sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Reminiscências Íntimas II


Coisas de Abismo

Pois bem, a complexidade, como dito outrora, tem um quê de reminiscências. Especialmente aquelas que não nos lembramos mais e que, contudo, em alguns momentos ela volta. Talvez num momento de trauma, outros de estresse... e assim vai. Apenas somos legítimos quando de nossos limites à prova. Não é à toa que gosto da filosofia de Nietzsche, principalmente quando de sua noção de abismo. Para ele, é necessário retirar nosso solo dos pés e nos jogar no abismo para encontrarmos o momento extremo de nossa complexidade, e também de nossa personalidade. O mais interessante, neste momento, é justamente o medo que nos dá quando estamos de frente a este buraco escuro. Apesar de não sabermos o que tem no fundo, um temor nos acomete, e tira-nos de nossa autenticidade.

Tem também uma outra noção que gosto muito de utilizar e que, de forma direta, nos coloca num certo abismo, embora um abismo em sua mais profunda e tenebrosa efetivação. Me refiro, neste momento, ao que Kant nomeou como terrorismo da natureza: apenas em estado de constante terror e êxtase que descobrimos o quanto o assombro e o medo podem ser úteis. Se nas primeiras linhas me referi a este medo, agora busco-o de volta, senão para confirmar esta minha afirmação.

Este estado de assombro, perante a natureza, segundo Vico, é que nos colocou diante da grandeza de nossa inteligência, mostrando-nos que somos capazes de fazer mais que o mero grunhido. Somente quando descobrimos o quanto éramos mínimo que ousamos buscar o outro lado, caindo de cabeça no abismo. Sim, o abismo pode ser o caminho... e seria por meio da reminiscência que este caminho poderia ser melhor visualizado, mesmo na escuridão do abismo.

Este outro caminho, tal como a terceira margem de Guimarães Rosa, concretamente não existe. Sua existência está condicionada ao nosso pensamento. Neste sentido, a terceira margem só existe enquanto possibilidade de transgressão. Apenas criamos uma nova realidade, quando damos ao mundo novos signos e sentidos. Se falta palavra para compreender o inaudito, é necessário que criemos, daí pensar o inaudito enquanto possibilidade constante... isto é pensar livre... isto é transgredir o pensamento e, por conseguinte, a linguagem. E esta linguagem pode estar no outro, ou no reverso deste outro!

Por isso, tem coisas que tentamos buscar no outro uma solução, e até um emplasto para nossa doença. No entanto, nos esquecemos que o outro pode ser apenas o espelho do que somos... por isso a conjugação em primeira pessoa. Um som qualquer, uma necessidade outra àquelas habitualmente constantes em nossa vida, pode mostrar o local desta terceira margem.

Assim se mostra, plenamente, este abismo, e o quanto seu terrorismo pode servir-nos como emplasto. Qualquer fato que foge à rotina nos põe a pensar além. E seria a falta deste pensamento profundo e assombroso o chato quotidiano de nossos dias, de nossas angústias, e das noites insones, entrando madrugada adentro. A necessidade de se pensar em algo outrora não pensado, e que nos acomete por vezes, estando em nosso cognoscente mais íntimo, é que nos faz lembrar o quanto as reminiscências podem ser importantes. Especialmente aquelas reminiscências ocultas, escondidas em algum capacho onde escondemos a poeira.

Por outro lado, não há como se esquecer de que outras reminiscências, longe de nos ajudar, apenas atrapalham. E estas últimas são justamente aquelas que fazem com que acreditamos em algo outro. Sim, existem verdades que não nos pertencem, mas pertecem ao outro. Um outro caracteristicamente direcionado. Temos que olhar este lado também, de preferência para evitá-lo... ou talvez para fazer de sua lembrança um momento não necessário – embora a não-necessidade não seja pensada, stricto senso, como a uma linguagem concreta, mas a um discurso non-sense que se afirma por si mesmo e perante o mundo circundante –, e que precisa ser superado como a algo necessário. Neste caso a memória serve de ajuda e de consolo. Ela pode ser útil quando da fuga, sempre lembrada, destas verdades que não nos competem e que, entretanto, nos fazem acreditar em algo não nosso.

Nenhum comentário: