sábado, 16 de fevereiro de 2008

Seção D'Outro



Bento XVI lido na Universidade Sapienza - o discurso muito resumido…
Luciano Castanheira

O Papa fala como representante de uma comunidade crente (…) de uma comunidade que tem consigo a custódia de um tesouro de consciência e de experiência ética (…) neste sentido fala como representante de uma razão ética. (…) A verdade torna-nos bons e a bondade é verdadeira: é este o otimismo que vive na fé cristã, porque a esta foi dado a conhecer a visão do Logos, da Razão criadora que, na encarnação de Deus, se revelou junto com o Bem, como a própria Bondade.

Foi notícia o convite ao Papa para discursar na sessão inaugural do Ano Acadêmico da universidade em epígrafe, seguido de pedido de suspensão do mesmo por contestação de professores e alunos. Na realidade, o protesto de um professor foi assinado e/ou assumido por 667, tendo a universidade no seu todo mais de 4000; na «contestação» e invasão da reitoria tomaram parte uns 100 a 200 alunos dos 150.000 inscritos nas suas 21 faculdades, cento e trinta departamentos e institutos e cento e vinte e sete escolas de especialização.

Giorgio Israel(1) comenta ser «surpreendente que quem escolheu como lema a célebre frase atribuída a Voltaire — “lutarei até à morte para que tu possas dizer o contrário do que penso” — se oponha a que o Papa pronuncie um discurso na universidade de Roma La Sapienza».

No seu discurso o Papa elogia a «comunidade» da Sapienza:

«Desde sempre a Igreja de Roma olha com simpatia este centro universitário, reconhecendo o empenho, tantas vezes árduo e fatigante, da investigação e da formação das novas gerações. De fato, a “Sapienza” era, até certa altura, a Universidade do Papa, mas hoje é uma universidade laica com aquela autonomia que, na base do seu próprio conceito fundador, sempre fez parte da natureza da universidade, a qual deve estar ligada exclusivamente à autoridade da verdade. (…) a sociedade moderna tem (…) necessidade de uma instituição como esta».

E «que coisa pode e deve dizer um Papa numa ocasião como esta»? Questiona-se porque em Ratisbona, embora tendo sido convidado o Papa, tinha falado «na veste de professor daquela [sua] Universidade».

Agora o convite fora feito ao Bispo de Roma e teria mesmo de falar como Papa.

«O Papa fala como representante de uma comunidade crente (…) de uma comunidade que tem consigo a custódia de um tesouro de consciência e de experiência ética (…) neste sentido fala como representante de uma razão ética. (…). E que coisa é a universidade? Qual a sua missão? (…) Penso que se possa dizer que a verdadeira, íntima origem da universidade esteja no desejo ardente de consciência que é próprio do homem. Ele quer saber o que é tudo o que o rodeia. Quer verdade.(…) Verdade é, antes de mais, uma coisa do ver, do compreender, da theoria como lhe chama a tradição grega. Mas a verdade não é apenas teórica. O simples saber, disse [Santo Agostinho], torna-nos tristes. E de fato quem apenas vê e aprende tudo o que acontece no mundo, acaba por se tornar triste. Mas a verdade significa mais do que saber: a consciência da verdade tem como objetivo a consciência do bem. Este é o sentido do interrogar-se socrático: Qual é aquele bem que nos torna verdadeiros?

A verdade torna-nos bons e a bondade é verdadeira: é este o otimismo que vive na fé cristã, porque a esta foi dado a conhecer a visão do Logos, da Razão criadora que, na encarnação de Deus, se revelou junto com o Bem, como a própria Bondade. (…)».

E, continuando a observação do que era próprio de cada faculdade na universidade medieval — que esteve na origem daquela a quem falava:

«Diferenciando-se da filosofia neo-platônica (…) os Padres tinham apresentado a fé do cristão como a verdadeira filosofia (…) que a fé é o “sim” à verdade (…). Mas depois, no momento do nascimento da universidade, no Ocidente já não existiam essas religiões, mas apenas o cristianismo e assim era necessário sublinhar de modo novo a responsabilidade própria da razão, que não vem embebida na fé.

