segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Crônicas de Iniciação...



Quando a luz desceu do céu e começou a freqüentar a vida das pessoas, o universo ganhou uma nova significação. A partir de então, sua contextura adquiriu uma concepção humanizante. Este é o momento onde os homens começaram a enxergar o universo interior que é sua vida, com suas felicidades, tristezas e conflitos. Então, a vida começou a se perder no infinito, sobremaneira, quando era pensada e racionalizada. A única certeza destes homens é a de que, a vida é muito mais que um ciclo insosso e pré-estabelecido.


Junto com o universo, a vida ganhou infinitude, tornou-se possibilidade. Dizem que os homens começaram a ponderar acerca de eventos e pensamentos. Surgiu, aí, o homo sapiens, porém, sua sabedoria começou a ser moldada pela recorrência, assumindo um caráter ordinariamente absurdo. Estamos predispostos ao desconhecido e à surpresa.

Tina, assim que descobriu essa possibilidade, se transformou. Sua vida, outrora vazia e supérflua, tornou-se absurda e ambígua... ela descobrira o elo perdido, descera da árvore e começara a plantar, dominando a natureza e seus instrumentos.



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A porta acabara de se abrir após um longo tempo, recheado de gritos e blasfêmias, os pais de Albertina resolveram apresentar-lhe a situação.

Frederica e Jean, após dez anos de constantes atritos, estavam prestes a tomar a maior decisão de suas vidas e, consequentemente, da vida daquela pobre criança de onze anos. A situação tornara-se insustentável, nem mesmo o patrimônio e sua prestigiosa posição de destaque, acumulado por anos ininterruptos de trabalho, e a inocente presença de Tina (era assim que carinhosamente era chamada pelos pais), eram capazes de, falsamente, manter aquele acordo matrimonial.

A vida daquele jovem casal se transformara mui rapidamente, da noite para o dia uma herança batera à porta deles. Um fato inesperado tirara a vida do avô de Tina... recorrência de uma vida imprevisível, como ele mesmo gostava de ressaltar aos ouvidos inocentes de uma criança.

A falibilidade da vida humana é o fato mais absurdo de nossa existência. Ao mesmo tempo que apresentamos o segredo do genoma humano e a vacina para alguma doença fatídica, não sabemos o devir de nosso tempo. Sabemos, sim, que temos nosso próprio tempo, no entanto, as dobras de nosso existir não nos pertence, apesar de incitarmos nossa consciência à normalidade do pertencimento. Uma vida tão normal, mas, ao mesmo tempo, tão surpreendente. Essa é a centelha da vida de Tina, mesmo sem saber, esta máxima impera em sua vida com uma constância quase empedernida, senão teimosa.

A morte do avô e o desenlace de um matrimônio com bases sólidas, e confiante num futuro de realizações, como de fato aconteceu por algum tempo, eclodira o mecanismo absurdo de uma existência, explodindo a catarse diuturna de Tina. As recorrências de sua absurda vida normal deram a guinada necessária, o mundo se abriu num estado de recorrência... o absurdo passaria a conduzi-la, e a vida... desconduzida. Não existem vítimas nem culpados; o maniqueísmo da vida não pode ser encarado como único fio condutor de nossa existência, o que existe é recorrência de vazio e solidão, como também, recorrência de absurdo e ambíguo.

A vida de Tina fora isso; um ponto inicial com convergência entre o maniqueísmo mecanicista das relações humanas e a recorrência absurda do não pertencimento de uma vida normal. Seu existir consegue convergir com o existir dos homens, porém, estes últimos não conseguem enxergar tal convergência, uma vez que o maniqueísmo mecanicista fixou morada em seu cognoscente.

