segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Schopenhauer, ensina-me a viver


Autor de Fragmentos apresenta articulação de idéias dirigidas à experiência e não à ostentação pública

Em Schopenhauer Educador, um dos mais belos textos já dedicados ao grande pensador, Nietzsche demonstra toda a sua admiração por aquele que, segundo suas palavras, conseguiu ir além das deficiências de seu tempo e ensinou “de novo” algo que a filosofia jamais deveria ter esquecido: a simplicidade e a honestidade, tanto no pensamento quanto na vida. Schopenhauer é simples, íntegro e, sobretudo, sereno como Montaigne, diz Nietzsche. Mas ele não é só isso. É forte, vigoroso e, concordando ou não com os seus princípios, somos tentados a refletir sobre suas idéias, sempre coerentes e harmônicas.

Schopenhauer produziu um sistema extraordinário e, apesar de Nietzsche considerar a “vontade de sistema” uma espécie de desonestidade diante da vida (sempre tão fluida e pulsante para ser colocada em uma fôrma), em Schopenhauer tudo é honesto. É claro que tal honestidade não impediu Nietzsche de romper posteriormente com seu “mestre espiritual” e chegar a idéias completamente distintas. Porém, apesar das críticas mais tardias feitas pelo próprio Nietzsche à filosofia de Schopenhauer, o elo entre o filósofo da “vontade de potência” e o filósofo da “vontade de vida” é profundo - embora para entender isso seja preciso conhecer a obra dos dois filósofos.

Aliás, como diz muito bem o próprio Schopenhauer, quem deseja mesmo conhecer a filosofia deve ir direto às fontes. Ler uma “história da filosofia” em vez de ler as obras dos próprios filósofos, diz, é como querer que outra pessoa mastigue o que comemos. É o que nos ensina o filósofo nas primeiras páginas de seu Fragmentos Sobre a História da Filosofia, publicado pela Martins Fontes em tradução de Karina Jannini: nenhum manual, nenhum comentador, pode nos fornecer o que a obra de um filósofo oferece. Alguém leria a história universal se pudesse ver com seus próprios olhos os acontecimentos do passado que lhe interessam?, pergunta.

Esses Fragmentos fazem parte do Parerga e Paralipomena. Longe de ser uma história da filosofia no sentido ortodoxo, representam um olhar visceral sobre os caminhos e descaminhos da filosofia ao longo dos séculos. É, no fundo, um brilhante exercício de pensamento, que não exclui a crítica implacável a alguns filósofos que, embora muito considerados, são chamados de confusos e até de medíocres. Schopenhauer não poupa ninguém e muito menos teme atacar o hegelianismo que domina o mundo acadêmico de sua época. Diz que ele não tem “nem clareza, nem espírito” e que seu sucesso representa claramente a vitória de uma filosofia de cátedra, estéril e afetada.

Na verdade, ninguém está fora da mira desse filósofo que defende que a verdade não foi feita para agradar e nem deve depender de aplausos ou de adesões. É assim que ele deixa claro, por exemplo, que embora a sabedoria de Sócrates seja um artigo de fé filosófica, não parece muito inteligente um pensador limitar-se a uma minoria que o acaso aproxima dele. Ele deve, ao contrário, buscar estender a sua influência a toda a humanidade e isso só é possível pela escrita. Para o filósofo alemão, Sócrates assemelha-se aos heróis práticos, que agiram mais com seu caráter do que com sua cabeça.

É claro que, dentre todos os filósofos, Kant é de longe aquele pelo qual Schopenhauer tem maior apreço, embora também não concorde com ele em todas as coisas. Dito de outra maneira: como todo grande pensador, Schopenhauer não é discípulo de ninguém. Ele é o criador de sua própria filosofia e, nesse caso - como diz Deleuze -, é um criador de conceitos. Mas criar, segundo Deleuze, também pode ser reativar conceitos anteriores e é quando Schopenhauer se associa com Kant que ele produz o maior de todos os seus conceitos: o da Vontade como a única coisa em si.

Sobre este ponto, recomendamos a leitura de outro texto que se encontra também nessa edição: o Esboço de Uma História da Doutrina do Ideal e do Real. Nesse breve ensaio, Schopenhauer considera mais do que justa a afirmação de que Descartes é o pai da nova filosofia (ou, mais propriamente, da filosofia moderna). Isso porque ele teria sido o primeiro a refletir sobre o que é objetivo e o que é subjetivo na ordem do conhecimento (ou seja, o que pertence ao mundo e aquilo que pertence à própria estrutura da razão). Subjetivo, nesse caso, não tem o sentido de pessoal ou individual, mas de inato, inerente. Dialogando, portanto, com as filosofias de Descartes, Espinosa e, sobretudo, com a de Kant, Schopenhauer reafirma sua posição com relação à representação. O mundo é minha representação, diz ele, e isso quer dizer que existe um abismo intransponível entre a imagem que temos das coisas e as coisas em si mesmas. Schopenhauer não esconde a influência kantiana sobre o seu pensamento, mas distingue-se dele ao defender que só existe uma coisa em si: a Vontade. É ela que anima todos os corpos. O ser é a Vontade e cada indivíduo nada mais é do que o clamor, a expressão profunda dessa Vontade una e eterna.

Schopenhauer é tudo isso e muito mais e ler a sua obra é conhecer a filosofia em seu estado mais puro e vital. Ele mesmo gostava de dizer que sua filosofia era feita de poucos elementos, porque a verdade sempre é simples. Longe dos vícios que corrompem a filosofia de cátedra, seu pensamento é talhado para objetivos superiores e não para a vã ostentação pública. Enfim, esse é Schopenhauer: o filósofo-educador, o eterno mestre de uma humanidade que precisa, cada vez mais, de alguém que a ensine a viver!


Colaboradora: Regina Schöpke é doutora em filosofia, medievalista e autora de Por uma Filosofia da Diferença: Gilles Deleuze, o Pensador Nômade

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