sábado, 28 de março de 2009

Filosofando com Vida!



Resgatando os ‘primórdios’ do conhecimento, ao se referir à Filosofia de Vida, ou mesmo, à afirmação da Vida, o primeiro elemento que se desponta à humanidade, nesta busca por origens, é sua transitoriedade, ou seja, uma finitude que tem hora marcada para se efetivar; é onde o que seria viver se transforma em esgotamento do viver.

Mais que isso, perante a natureza o intelecto humano desdobra-se, se mostrando o quão fugaz e sem finalidade está constituída sua desmedida busca racional da verdade.

Quando, ao final do século passado, Nietzsche apresenta tal constatação, o faz com o intento de subjugar o desejo da morte, de esgotamento de vida. Tudo isso, pela letal necessidade de ‘explicação’ de tudo.

Em Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral, por exemplo, tem-se o seguinte texto: “Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais mentiroso da “história universal”: mas também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer.” (§ 1)

A ‘fábula’ que melhor expressaria o desejo de morte, por esgotamento da vida e explicação total da natureza, dirá Nietzsche, é a que melhor ilustraria o descompasso existente entre o avanço científico-racional e a felicidade humana.

O animal homem, em sua descabida arrogância, necessitou inventar o Conhecimento (especificamente o lógico). Parece-nos que conseguiu, inaugurando com isso toda a Tradição filosófica. Apenas esqueceu-se de que a vida precisava ser ‘desbotada’. Essa ânsia de morrer – também conhecida como busca pelo esgotamento do conhecimento, por meio do intelecto –, pelo conhecimento, criou monstros, daí o desejo de encontrar um outro elemento, que desse nova chance à vida e ao homem – Nietzsche buscará na intuição (FT: §§ 5-9; VM) este outro elemento.

Nova referência: “Não há nada tão desprezível e mesquinho na natureza que, com um pequeno sopro daquela força do conhecimento, não transbordasse logo como uma odre; e como todo transportador de carga quer ter seu admirador, mesmo o mais orgulhoso dos homens, o filósofo, pensa ver por todos os lados os olhos do universo telescopicamente em mira sobre seu agir e pensar.” (VM: § 1)

O intelecto, fonte de todo esse ambicioso projeto, ao afirmar-se, joga por terra a felicidade humana. Quer-se conhecer tudo, e a todo custo, até como sintoma de reconhecimento (nem que nos tomemos como um transportador de carga em busca de admiração), aliás, auto-reconhecimento, como se os olhos do universo estivessem sobre o animal homem; é quando a vida se relega a elemento subordinado, e se transforma em carga de admiração.

Por outro lado, ao tentar resgatar este elemento vital, Nietzsche aposta num outro caminho. Podemos dizer que surge, com esse desejo, a ‘filosofia de vida’. Uma vez que o intelecto apoderou-se do mundo e transformou a ilusão e o disfarce em essência, ele deu para o indivíduo um instrumento de controle dele mesmo, um instrumento moral. Assim, abrimos mão da luta pela existência, o que nos apresenta, ademais, a seguinte constatação: apenas no sentido moral, de conservação do indivíduo, que se dá a verdade. Uma conservação intelectual em detrimento da vital.

A vida, pensada a partir do vir-a-ser de Heráclito, deixa de ser uma punição (como em Anaximandro) e se transforma numa dádiva. Vir-a-ser como justificação da vida, e não da essência do conhecimento.

Vejamos as duas referências, apresentadas por Nietzsche: “O que vale vosso existir? E se nada vale, para que estais aí? Por vossa culpa, observo eu, demorai-vos nessa existência. Tereis de expiá-la com a morte. Vede como murcha vossa Terra; os mares minguam e secam; a concha sobre a montanha vos mostra o quanto já secaram; desde já o fogo destrói vosso mundo, que, no fim, se esvairá em vapor e fumaça. Mas sempre a edificar-se um tal mundo de transitoriedade: quem seria capaz de redimir-vos da maldição do vir-a-ser?” (FT: § 4)

Um universo onde a transitoriedade do saber coloca tal filósofo sem solo, tirando-lhe suas certezas: “quem seria capaz de redimir-vos da maldição do vir-a-ser?”; eis que surge a pergunta necessária para tirar da vida o elemento filosófico.

Surge então a contraposição, momento em que Nietzsche vê uma luz que o faz resgatar, de novo, a vida: “No meio dessa noite mística em que estava envolto o problema do vir-a-ser, de Anaximandro, veio Heráclito de Éfeso e iluminou-a com um relâmpago divino. 'Vejo o vir-a-ser', exclama, 'e ninguém contemplou tão atentamente esse eterno quebrar de ondas e ritmo das coisas. E o que vi? Conformidade a leis, certezas infalíveis, trilhas sempre iguais do justo. Por trás de todas as trangressões das leis vi Eríneas julgando. Vi o mundo inteiro com o espetáculo de uma justiça reinante e forças naturais demoniacamente onipresentes subrodinadas a seu serviço. Não vi a punição do que veio a ser, mas a justificação do vir-a-ser. Quando se manifestou o crime, o declínio, nessas formas inflexíveis, nessas leis santamente respeitadas? Onde reina a injustiça há arbítrio. Desrodem, desregramento, contradição; mas onde, como neste mundo, regem somente a lei e a filha de Zeus, Dike, como poderia ser ali a esperada culpa, da expiação, da condenação e como que o patíbulo de todos os danados?'” (FT: § 5)

Ao negar o ser, difernete de seus antecessores, Heráclito afirma o transitório e o indeterminado, o que o coloca lado a lado com a afirmação da vida, transitória em sua diária efetivação, “cercada e protegida por eternas leis não escritas, fluindo e refluindo em brônzeas batidas de ritmo”. (FT: § 5)

Se a verdade racional tem se mostrado como um problema moral, e não mais vital, reconhece-se com isso que a modernidade tem herança nesta composição racional-científica. Tentando encontrar o outro caminho, ou mesmo a outra margem do rio, repensar, tal caminho, seria o mais correto. Imagino que tenha sido esta a proposta de Nietzsche, ao desenterrar a obra de Heráclito.

