sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Uma Construção em Fragmentos...


Parte II



Pensando assim, e tentando encontrar o momento em que Nietzsche faz esta constatação – a constatação de que muito fez, Sócrates, para tentar apagar a velha Atenas –, o primeiro lume da consciência que se nos advêm, remonta o período histórico chamado de 'homérico'.


Uma natureza que, desconsiderando limites de separação entre o terrível e o humano, se-nos coloca diante de uma natureza toda construída na contradição e na peleja.


E é exatamente este momento que Sócrates descaracteriza, trazendo para o homem uma aura de idealidade, passividade e harmonia.


O medo que poderia afligir, afirmaria Nietzsche, quando da aproximação deste momento, e sua possível compreensão, assim se apresenta aos olhos dos frágeis conceitos da humanidade moderna, daí a preocupação em trazer para o seio da sociedade ateniense um novo viés, aliás uma nova revelação e um novo divino. Conceitos elencados por Sócrates em seus primeiros sinais de construção.


Ademais, como se sabe bem, em Platão o mundo das idéias – aquele que é verdadeiro – é imutável e inexpugnável. Como então aceitar alguém falando que há uma certa multiplicidade na persecução da verdade?, e seria esta multiplicidade que garantiria seu teor de saber. E esta multiplicidade, devido sua inspiração na vida, a responsável por prover o saber de seus mais recônditos templos?


Se em Parmênides ser e não-ser se encontram em lados opostos, em Heráclito ambos elementos se complementam, dando ao saber uma vivacidade que alimenta esta sabedoria, embora também um medo de um desconhecido que não está sob a guarita racional. Apesar de contrários, jamais excludentes, ao contrário, complementares.


Por isso, ao sentir esse medo, Nietzsche constata que só o sentimos por não compreender, de uma forma mais completa, este mundo como um 'grego' (Cinco Prefácios: 66), pois há muito a humanidade, ainda conforme Nietzsche, já perdeu o terrível olhar que um grego, como Homero, lançaria sobre cenas tão curéis, humanas e naturais; a começar por qualquer cena de Ilíada.


O estado de alerta e suspeição que inspirava os pré-socráticos – ou mesmo sofistas, uma vez que, para Platão e Sócrates ambos pareceriam uma coisa só –, por outro lado, desqualificaria o ser imutável de Platão e, como tal, poria abaixo toda a teoria da inexpugnabilidade que adviria do saber. Não dá para raciocinar com o medo presente, muito menos com a incerteza do posterior momento.


Essa queda, pelo que nos parece, poderia ser demais para nosso filósofo. O fato de se agarrar a algo tão sólido, e que lhe garanta certeza, sempre lhe perseguiu, desde a morte de Sócrates: modelo ideal de 'inexpugnabilidade' e 'incorruptibilidade' da alma.


Até que ponto este lado 'humano' não interferiu nos fundamentos epistemológicos de Platão? Não surgiria aí um ressentimento de um Estado que teria força suficiente para garantir a pluralidade de um mundo (pensemos nos vários deuses gregos, motivo maior da queda de Sócrates)? Apenas especulações, e que não convêm ao teor de nossas reflexões.


E esta longa cadeia de erros, conforme Nietzsche advertira (Crepúsculo dos Ídolos: O problema de Sócrates, §§01-12), surgida em fragmentos com Parmênides, estilizada em Sócrates e detalhada em Platão e Aristóteles; como sabemos, desencadearia toda a condenação da filosofia originária, esta referida por Nietzsche de Filosofia Trágica (Nascimento da Tragédia), e a justificação da filosofia moderna – esta nossa contemporânea.


Toda uma condenação surgida, simplesmente, duma tentativa de justificação de um saber desertificado, que luta contra a vida, e que a deixa doente. Um saber onde o valor da vida não passa de mero empecilho para a libertação de algo inexistente. Um saber que pensa o corpo como uma carcaça; um objeto degradante que está prendendo o verdadeiro valor. Um corpo que prende a alma em sua 'beleza' mais pujante.


E isso fez Sócrates; pelo fato de não valorizar uma vida em abundância, até mesmo pela fealdade de suas feições, acabou optando por dá o real valor da filosofia à alma; ser 'inexpugnável' e 'incorruptível': este o verdadeiro ontos metafísico do velho Sócrates: "Em Sócrates, a desertificação e a anarquia estabelecidas no interior dos instintos não são os únicos indícios de décadence: a superafetação do lógico e aquela maldade de raquítico, que o distinguem, também apontam para ela. Não nos esqueçamos mesmo daquelas alucinações auditivas que, sob o nome de o “Daimon de Sócrates”, receberam uma interpretação religiosa. Tudo nele é exagerado, bufão, caricatural. Tudo é ao mesmo tempo oculto, cheio de segundas intenções, subterrâneo. – Procuro compreender de que idiossincrasia provém essa equiparação socrática entre Razão = Virtude = Felicidade: essa equiparação que é, de todas as existentes, a mais bizarra, e que possui contra si, em particular, todos os instintos dos helenos mais antigos." (Crepúsculo dos Ídolos: O problema de Sócrates, §4)


Esta luta inusitada, tão pouco usual aos gregos contemporâneos de Sócrates; esta luta sem igual, onde a força que se põe é justamente a força contrafeita à vida; uma força que visa derrubar todo e qualquer sintoma de uma força vívida, real e verdadeira, uma força que somente a vida em abundância poderia oferecer; esta força ao contrário, porém, extremamente belicosa, usada por Sócrates para combater os instintos e as contradições do homem livre: aquele mesmo que era contrafeito à pólis, e que, se dela se aproximasse, seria totalmente ostracizado.


É justamente esta força sobre-humana, uma vez que tinha na alma seu maior quinhão, que colocará trilho na filosofia moderna, ostracizando de vez todo e qualquer sintoma de contradição e guerra – bem aos moldes de Heráclito.

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