sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Conhecimento Pensado a Partir de Categorias Correlatas


O saber não existe por si só, ele é uma disposição de um ser que, ao relacionar-se com as "verdades" do mundo, torna-se coerente; e nem sempre compreensível (e muito menos sistematizado), por outro lado, poderíamos estar colocando sua tessitura dentro de uma natureza que se movimenta, ao modo da physis grega.


 

Dessa forma, as noções que dizem respeito aos fundamentos do saber, que do mundo são apreendidos pelo homem, são noções que, em constante fluxo, e como uma rede de informações, "caem" sobre o homem que as re-processa (sem ao menos compreender que forma isso se dá e como isso se dá), alimentando cada vez mais sua limitada condição de ser pensante.


 

Apenas em momentos assim poderíamos dizer que estamos a exercer nossa liberdade de condução cognoscente; condução essa que tem neste movimento da natureza – como se verá mais adiante – uma elucidação que, ao mesmo tempo, se encobre.


 

E é neste re-processar que se dá a assimilação e compreensão, de alguma categoria do saber que disso resulta, justificando ainda mais essa fluidez que o mesmo pode se mostrar se, todavia, deixar-se revelar por completo.


 

Esta situação de re-processamento, em contrapartida, não é assimilada por todos da mesma forma. Há aqueles que, devido sua disposição ao saber, e ao querer-mais do saber, a recebem de forma mais efetiva. Há também aqueles que – apesar de terem esta disposição –, por não a terem como algo a ser seguido, acabam nem tendo noção destes preceitos. Situação que não impede o fluxo de deixar de existir. Há ainda os quie nem sabem que o mesmo existe.


 

Ademais, toda construção do conhecimento deve partir de algo, não de forma criacionista como afirma o sistema moral cristão, mas de um embate, e para tal não há que voltar ao início dos tempos, muito pelo contrário, apenas o primeiro momento existe como alguma coisa Universal, por isso sua necessidade de se ocultar em determinados momentos.


 

O que não significa que todos, universalmente, desenvolvam esta predisposição, porquanto, mesmo sem a desenvolver, ainda assim este saber, e sua natureza essencial ainda estão aí, e continuam existindo.


 

O aposteriori deste saber é pensado aqui como a experiência, e o desvelar do mesmo perante os signos que nos são visíveis – enquanto espécies pensantes que somos –, com efeito, quando por experiência entende-se que: tudo aquilo que há em nós de referência conceitual, e que serve de instrumental para o processamento destas informações.


 

A partir deste momento, o que torna-se um imbróglio para o conhecer dos fundamentos do conhecimento não está, necessariamente, no pensamento do ser enquanto "objeto" parado, mas no movimento que esta experiência acarreta no indivíduo, por isso a importância em pensar esta natureza de uma forma não-inerte, embora essencial e primeira.


 

E este indivíduo só vai notar este movimento se se inserir no mesmo de uma forma mais incisiva, não permitindo que o fluxo se dê por conta e risco do destino.


 

Em face disso, outra questão que se sobressai a esta discussão é a que diz respeito ao sentido do ser, sem que da compreensão deste sentido façamos uma ontologia torta. E, por isso mesmo, sentido esse pensado como significante, ou seja; a que campo do saber o ser pertence e, principalmente, como este ser torna-se elemento de constituição cognoscente, responsável por significar que signo nos apareça.


 

Guy Van de Beuque (2004: 65) nos afirmará que o sentido do ser pode não ser uma matéria da ciência e, como tal, de difícil significação, mas sempre foi, e será, o fundamento e o horizonte que lhe dão o contorno de seus limites – limites que nos são importantes para fazer-nos compreender o local que, hipoteticamente, estamos sondando. E como contorno, jamais núcleo ou centro, sua significação apenas nos advém a partir de seus limites.


 

E, como sabemos, estes limites nos serão dados no contato com a natureza e seus elementos de significação cognoscente; seja por meio da experiência, da empiria, ou por algum sintoma da metafísica.


