uma situação que, outrora, não tínhamos pensado. Pensar demais, e pensar a Filosofia em especial, faz a gente olhar para o mundo e tentar fazer parte nalgumas coisas e odiar outras. Sabe aquele ódio, talvez de desespero, ou mesmo de resignação por algo que não dá para mudar? Essas coisas mexem muito com a gente!

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Seção D'Outro


Fábulas
As fábulas, os mitos, as parábolas são fecundos para impregnar de impressões positivas e provocar reflexões nas crianças (e nos adultos), numa proposta de educação para a Ética. Mas como qualquer recurso para despertar uma discussão e deixar uma semente de valor ou de idéia, devem ser contextualizados e trabalhados interdisciplinarmente.
Como exemplo, duas fábulas que foram originalmente concebidas por Esopo, transformadas em poesia por La Fontaine, e aqui estão traduzidas de forma simples e agradável para as crianças. As fábulas têm essa vitalidade permanente e atemporal, que está acima das idades e das épocas, mas para que se enraízem no coração das crianças, devem ser contadas, recontadas, discutidas, analisadas, declamadas, dramatizadas, desenhadas e recriadas, de modo que renasçam a cada instante em suas palavras e produções.
Costumo trabalhar essas fábulas, contando quem foi Esopo, falando então da Grécia Antiga, contando quem foi La Fontaine, fazendo pesquisas, mostrando figuras e olhando mapas, para identificar a França e a época desse autor e, por fim, propondo questões e produções, para que as crianças fixem na alma o que elas querem dizer.
O avarento que perdeu seu tesouro
Dinheiro só tem valor
se o usamos sabiamente.
Que adianta, tendo dinheiro,
viver miseravelmente?
A pessoa com mania
de só guardar e guardar,
é tão pobre quanto a outra
que não tem o que gastar.
Na verdade, o avarento,
de rico, vira mendigo,
como na história de Esopo,
que exemplifica o que digo.
Um infeliz avarento
o seu tesouro escondia,
não possuía seu ouro,
o ouro é que o possuía.
Cavou um buraco fundo
e enterrou todo o dinheiro
e, com ele, guardou junto
o seu coração inteiro.
Pensava nesta fortuna,
dia e noite, noite e dia,
comendo, bebendo, andando
a mente prá lá fugia.
E tanto foi ao lugar,
onde escondia o tesouro,
que um coveiro percebeu,
cavou e levou o ouro.
Noutro dia, o avarento
achou a cova vazia
e entre lágrimas, suspiros,
gritava, arfava, gemia.
Um passante quis saber
o motivo de tal choro.
O avarento respondeu:
Roubaram o meu tesouro.
Ué! –Tornou o passante
Pois não há nenhuma guerra,
por que escondê-lo longe,
embaixo de tanta terra?
Não era melhor guardá-lo
com você, no próprio quarto,
usando a todo o momento
deste dinheiro tão farto?
A todo momento?! Ó deuses!
Gritou o nosso pão-duro –
Nunca toquei no tesouro,
estava aqui, bem seguro!
O passante disse então:Se o ouro a nada servia,
guarde uma pedra na cova,
será de igual serventia!
***
O Leão e o Rato
É bom sempre que se possa
a todo mundo ajudar,
pois mesmo dos pequeninos
poderemos precisar!
Desta verdade bem certa
esta história vai falar,
mostrando como ela vale
em qualquer tempo ou lugar!
Um dia, um pobre ratinho
se viu aterrorizado
entre as patas de um leão…
E achou: “serei devorado”.
Mas neste dia o leão
generoso, deu-lhe a vida,
deixou o rato ir embora
sem dele fazer comida!
Esta bondade leonina
o rato iria pagar!
Mas um leão poderia
de um ratinho precisar?
Pois foi o que aconteceu:
um belo dia o leão
foi preso por grossa rede,
rugindo em grande aflição!
Senhor rato o socorreu
usando o pequeno dente,
paciente roeu a rede
livrando o leão valente!
Assim, pequenino e fraco
pagou o seu benfeitor.
Mostrou que a força não vale
tanto quanto vale o amor!
O que é filosofia?
Dora Incontri
O que é filosofia?Perguntam todos perplexos.
Será um monte de livros,
Com discursos desconexos?
Será um bicho difícil,
que pode nos devorar,
se não formos muito espertos,
para a resposta encontrar?
Na filosofia mesmo,
nada deve ser complexo,
podemos fazê-la fácil,
numa lógica com nexo.
Filosofia é uma forma
de perguntar as questões,
que mais afligem o homem,
que mais nos dão comichões.
É perguntar sobre a vida
querer saber sobre a morte,
é um olhar para o universo
é um indagar sobre a sorte…
Filosofia faz parte
da vida de cada dia
porque pergunta os porquês
que a nossa razão afia.
Filósofo é qualquer um
que pára à beira da estrada
para pensar sobre as coisas
e ver que não sabe nada.
Filósofo deve ser
quem não quiser vegetar,
passando a vida sem rumo
sem um sentido encontrar.
Portanto filosofemos,
buscando sabedoria,
pois num bom filosofar,
teremos mais harmonia.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Signos e Linguagem


