quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Da Náusea ao Deciframento do Sagrado


O homem não se mexeu de seu lugar na hierarquia ontológica da natureza, nem tampouco fugiu de seus compromissos com a História – pelo menos deveria ser assim –, por esse motivo deixou gravado em suas obras toda uma sombra ideológico-discursiva (não importando que intenções tinha) de seu ser mais íntimo e consciencial.

Não conseguimos ainda ser totalmente anjos, por mais que assim queiramos, nem completamente bestas selvagens, por mais que nosso instinto assim aja. No entanto, conseguimos, baseado em nossa existência cognoscível – que é nossa consciência íntima e inóspita –, deixar marcas de nossa condição fisio-psicológica nas horas de nosso Tempo.

Continuamos em nosso espaço de atuação, vagando entre o sublime e o terrível, entre as esferas celestes e os abismos mais profundos de nossa biologia animal.

Até mesmo, e portanto, por este tipo de atitude fazer parte de nossa existência, como também ser referendado por este inaudível que, apesar de não compreendermos, sempre nos movimenta. E é isso que dá-nos certeza dessa náusea sartreana, disposta numa existência conturbada e nem um pouco estéril – apesar de, em alguns casos, assim parecer.

Esta relação, encontrada no indizível, é uma tentativa de expressar aquilo que é inaudito e inefável ao ser e sentidos mais racionais do ser humano. A palavra até pode chegar perto deste inaudível, aproximando-se da margem do discurso, sem ser, no entanto, algo absoluto; e isso acontece no patamar do nunca, que é também um verbo divino, porém, advindo da boca humana (verbo humano que se metamorfoseia em verbo divino, daí a impossibilidade de justificações e compreensões).

Não adianta se explicar, explicando a criação, ou mesmo lançar olhares filosóficos ou psicológicos sobre uma determinada obra. O que não significa que a mesma não possa ser pensada como a algo discursivo e, às vezes, intencional (imagino que esta última vertente seria a que mais teria possibilidades de discussão).

Há o não deciframento... talvez a intuição! E essa intuição, talvez, daria pistas para seu deciframento, sem, no entanto, ser vista pela razão e consolidada pelo Verbo. E de Verbo, todos os dias, nosso espírito se infla, colocando-nos um pouco mais além da margem de outrora.

Dentro da forma literária tudo pode ser dito, sem que isso desproteja o discurso, e sem que isso o coloque no patamar de mentira. Quer-se desconstruir este discurso, contudo, sempre haverá um rincão onde ele ainda imperará, não sendo-nos acessível jamais.

Dessa forma, a ficção nasce da experiência e dos fenômenos experimentados, bem como o intento religioso e sagrado desta contextualização. Apenas conhecemos o sagrado quando de seu fenômeno, pois sua linguagem é-nos totalmente estranha – apesar de sensível e quotidiana.

A vida cria mecanismos de cognoscência a partir de sua própria experiência com algo – seja este algo advindo do sagrado ou do mundano. E assim podemos justificar esta proteção, ou até quebrar suas muralhas – prefiro esta última possibilidade.

Apesar de haver uma desconstrução discursiva em algum momento, o que uma pessoa tem a dizer só se acaba no momento em que ela morre, não significando, contudo, que seu discurso pereça conjuntamente.

É quando a vida mostra toda sua plenitude: de tão maravilhosa que é, não há como pôr um ponto final em sua expressão, nem em seu discurso. O sagrado mais uma vez se mostra como a algo infinito, e infindo de possibilidades de se mostrar cada vez mais.

Não há aqui a preocupação com o medo – este mesmo que vem junto da proximidade da morte, todavia, anterior à serenidade –, nem com a angústia das influências. De uma forma ou de outra elas virão!

Há uma extraordinariedade no ordinário de nossa vidinha medíocre, trazendo para a posteridade uma continuação do sagrado – o mesmo que se tenta desconstruir, porém, que ainda aparecerá noutro momento, num outro espaço, e de uma outra forma discursiva.

A relação que o homem tem com o sagrado, desde tempos imemoriais, cria identidades, constrói culturas e sugere uma realidade em comum. E seria esta realidade em comum uma conseqüência do discurso religioso-literário o qual me refiro e que, como proposta, tento compreender.