Daí, ao falar em ‘filosofia de vida’, há que se falar também de Heráclito, como o próprio Nietzsche constata; ao tentar achar o porquê de se querer tão esgotadamente o Logos: “Uma obrigação de conhecer o logos, por ser homem, não existe. Mas por que há terra? Isto é para Heráclito um problema muito mais sério do que perguntar por que os homens são tão estúpidos e ruins. Nos homens mais superiores e nos mais pervertidos revela-se a mesma legalidade e justiça imanentes. Mas, se se quisesse propor a Heráclito a questão: por que o fogo não é sempre fogo, por que ora é água, ora é terra? –, ele responderia apenas: “É um jogo, não o tomeis tão pateticamente e, antes de tudo, não o tomeis moralmente!” (FT: § 7)

O problema está no elucidar dos conceitos (daí a referência ao fogo, terra e água tão veementementes referidos a Heráclito). Se a resposta se resumisse ao jogo e à vida, aí sim, poderíamos chegar à constatação nietzscheana: o espantoso descompasso entre o avanço cioentífico e a felicidade humana.

Por trás da busca racional da verdade mora o desejo da morte, aliás, o desejo de esgotamento da vida, metamorfoseada em saber racional, visto que, a morte é o oposto que dá sentido à vida, e não o objetivo que a vida persegue. Não é à toa que Nietzsche considera a razão extremamente fria e sem vida. A letal ‘explicação’ de tudo é um desejo de esgotamento do saber; pensando em Nietzsche; um desejo de esgotamento da vida.

Em Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral, como exemplo, essa constatação fica mais patente: “Aquela altivez associada ao conhecer e sentir, nuvem de cegueira pousada sobre os olhos e sentidos dos homens, engana-os pois sobre o valor da existência, ao trazer em si a mais lisonjeira das estimativas de valor sobre o próprio conhecer. Seu efeito mais geral é engano – mas mesmo os efeitos mais particulares trazem em si algo do mesmo caráter.” (VM: § 1)

O valor da existência se mede pelo valor do conhecimento acumulado, e sua ânsia de esgotamento. Sinal de que o invento do conhecimento é mero valor, automaticamente, valor sobre o próprio conhecer, ou seja: confirmação moral da realidade pré-estabelecida.

O sentimento moral huimano precisa de uma constatação de sua mentira e engano. Apenas assim as forças desnorteantes da vida podem ser aparadas, condicionadas à conservação do indivíduo e não da vida.

O indivíduo, sendo um ser moral, como podemos detectar pelas citações acima e pela obra de Nietzsche, de forma sintomática justifica sua necessidade de esgotamento do saber. O saber perpetua o ser, e não o devir: o devir está mais próximo de viver.

Saciedade e esgotamento, conforme Nietzsche, citando Heráclito, gera o crime, consequentemente, faz com que os indivíduos, moralmente, se sintam ‘obrigados’ a confirmar tal tese. Quando a confirmação desta tese se apresenta como o único meio possível de se ‘viver’ em conhecimento, ou mesmo embebido dele, e como constatação da atual tradição filosófica, criminoso é aquele que não tenta esgotar o conhecimento.

Situação que, por Heráclito, se mostra justamente o contrário, como pode ser visto: “O provérbio grego segundo o qual 'a saciedade gera o crime' (a hybris) parece vir em nosso auxílio. De fato, podemos perguntar-nos por um instante se Heráclito faz derivar da hybris esse retorno à pluralidade. Levemos essa idéia a sério: à sua luz, o rosto de Heráclito se transforma a nossos olhos, o orgulhoso brilho de seus olhos se apaga, uma ruga de dolorosa renúncia e de impotência se desenha em seus traços. Parece que compreendemos porque a antiguidade tardia o chamou o 'filósofo que chora'. O conjunto do processo universal não parece doravante um castigo da hybris? A pluralidade não seria o resultado de um crime? A transformação do puro em impuro, uma consequência da iniquidade? A culpa não se instala a partir de então no coração das coisas? E o mundo do devir e dos indivíduos que se vê assim libertado, não está ao mesmo tempo condenado a sofrer por causa disso novas consequências?" (FT: § 6) "Esta palavra perigosa, hybris, é de fato a pedra de toque de todo discípulo de Heráclito. É aqui que pode demonstrar sua compreensão ou não da doutrina do mestre. Será que este mundo é o lugar da culpa, da iniquidade, da contradição, do sofrimento?” (FT: § 7)

O mundo é uma obra em vias de realização, embora nos pareça um grande fardo a carregar, especialmente quando nos é colocado sobre os ombros toda a culpa, ou pecado original, de termos herdado seu conhecimento, e a ele nos sentirmos obrigado a esgotá-lo. O que não significa que o intelecto tenha que pegar para si a extrema necessidade de encerrar esta obra, esgotando seus fundamentos. A satisfação contemplativa dá o teor da ‘filosofia de vida’. E a ela deveríamos nos apegar para desafogar tamanho fardo.

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