sábado, 22 de novembro de 2008

Uma Construção em Fragmentos...


Parte III



A razão a qualquer preço, tal como pretendia Sócrates, nos arrebataria, arrancando de nossa terrível natureza humana (a mesma referida acima como propensa ao medo e à contradição da terrível verdade) os elementos mais primevos de nosso instinto. “Os instintos precisam ser combatidos – esta é a fórmula da décadence. Enquanto a vida está em ascensão, a felicidade é igual aos instintos.” (Crepúsculo dos Ídolos: O Problema de Sócrates, §11).


E a ascensão à qual Nietzsche se refere é a mesma levantada por Sócrates quando da alavancagem da razão: uma “luz diurna mais cintilante, a racionalidade a qualquer preço, a vida luminosa, fria, precavida, consciente, sem instinto (...)” (Crepúsculo dos Ídoloso: O Problema de Sócrates; §11).


Uma contraposição clara, e que mostrara efetivamente o instinto, senão como uma doença, do ponto de vista de Sócrates. Daí a ascensão da vida e sua conceitualização de felicidade: uma clara contraposição ao peso homérico de Atenas anterior a Sócrates: "Mas o que se encontra por trás do mundo homérico, como local de nascimento de tudo o que é helênico? Nesse mundo, somos elevados pela extraordinária precisão artística, pela tranquilidade e pureza das linhas, muito acima da mera confusão material (...) mas para onde olharíamos, se nos encaminhássemos para trás, para o mundo pré-homérico, sem a condução e a proteção da mão de Homero?" (Cinco Prefácios: 64)


Nessa época sanguinária a luta é cura (Cinco Prefácios: 67); e é exatamente atrás da cura que Nietzsche volta suas mais valiosas letras. A mesma cura que Sócrates fez questão de condenar, trazendo, ainda conforme Nietzsche, doença para Atenas, através de sua cicuta, impelindo tal cidade para o cálice com o veneno (Crepúsculo dos Ídolos: O Problema de Sócrates; §11).


A partir do momento em que há a constatação da doença, Nietzsche passa a atacar aquele que essa doença disseminou – com sua cicuta.


A ética grega apresentada por Nietzsche é a mesma que coloca duas deusas Eris – deusas da inveja – no início de tudo. Como um complemento, há a necessidade da atuação de uma contradição para o elemento primordial grego surgir: “O grego é invejoso e percebe essa qualidade, não como uma falha, mas como a atuação de uma divindade benéfica: – que abismo existe entre esse julgamento ético e o nosso!” (Cinco Prefácios: 70).


E a exclamação de Nietzsche é justamente porque ele está se referindo ao julgamento ético moderno: aquele que Sócrates consolidou quando de sua cicuta.


Pois bem, um homem tão franzino e 'doente', conseguiu jogar por terra toda uma tradição de vitória e liberdade. Deixando nos homens a sensação de orfandade e arrebanhamento. Dando aos grandes 'pastores' ocidentais mão-de-obra para toda uma existência.


Criou-se, com isso, toda uma justificação da teoria divina, e da necessidade de escravização dos homens: meras ovelhas de um rebanho gigantesco e ocidental.


A partir deste momento – e de Sócrates – a plebe ascende ao poder. Jogando os fortes e aristocratas de antanho no limbo da culpa e da moralidade fatalista.


Cria-se argumentos, dentre os quais a primazia da razão, para se justificar ações. Ações moralizantes e arrebanhadoras.


Mas Sócrates não foi nenhum inocente neste seu ato desesperado. O fato de tomar cicuta, sem ao menos se preocupar com a própria vida, mas com as idéias que havia deixado (exemplo maior disso o ressentido Platão), e com a verdadeira vida que teria pela frente, faz com que este franzino ser, antes que algum outro venha e ocupe seu lugar – visto que Sócrates compreendera o momento histórico pelo qual Atenas estava passando, sentindo a deixa para se tornar seu maior exemplo –, demonstre a contra-força que usara para fazer com que esta sensação de desamparo nos acompanhasse até nossos dias; deixando-nos fracos e dependentes – meras ovelhinhas de um projeto universal de submissão da moral guerreira e aristocrata.


Prova maior deste seu ato como algo não inocente pode ser buscado no seguinte aforismo de Nietzsche: "Mas Sócrates desvendou ainda mais. Ele olhou por detrás de seus atenienses nobres; ele compreendeu que seu caso, a idiossincrasia de seu caso, já não era nenhuma exceção. O mesmo tipo de degenerescência já se preparava em silêncio por toda parte. A velha Atenas caminhava para o fim. – E Sócrates entendeu que todo o mundo tinha necessidade dele: de sua mediação, de sua cura, de seu artifício pessoal de autoconservação... Por toda parte os instintos estavam em anarquia; por toda parte estava-se cinco passos além do excesso; o “monstrum in animo” era o perigo universal. “Os impulsos querem fazer-se tiranos; precisa-se descobrir um antitirano, que seja mais forte”... Quando aquele fisionomista revelou a Sócrates quem ele era, uma caverna para todos os piores desejos, o grande irônico ainda deixou escapar uma palavra, que deu a chave para compreendê-lo. “Isto é verdade, disse ele, mas me tornei senhor sobre todos estes desejos”. Como Sócrates se assenhorou de si mesmo? – No fundo o seu caso foi apenas o caso extremo; apenas o caso mais distintivo disto que outrora começou a se tornar a indigência universal: o fato de ninguém mais se assenhorar de si, de os instintos se arremeterem uns contra os outros. Ele fascinou como este caso extremo – sua feiúra apavorante o comunicava a todos os olhares: ele fascinou, como segue de per si, ainda mais intensamente enquanto resposta, enquanto solução, enquanto aparência de cura para este caso." (Crepúsculo dos Ídolos: O problema de Sócrates, §9)


A fascinação que, após sua morte, surgiu no mundo ocidental, como podemos notar, teve um papel importantíssimo para a efetivação de sua filosofia. O exemplo que, renitentemente, Platão coloca na cabeça das pessoas, dará uma força gigantesca nesta luta contra a força da virtude e da arete grega.


Os instintos que davam aos gregos sua melhor vestimenta tornam-se, a partir de tão acachapante exemplo, matéria de iniquidades e de barbarismos.


Estaria aí, talvez, uma das possíveis explicações para podermos, minimamente, tentar compreender nossa tradição, e o desmando galopante de sua força. Valores que, por um motivo peculiar, adquirem força de lei. Ganhando enorme sacralidade para nossas incautas cabeças.


Valores que, a partir do momento que passam a ser questionados, ganham força de contravenção à tradição ocidental, e sua História errônea e equivocada.


Penso, justamente por tudo isso que fora exposto acima, que a inflexão nietzscheana poderia servir de subsídio para o alheamento que, de sua obra, nos surgira aos olhos como uma pitada de luz na rotunda escuridão da modernidade – escuridão por excesso de luz!

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