Um instrumento de mediação, ao ser utilizado pelo homem, conforme Vigotski, transforma a natureza ao seu favor, ao mesmo tempo em que transforma também o indivíduo. Ao manipular a natureza, em benefício próprio, o homem se transforma biológica, cultural e socialmente.

Assim, nossas atividades psicológicas, enquanto espécie, são ativadas por signos. Essa seria, então, sua função mediadora. Apesar de os signos não serem necessariamente um instrumento de mediação. Signo enquanto informação é um instrumento de nível psicológico e, como tal, responsável por transformar fisiologicamente o ser humano e seu ambiente ao redor.

Este instrumento serve para propiciar a ação do homem sobre a natureza, transformando algo inerte em cultura coletiva e em movimento.

Por isso, a linguagem, instrumento de signo, torna comunitário alguma ideia, especificamente aquela advinda do signo; por esse sentido, ela pode ser encarada como instrumento de correlação de fatos e de relações sociais. A linguagem é um sistema fundamental em todos os grupos humanos, sendo uma representação simbólica muito peculiar a determinado grupo social. Ela organiza um sistema simbólico, organizando também os signos deste sistema simbólico, conforme o simbólico.

Precisamos entrar em contato com objetos não-presentes, e é a linguagem que cria – e organiza – esta estrutura formal. Enfim, o objeto depende da linguagem para ser conhecido em sua plenitude físio-psicológica.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Reminiscências


Minha relação com a escrita começou numa idade muito tenra. Lembro-me bem, minha mãe era merendeira de uma escola rural localizada numa espécie de vila de trabalhadores de uma Companhia de mineração, onde meu pai trabalhava. E certa vez, ainda com meus 5 anos tive a feliz sorte de ir com minha mãe ao seu trabalho. Aquela sensação me foi de um prazer tremendo, pois seria a primeira vez que eu iria numa escola que, para mim, era um universo de outro mundo. No meio do expediente dela me foi dado um giz (pedacinho mágico de fantasia) por uma das professoras. Fiquei tão extasiado com tal situação que comecei a escrever sem parar no chão (letras, desenhos, aquilo que uma criança de cinco anos apenas rabiscava, como sendo uma escrita mágica, numa língua mágica, só entendida por mim, pensava eu), sem me dar conta me vi rodeado de pessoas, professoras principalmente... meu mundo mágico tinha desabado!... mas não: recebi elogios que jamais imaginava e isso foi de uma surpresa tremenda; enfim, com este primeiro contato com tal universo vi meu futuro ali traçado; e cá estou: professor!! Quanta Alegria.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Novas Práticas de Leitura



Pensado sob uma perspectiva social, o letramento entra em cena, ao substituir a alfabetização, com a intenção de dar um maior significado à escrita, para aqueles que dela estão se iniciando. O impacto social desta primeira escrita, ou mesmo das primeiras letras, faz com o que o indivíduo sinta uma situação de pertencimento ao grupo, principalmente quando nos referimos a um grupo tão focado em tecnologias como é o da sociedade contemporânea. Não é mais só aprender a ler e escrever, mas construir uma linguagem social que represente este educando, e em tempos de Era Digital, este tema ganha ainda mais espaço na rede, visto que a Internet é um grande universo, onde cada tribo, conhecendo-se, e aos outros, tenta inteirar-se de sua identidade, ganhando com isso uma nova faceta.

Também as próprias práticas sociais de leitura e escrita e os eventos em que elas ocorrem compõem o conceito de letramento, visto que é por meio destas práticas que o indivíduo se reconhece enquanto ser pensante e que constrói seu próprio saber! Quer-se, com isso, muito mais que alfabetizar alguém.

Um evento de letramento é qualquer situação em que um portador qualquer de escrita é parte integrante da natureza das interações entre os participantes e de seus processos de interpretação. (Heat: 1982: p. 93)

Além do mais, letramento não pode ser pensado apenas como mera repetição, ou introdução de um indivíduo em sua sociedade escrita, mas, um evento garantidor de identidade para determinado grupo e determinada sociedade. O indivíduo precisa ter participação efetiva de seu grupo, e isso não pode vir apenas com a ação de saber ler e escrever, mas de pertencer, participar e se fazer existir. Sua validade no grupo depende de como ele se enquadra no mesmo.

