sábado, 7 de março de 2009

Edrid


Viagem ao Fundo da Alma (Parte II)


"O homem não deve lamentar-se sobre si mesmo, o atrevimento desta façanha é como ir de encontro às vontades dos deuses. Desde que se introduza no veneno do mundo, devemos sorver até a última gota... é sua a obrigação de deleitar-se com o sofrimento do mundo. Nenhum lamento é tão legítimo como o suplício de Sísifo e Prometeu.

"Se te empenhas em desafiar a vida, seus pensamentos ou sentimentos podem assim fazer, no entanto, existe a necessidade de assumir as dores deste desafio.

"Com o jovem Werther, Goethe nos apresentou o mundo bucólico e belo do sofrimento. A fonte onde ele se deliciava poderia apresentar suplícios, como de fato aconteceu.

"Os males do destino precisam ser sentidos até o final, nada interrompe o suplício de uma sina, posta em vida. É esta que alimenta nossos atos, tudo aquilo que fazemos tem como respaldo este suplício quase ilimitado; a vida..."

A sina de Edrid estava posta, seu destino, ao ser traçado, apresentava as várias possibilidades de minimizar o suplício. São nuances que, por não serem mutáveis, possibilitava ao nosso anti-herói reconhecer a vida. Apesar de tentar minimizar o sofrimento, no fundo, sabia que isso não fazia muito sentido, uma vez que, desde sua juventude, quando desabrochou em sua consciência o espírito das humanidades, já existia alguns sinais de que a vida não estava tão ao alcance de suas mãos. Mas, ainda assim, Edrid insistia em sua liberdade, e foi quando descobriu que estava condenado a esse estado de consciência.

Ser livre significava sua condenação, porém, estava disposto a desafiar esta sina, vivendo da melhor forma possível. E foi aí que escolheu a reclusão física, só ela possibilitaria sua libertação espiritual. Ainda hoje, tem empreendido este método como sistemática de vida, buscando a positividade do mal-estar.

A negatividade do bem-estar pode ser percebida com mais clareza em um exemplo corriqueiro; pergunto-lhes: em algum momento de prazer, ou talvez de bem estar, sentimos completamente nosso corpo? Acho que não, só sentimos nosso corpo quando ele está enfermo, ou seja, a dor incomoda, todavia, coloca o corpo em evidência. É nesse momento que apresento-lhes a superficialidade do bem-estar... ele nos é tão supérfluo que nem o sentimos. Já, quanto à dor, é tão presente em nossa vida que, ao leve impacto, ela explode e nos apresenta o quanto nos enganamos.

Nossa vontade é-nos apresentada no instante do sofrimento. Ter vontade é ser livre e independente, em relação ao mundo... alguma vez observamos nossa vontade quando estávamos em bem-estar com a vida? Acho que não, justo por este motivo que nosso anti-herói prefere a modorrenta existência de uma catacumba, ao claro e enfastiante bem-estar de um dia ensolarado.

Na felicidade nossas vontades são enganadas, em contrapartida, na catacumba da alma sentimos a intensa sensação de nossa vida, pulsando forte entre os arvoredos espinhentos, mostrando seu verdadeiro caminho... o sangue de uma rosa despedaçada. Esta vida é-nos presente somente em instantes de dor e sofrimento.

Enfim, a totalidade de nossos interesses é sentida quando o sapato aperta, nisto se baseia a negatividade do bem-estar e da felicidade, muitas vezes ressaltada por mim, em oposição à positividade da dor. Se Schopenhauer assim apresenta a vida, sou o primeiro a endossá-la, sobretudo quando sinto, não somente, o calo do pé, como também o mau-cheiro da matéria morta e podre que se esconde entre nossos dedos, depois de uma tarde suarenta e quente.

Ao comparar-nos com carneiros, Schopenhauer mostra o lado açougueiro de cada um. Apenas sentimo-nos felizes quando vemos o sofrimento do outro, este consolo nem mesmo a vida pode nos tirar.

A ausência de sofrimento é o lado positivo da vida, dizem uns, no entanto, é nestes momentos que o tédio toma conta dos homens. Quem, em sã consciência, não blasfemou contra a entediante sensação de nada fazer, ou nada sentir? Por isso sofremos, precisamos de um mastro para navegar em segurança... Quem nunca ousou dizer que; “se cresce no sofrimento”? Eis uma prova empírica do que digo.

Precisamos de guerra para alcançarmos nossa maioridade, criamos nossa identidade e movimentamos nossa economia. O Príncipe weberiano tem, dentro de seu Palácio, e nas caixas de sua Fazenda, os modelos desta guerra.

A guerra que Edrid trava todos os dias é a guerra da sobrevivência, seu corpo precisa se manter em pé... todavia, mantêm-se em pé aquele que luta por isso.

Nem mesmo a chuva, que molha os infelizes, transtorna Edrid. Sua indiferença é arma de segurança, neste mundo apenas sobrevive o mais forte. Ao manter-se indiferente às guerras humanas, tem travado uma batalha individual consigo mesmo. Seu inconsciente se mantêm em guerra eterna... como a vida, apenas sentimos o mundo, pelo viés da guerra. Medimos nossa existência pelos intervalos das guerras, intercalamos nossa consciência em instantes de martírio ou de revoada, entretanto, sabemos que o pouso é breve... a fome é parceira e companheira... sua pujante presença não é esquecida, apenas revista e re-sentida, quiçá revisitada.


2002

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