Vejamos, então, como Marshall Sahlins em Ilhas de História, interpreta esta construção identitária, o que, logo em seguida, tentarei relacioná-la com certa construção dogmática: Agindo a partir de perspectivas diferentes e com poderes sociais diversos para a objetivação de suas interpretações, as pessoas chegam a diferentes conclusões e as sociedades elaboram os consensos, cada qual a sua maneira. A comunicação social é um risco tão grande quanto as referências materiais.

Quer-se uma objetivação das crenças que, por conseguinte, dão corpo a certa realidade comum. São interpretações de pessoas e escritos que dão conclusões de como agir e, às vezes, de como pensar. Esta construção literária é uma construção discursiva bastante contundente, pois dá identidade ao grupo e o habilita a criar vínculos sociais e culturais. É daí que surge a noção de consenso e, por conseguinte, de identificação ética.

E, pensando nisso, a discussão que tento levantar é a de que a construção literário-religiosa é uma discussão baseada no consenso, pois, quer-se com isso dar identidade a certo grupo. E por consenso, podemos entender como este grupo se significa perante o mundo que lhe é estranho e, no entanto, tão familiar e caseiro. E a religião pode ser um instrumento de construção deste mundo, dando-lhe características caseiras e, ao mesmo tempo, tão peculiares – e posterior constatação – identitária e homogeneidade sócio-cultural.

No entanto, algo aqui precisa ficar bem claro. E este algo refere-se ao que Nelson Ascher em Relativismo Cultural e Multiculturalismo denominou de relativismo cultural.

Este relativismo cultural pode contribuir para a autocompreensão da humanidade, uma vez que é baseado nestas constantes diferenças que se cria, também, um consenso. Como pode, também, contribuir para a desconstrução do mesmo consenso.

Em contrapartida, este relativismo vale também para o multiculturalismo caso se limite a um programa pragmático voltado para a redução plausível de entrechoques desnecessários de diferenças desimportantes, ele cumpre uma função cujos méritos não convém menosprezar. Tão logo passa, no entanto, a impor o dogma contraintuitivo e empiricamente inverificável de que as culturas, salvo as suspeitas de sempre, nasceram para o convívio cordial, que suas mútuas dissonâncias se limitam a mal-entendidos facilmente resolúveis, ele se revela como a mais recente encarnação do irrealismo suicida. Tentando compreender melhor este longo fragmento: há aqui uma ressalva para o relativismo cultural, na qual tem-se a preocupação de que haja um reducionismo na forma de lidar com as diferenças culturais encontradas ao longo do caminho.

Ao não se considerar estes entrechoques, cria-se uma unanimidade, desembocando em um consenso de constatação. Caso atinjamos esta constatação, apenas reforçamos a força que certa cultura tem e como esta força nos imporia regras e valores. É o caso, aqui, da cultura cristã. Fortemente baseada numa busca ininterrupta de consenso e na anulação das diferenças. Menospreza-se certos quesitos culturais, distintos do todo cobrado, em consonância com o seu statu quo.

Há sim a cordialidade entre as várias facetas da cultura, não significando, contudo, que esta cordialidade se imponha. A maior cordialidade estaria no reconhecimento da diferença e no convívio com ela.

Pensadas como mal-entendidos, estas diferenças impõem um consenso chucro, determinando o suicídio conceitual da própria cultura, desembocando, em menor grau, na patologização da diferença. Patologização essa que, como uma peste incurável, leva muitos viventes ao túmulo.

E também, acima de tudo, uma realidade comum que interfere, nalguns casos, em certa patologia, dando-lhe um emplasto para sua cura – aqui há a referência com a questão da fé e como a mesma pode curar –, cura essa que se mostra com muito maior força na consolidação de dogmas religiosos.

Enquanto há emplasto para suas dores, o homem continua praticando esta realidade religiosa comum, mesmo sabendo que é uma realidade que não lhe pertence, sendo, então, algo estranho a seu ser. A partir do momento em que a dor some, ou mesmo, ganha novas feições: uma nova busca o homem empreende. É onde encontramos a subjetivação de sua dogmática religiosa.

Este indivíduo se liquida em detrimento de um statu quo que se desdobrara como uma imposição. Tornando-se uma realidade sagrada que, porventura, pode deixar de ser, tornando-se de novo, de uma outra forma, e num outro momento, em novas necessidades. E este sagrado nada tem a ver com aquele da origem seminal humana, mas um sagrado a posteriori, instituído como norma de oficialização de conduta. Valores deixam de ser algo interior, tornando-se algo exterior e coletivo – para não dizer coercitivo, pois, é nesta linha que a a obra de Nietzsche caminha.

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