Busca-se assimilar competências discursivas, ao adentrar o universo da escrita por meio do letramento, e competências cognitivas ao saber se posicionar perante seus iguais. Situação que confere ao indivíduo um determinado e diferenciado estado de ser e condição de existir social e culturalmente, como ser inserido numa sociedade letrada. Letramento seria então, conforme Soares (2002: p. 146): estado resultante da ação de letrar, um vero que segundo a autora, ainda precisa ser dicionarizado para que a palavra tenha sua completa compleição.

A cultura do papel vem sendo tragada pela cultura da cibercultura, resta-nos saber lidar com os dois de maneira que o letramento não seja prejudicado. Imagina-se que este universo novo acaba favorecendo o surgimento de uma nova escrita (em papel ou eletrônica), fazendo com que o letramento ganhe ainda mais significado para aqueles que dele se utilizam, ou são evidenciados.

Além do letramento, nossa língua também garante esta sensação de pertencimento. E só falamos o português porque é algo que nosso universo criou e que fomos criado pelo mesmo. Nosso universo, nossa vida e nosso língua são nossos instrumentos de validação do ser, ser-no-mundo. Nos validamos quando nos tornamos ser-no-mundo, e nossa língua tem esse papel, por isso a grande importância em fazer com que o letramento seja mais que um primeiro contato com o mundo.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

De Kropotkin por Heráclito



Edilson Antônio Alves



A mudança de fundamentos, proveniente da revolução copernicana, traz para o ideário das ciências humanas um outro parâmetro epistemológico. Baseado nessa reconfiguração de saberes, busco o argumento que Piotr Kropotkin (anarquista russo, nascido em 1842 e falecido em 1921, um dos principais defensores do comunismo-anarquismo) se utiliza para, no meu entender, alimentar sua teoria filosófica anarquista.

Vejamos, então, a tese de Kropotkin:

Todo o aspecto do universo muda com esta nova concepção [teoria heliocêntrica]. Desaparece a idéia de força regendo o mundo, da lei preestabelecida, da harmonia preconcebida, para dar lugar àquela harmonia que Fourier anteviu um dia, e que é apenas a resultante dos inumeráveis enxames de matéria, caminhando e conservando-se mutuamente em equilíbrio. (2001: 24)

Se antes o homem, por temor ao desconhecido, tenta justificar as instituições e até o poder de uns sobre os outros, a partir do momento em que se tem uma reconfiguração de mundo – e de universo –, pode-se asseverar que este temor deixa de ser elemento reconfigurante, o que garantiria uma maior liberdade para este mesmo homem – e liberdade passa a ser entendida não como algo concreto e reduzido, mas elástico e amplo, onde se tem uma liberdade, que coloque o homem acima (pelo menos como propósito) da imposição de poderes proveniente do discurso filosófico-jurídico reinante – e aqui me refiro à materialização do capitalismo e a constante reificação do homem, transformando-o em objeto de ganho, para um fim exploratório.

O fato de estarmos imersos no social dá cabo à justificativa desta transformação, visto que, desde o momento em que o coletivo sente, ou sofre, uma mudança muito drástica, todos os elementos desta colônia sofrerão com isso. Portanto, cada elemento dessa colônia deveria lutar para resolver os sofrimentos e desventuras de seu grupo. O que afeta um, deve afetar a todos; isso é o que mais se aproxima da solidariedade anarquista.

A grande questão que fica na escrita de Kropotkin é a de que toda harmonia, desde que aconteça, deveria existir de forma provisória. É como se houvesse um estado de guerra constante, onde a vontade do grupo só se mantém para transformar sua coletividade.

Há sim a cordialidade entre as várias facetas da cultura, não significando, contudo, que esta cordialidade se imponha. A maior cordialidade estaria no reconhecimento da diferença e no convívio com ela. Pensadas como mal-entendidos, estas diferenças impõem um consenso chucro, determinando o suicídio conceitual da própria cultura, desembocando, em menor grau, na patologização da diferença.

Com relação à aceitação de certa Doutrina, como sendo uma verdade inquestionável e sagrada, pode-se dizer que, dos elementos acima, dois entram em cena: 1) é o caso da criação de identidade e, 2) da construção de uma cultura bastante ideologizada – pois, disso depende a construção simbólica desta cultura e de suas correlações –, com forte respaldo numa ordem formal.