 

E aqui há uma menção clara ao devir de Heráclito de Efésios, pensado por Olímpio Pimenta, interpretando Nietzsche, ao considerar a crítica da ontologia:


 

Considerando em conjunto a crítica acima esquematizada, fica claro que, para Nietzsche, as expectativas metafísicas em torno da permanência só podem pretender justificar-se na medida em que se reconheçam como negócio exclusivamente. Assim interpretadas, não são substrato, princípio ou sustentáculo de qualquer realidade, mas, diferentemente, são marcas da relação do homem com o mundo, sintomas de um tipo especial de leitura ou apropriação das coisas efetuadas em função de impulsos e interesses particulares da espécie. Sua conexão com a verdade depende de seu proveito vital, de seu valor ou não para a vida dos grupos que as instrumentalizaram nos trabalhos inerentes à sua existência concreta. (1999: 37)


 

Razão e metafísica, nesse contexto, têm uma proximidade muito grande, desde que não haja uma interferência externa, ou seja, advinda da experiência. Mesmo porque, pretender pensar esta natureza, ou mesmo este ser como a algo permanente, em justa medida, é comprometer o real núcleo deste conhecimento. Se, por um lado, apenas o vemos dentro de seu limite, aliás, apenas o vemos em seu limite, o compreendê-lo dentro de uma ontologia inerte, ainda mais, torna-se mero sistematizar. Daí a preocupação em pensar isso amparado na razão e na metafísica – e não somente.


 

Afirmação essa que não significa que este saber esteja totalmente amparado na razão, ou tão-somente na metafísica, mas nesta, ou naquela, e nos sentidos, isto é, também nos instintos (talvez aqui a noção de inato tenha uma re-significação, visto que, por inato seria, justamente, penso eu, uma natureza subjetiva que está no homem, e advém dele a partir de certos impulsos ou reflexos).


 

O grande problema que a modernidade trouxera fora a preterição do instinto para a consecução do saber, ou ainda, pensando no romantismo francês (Rousseau) e alemão (Goethe e Schiller, por exemplo), a preterição da razão em detrimento do instinto. A partir do momento que um ou o outro fora preterido, de forma automática, tiramos um elemento a mais que nos ajudaria a compreender a natureza do saber, automaticamente, a natureza do ser que deste saber se apropria para nos significar algo. Daí a importância em se pensar ambos, em constante fluxo e embate.


 

A própria natureza do ser, pensada desde o elemento heraclítico, nos dá uma outra significação destes signos, pois Heráclito não separa um elemento do outro, mas complementa um com o outro; e deste conflito harmoniza ambos elementos.


 

Van de Beuque (2004: 65), ainda insistindo na natureza do ser, tentará avançar sua meditação sobre este problema, tentando aprofundar no que Heráclito denominou de movimento geral da natureza. E que pode ser muito útil para conseguirmos compreender o conhecimento para além de métodos racionais, ou somente instintivos.


 

No fragmento 123 de Heráclito temos a seguinte assertiva: physis kryptesthai phileî, ou seja, a natureza ama ocultar-se e, fazendo isso, o surgir acaba encobrindo o ser, dando aos homens, que deste saber tentam se apropriar, apenas um limite, ou talvez, aquilo que este ser não seria.


 

O fragmento completo seria, segundo Temístio em Oratio (V, p.69), e que fora compilado por Alexandre Costa, é o seguinte:


 

Talvez não seja jamais agradável ao deus que surja consonância entre os homens. "Natureza", [diz] Heráclito, "ama ocultar-se" e mais ainda a natureza do criador da natureza – que por isso especialmente honramos e admiramos –, pois o conhecimento dele não está à mão e nem se alça à superfície, e nem pode ser apreendido sem suor "ou apenas com uma das mãos". (COSTA, 2002: 187)


 

É claro que esta interpretação nos dá uma noção de aproximação com algum ser divino, ou mesmo um certo deus. Em contrapartida, e ainda seguindo a trilha deixada por Van de Beuque, nos é passada a seguinte interpretação: o fragmento acima se refere à natureza, em seu sentido grego e originário – daí a palavra physis –, sendo vista como um movimento geral, ou mesmo de seu vir-a-ser relacionando-se com o vir-ao-nada. E, dessa relação, a significação do saber.