Tomaz encontrou-se em ação num momento histórico privilegiado(2): pela primeira vez os escritos filosóficos de Aristóteles eram acessíveis na sua integridade; estavam presentes os filósofos hebreus e árabes, como apropriações específicas e prossecuções da filosofia grega. Assim, o cristianismo num novo diálogo com a razão dos outros, que vinha encontrando, devia lutar pela própria razoabilidade. (…) Direi que a ideia de S. Tomaz acerca da relação entre filosofia e teologia poderia ser expressa na fórmula encontrada pelo Concílio de Calcedônia (3): devem reportar-se entre elas “sem confusão e sem separação” (…). A filosofia deve permanecer verdadeiramente uma procura da razão na própria liberdade na própria responsabilidade; deve ver os seus limites e também a sua grandeza e vastidão. A teologia deve continuar a atingir um tesouro de consciência que ela própria não inventou que sempre a supera e que, não sendo nunca totalmente exaurível mediante a reflexão, precisamente por isso guia sempre de novo o pensamento. E “sem separação”: a filosofia não recomeça de cada vez do ponto zero do sujeito pensante de modo isolado, mas está no grande diálogo da sapiência histórica (…); mas não deve fechar-se diante do que a religião e em particular a fé cristã receberam e deram à humanidade como indicação de caminho.

Várias coisas ditas por teólogos ao longo da história, ou então traduzidas nas práticas das autoridades eclesiásticas, foram demonstradas falsas e hoje confundem-nos. Mas ao mesmo tempo é verdade que a história dos santos, a história do humanismo que cresceu tendo por base a fé cristã, demonstra a verdade desta fé no seu núcleo essencial, tornando-a com isso, também, uma instância para a razão pública. [Claro é que há quem não tenha fé] Porém é verdade que, ao mesmo tempo, a mensagem da fé cristã não é nunca apenas uma “comprehensive religious doctrine”, no sentido de Rawls (4), mas uma força purificadora para a própria razão, à qual ajuda a ser mais ela própria. A mensagem cristã, tendo por base a sua origem, deveria ser sempre um encorajamento em direção à verdade e, desse modo, uma força contra a opressão do poder e dos interesses».

A terminar refere-se Bento XVI à Universidade e saberes do nosso tempo de progresso, no anseio do homem «melhor se compreender a si próprio».

Destaco este aviso:

«O perigo do mundo ocidental — para falar apenas deste — é hoje que o homem, tendo em consideração a grandeza do seu saber e poder, ceda diante da questão da verdade. (…) Dito do ponto de vista da universidade: existe o perigo de que a filosofia, não se sentindo já capaz de levar a cabo a sua verdadeira tarefa, se degrade em positivismo; que a teologia, com sua mensagem remexida pela razão, fique confinada à esfera privada de um grupo mais ou menos grande». (…)

«Do seu ministério de Pastor da Igreja (…) é sua tarefa manter a sensibilidade pela verdade; convidar sempre de novo a razão a pôr-se em busca do verdadeiro, do bem, de Deus (…) e a perceber assim Jesus Cristo como a Luz que ilumina a história e ajuda a encontrar o caminho em direção ao futuro».

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(1) Artigo de em «L’Osservatore Romano»

(2) Estuda (…) com o erudito alemão Alberto Magno em Paris (1243-1248) e em Colônia (1248-1252). Volta a Paris, em 1252, iniciando os seus comentários da Bíblia. Começa a ensinar nesta cidade, sendo nomeado mestre da Universidade em 1257, dois anos depois regressa a Itália. Em 1265 é encarregado de organizar os estudos da Ordem dos Dominicanos em Roma. Em 1269 volta a Paris ocupando a sua cátedra de mestre de teologia. http://afilosofia.no.sapo.pt/10aquino.htm

(3) Concílio de Calcedônia, reunido em 451.

(4) J. Rawls (1921-202): «Procurou formular as bases de um sistema ético-político que fosse garantia de um estado de justiça equitativa, e onde a desigualdade só seria justificada no caso de estar ligada a funções e posições abertas a todos em condições de justa igualdade de oportunidades, e servir para maior benefício dos menos favorecidos. Na sua obra fundamental — A Teoria da Justiça (1971) —, estabeleceu um conjunto de princípios segundo os quais uma sociedade poderia ser considerada justa». http://afilosofia.no.sapo.pt/12rawls.htm

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