Não podemos nos esquecer, portanto, que a própria noção de cultura, dentre suas várias interpretações, tem nesta construção ideológica sua concretização, determinando uma memória coletiva comum, e impondo certos parâmetros de conduta. Vejamos, pois, como Cliffort Geertz em A Interpretação das Culturas nos informa sobre isso:

Outra implicação é que a coerência não pode ser o principal teste de validade de uma descrição cultural. Os sistemas culturais têm que ter um grau mínimo de coerência, do contrário não os chamaríamos sistemas, e através da observação vemos que normalmente eles têm muito mais que isso. Mas não há nada tão coerente como a ilusão de um paranóico ou a estória de um trapaceiro. A força de nossas interpretações não pode repousar, como acontece hoje em dia com tanta freqüência, na rigidez com que elas se mantêm ou na segurança com que são argumentadas. Creio que nada contribui mais para desacreditar a análise cultural do que a construção de representações impecáveis de ordem formal, em cuja existência verdadeira praticamente ninguém pode acreditar. (1989: 13)

Todo o passado da cultura passa a ser pensado, a priori, antes de se tentar traçar algum tipo de confirmação do objeto homem e sua história.

Diferente do Medievo, onde toda a explicação provinha de cima, neste momento tenta encontrar cá embaixo uma outra explicação plausível, e também outros parâmetros de conduta e comportamento, sem, contudo, desvincular-se totalmente desse éter, ser impassível que sobrevoa a vontade do homem, mantendo-se acima do mesmo, e que o coloca numa certa prisão psicológica – como se percebe, há aqui uma discussão da teoria copernicana, e, com base em especulações, como a mesma poderia servir de subsídio à obra de Kropotkin.

Esta discussão lembra a obra de Heráclito, em especial, o estado de guerra que do Uno (Também chamado de logos, palavra usada para designar “palavra” ou, mais propriamente, “ação” ou “estudo sistematizado”, ou dinâmica de organização do elemento Saber, e foi uma das primeiras construções conceituais que dizem respeito à busca pela verdade, ou mesmo pelas origens – se bem que para os gregos do período de Heráclito a noção de origem ainda é algo um tanto quanto obscura, sendo portanto, muito pouco usada; há sim a noção de retorno e de ciclo, jamais de começo, daí a noção de eterna guerra entre os opostos: do Uno há a divisão de dois pólos que, pelo resto da eternidade se digladiariam para construir o saber) advém para, em seguida, retornar a este Uno, para, noutro momento, subdividir-se novamente.

Parece-me uma teoria bastante coletivista, porquanto, dentro de um elemento comum, a saber: a transformação e ajuda mútua, uma vez que, em Kropotkin há a afirmação do comunismo-anarquismo, em que se imagina a tendência para a igualdade econômica e política. Contudo, uma ajuda nem um pouco harmônica:

A harmonia aparece assim como equilíbrio temporário, estabelecido entre todas as forças, como uma adaptação provisória; e este equilíbrio só durará com uma condição: a de se modificar continuamente, representando em cada instante o restante de todas as ações contrárias. (2001: 30)



Bibliografia Consultada

GEERTZ, Clifford (1989). As Interpretações das Culturas. Rio de Janeiro: LTC.

HERÁCLITO de Éfeso (2000). Sobre a Natureza, tradução de José Cavalcanti de Souza. PESSANHA, José Alberto. Pré-Socráticos. São Paulo: Nova Cultural (Coleção Os Pensadores).

KROPOTKIN, Piotr (2001). A Anarquia: sua filosofia, seu ideal, tradução de Plínio Augusto Coêlho. São Paulo: Imaginário (Coleção Escritos Anarquistas).

Viva Para Ser de Novo...


A concepção da linguagem como instrumento de formação chegou hoje à sua concepção mais extrema. Quando se reporta à palavra, o homem está dentro de sua própria mutação, onde podemos mensurar, sempre a possuindo. O curso dessa mutação não para tão de repente. Isso se completa em outro local, onde há um silêncio mais profundo. 

Certamente, devemos admitir que a linguagem, dentro de seu uso quotidiano, aparece como um meio de compreensão, onde a mesma se encontra dentro das circunstâncias mais comuns de nossa vida. 

Somente existe dentro de outras relações mais que as relações mais corriqueiras. 

Goethe qualifica estas outras relações de "mais profundas", e diz, a propósito da linguagem: "Dentro da vida quotidiana, nós nos arranjamos tão bem que mal compreendemos a palavra que nos circunda, que não em outra situação, dentro de significações superficiais. E a partir do momento em que compreendemos estas relações mais profundas, uma outra palavra faz sua apresentação: a palavra poética."

E a poesia corrobora com o humano que, nalgum momento, deixamos de ser. Ou voltemos a sê-lo, ou deixemos de existí-lo! Viva para ser de novo...