A notícia de inesperada separação, apesar de trágica para a vida de uma criança, não conseguira tirar Albertina do carrossel que entrastes. Após o falecimento de seu avô – um homem culto, sendo o primeiro educador de Tina e também o primeiro a apresentar a absurdez que é a vida –, nada mais poderia pegar Tina de surpresa. Mesmo porque, após a experiência com os livros, sentira em pelo, os ensinamentos do avô. A estupidez em que morreu... apenas exemplo de uma leitura antiga e altaneira..., pregressa ao tempo do elo perdido. A vida, segundo Wilhelm – seu avô –, era a efetivação da absurdez do universo, sendo assim, o homem não passa de protótipo racional dessa absurdez. Ou talvez, mecanismo de construção do insensato.

Da mesma forma que abriu, a porta se fechara, todavia, Albertina não saíra de sua posição... de seu casulo. Apenas levantara a cabeça para confirmar a recorrência de seu espírito. É fato que possuía tudo aquilo que pedia... só não sabia porque pedia. Seu quarto era a confirmação do maniqueísmo simplista de sua vida, aliás, da vida que seus pais lhe dera. Sendo eles a matriz conformadora deste maniqueísmo, são também a edificação triunfal de uma sombra... a sombra da esfinge de nariz quebrado... altaneira e débil.

A surpresa, minha cara Tina, é se surpreender com o devir, ou melhor, com o futuro... tudo pode ser possível desde que adentremos a este mundo.


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Somos instrumentos; minha querida netinha, não sei se você entende o que estou dizendo, mas quando parardes para refletir sobre isso, poderá me compreender melhor.

É por isso que te digo, os homens, apesar de sapiens, precisam se utilizar melhor dessa faculdade mental. Acho que, ao evitarmos tal faculdade, estamos evitando nossa vida; e nossa vida pode apresentar muito mais que simples paredes em branco. Somos a base de nosso absurdo e a quintessência de nosso saber. Espero que, dentro deste saber, a sua vida seja melhor aproveitada.

Ainda uma criança de oito anos, porém com olhos curiosos e brilhantes. Não é a toa que seu avô começou a se aproximar. Notara nessa criança uma capacidade cognoscente extremamente produtiva, por isso resolvera, pessoalmente, desde os seis anos, apresentá-la ás letras... primeiro com a cartilha, notando que, em pouco tempo, não era mais suficiente para saciar a sua curiosidade, sendo fonte interminável de sentidos, passou para obras mais imponentes, aguçando seus sensores.

Lia-as como se estivesse contando uma estória de fadas e anões. Sentia que a saciedade de seu espírito, cansado e carcomido, poderia ser recompensada e suprida com a aprendizagem dessa garota precoce. Nunca, em sua vida, investira tanto em alguém, nem mesmo com seu filho Jean se envolvera tanto.

No entanto, sabia que Tina era diferente, apesar dos regalos, a menina não se contentaria com isso, somente. E, pelo visto, dera certo... sentira que a semente estava germinando e isso era como sorver o néctar, característico das refeições do Olimpo... Se embriagava com tão doce beberagem. Fustigava seu opositor como quem passeia com um bebê, pela pracinha ensolarada. E seu opositor era seu mundo... que planava sobre suas dores.

Mas vovô, como é que podemos descobrir estes sinais? Se eu sou um instrumento da natureza, qual é o papel do universo nisso? Aquela luz que desceu do céu entrou dentro de mim?

Entrou sim, minha querida, e neste momento a vejo despontar em seus olhos. O brilho que deles emana é tão intenso e belo, que chega a cegar as gastas pupilas de seu avô...

Você não precisa ir muito longe para descobrir esta luz, sua presença é a personificação da mesma, e seus olhos são o caleidoscópio do saber.

Mal sabia, a doce Albertina, que essa seria a última de suas entrevistas com o vovô. Entretanto, só depois dessa entrevista que nossa criança começaria a reconhecer os raios de luz que despontavam de seu espírito, e digo mais, após essa entrevista, mas, personificado no corpo frio de seu avô, dentro do gélido ataúde. Ninguém vira, porém Tina enxergara no corpo gelado do avô, o instrumento iluminado que daí saíra, entrando em seu corpinho moço e puro.

A partir deste momento, essa jovem criança começaria a se maravilhar com a absurda normalidade que é a vida humana.

O momento surpreende mesmo os que o esperam...


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