 

E ainda, é como se Heráclito tivesse apontando o pensamento para a compreensão da natureza mesma do ser, pensada em si mesma, mas não em seu núcleo, mas neste seu ser que se encobre; que poderia ser um núcleo, embora não-inerte, e ainda sem sabermos onde fica seu real lugar. Situação que nos faz se aproximar de Temístio e sua apologização a um certo deus desconhecido.


 

Uma possibilidade de se compreender este elemento significante, e que pode nos aproximar de Kant; é o fato desta physis, ao encobrir-se do mundo enquanto ser essencial, talvez, até ontológico, acaba se mostrando como uma essencialidade do saber.


 

Uma proteção que, pelo afirmado abaixo, evita o alteramento e a contaminação do ser essencial, cabendo à experiência e ao aparecer-se o breve momento de transformação. Visto que a natureza está em constante transformação. Diferente de sua essência que permanece, mantendo-se inalterada e originária. Início e fim do elemento saber.


 

Apesar de nos aparecer em momentos de transformação cognoscente, sua real essência se mantém encoberta, por isso sua importância se dá no âmbito do movimento, jamais da inércia. Apenas no movimento pode o homem se aproximar desta essência.


 

E, aproximando-se da mesma está, automaticamente, criando para si saberes e conceitos que, outrora, não lhe eram tão claros assim, como neste momento de desvelamento do movimento. E não desvelamento do ser.


 

Apenas para reforçar: o ser, ao desvelar-se, está se encobrindo ainda mais.


 

Van de Beuque assevera:


 

E é através desse encobrimento do "puro" brotar que a physis protege a essência do surgimento. "Na inaparência do surgimento repousa a garantia de não se deixar tocar pelo alteramento do que aparece a cada vez." O essencializar originário guarda-se ao abrigo da riqueza e, por estar no abrigo, nunca declina. O puro surgimento "garante e propicia o aparecer, sem, no entanto, cair no âmbito do que aparece". E, para isso, tem que se manter encoberto. (2004: 75)


 

O conhecimento a priori, para Kant, tem algo de intocável (e aqui nos aproximamos da significação de Temístio acerca de Heráclito ou, ao menos, sua interpretação sobre); eu diria, pois e noutra direção, que ele é totalmente palpável e acrescentável – em especial o conhecimento que do mundo e para o mundo nos dispomos. E este conhecimento poderia ser encarado e, determinado, como o limite que, logo acima, Van de Beuque apresentara.


 

Ao contrário de pensá-lo tal como a metafísica, o pensaria como uma inter-relação entre vida e logos (e aqui o logos seria entendido como o Incognoscível, ou mesmo premissa que não tem retorno, nem início, pois ela é por si só; e sempre existiu, estando sempre aí).


 

E este incognoscível, pensado de uma forma mais germinal, de fato, surge como algo a priori, no entanto, não um a priori por si mesmo, e distante, mas um a priori que, entrando em contato com a experiência cognoscível, e seus limites, nos mostra um caminho flúido, e como tal, um a priori intuitivo e instrumental.


 

Não se quer pensar no ser, mas no vir-a-ser, sendo o a priori apenas um ponto de partida e, como tal, necessário a todos, e disposto em todos. Todavia, a partir do momento em que se veja esta ponto de partida dentro de um invólucro aberto, jamais fechado e inerte.


 

Noutra direção, aquilo que poderíamos pensar como alguma coisa inata ao homem, pensado aqui, como uma relação com o a priori, eu diria que este inato é uma espécie de característica primordial e genética (pensando genético do ponto de vista da espécie, não do ponto de vista do indivíduo), a qual dá aos homens uma espécie de instrumento para o conhecer. E não instrumento para o apropriar deste saber.


 

Fazendo uma analogia ao jogo dos contrários de Heráclito; é como se o inato, apesar de sua geneticidade original, estivesse em constante embate com o a priori. Um embate que não tem nada de separação, mas de complementação (daí pensar o embate de forma necessária e, assim, não excludente, mas existente) e, por isso mesmo, necessário para a consecução de nossa assimilação do saber.


 

A integridade que Kant afirma, apenas reforça o caráter intocado do saber e sua inospitalidade, assim como almeja a Tradição. Seria, pois, um temor infundado; como conhecer sem sentir esta força? Uma pergunta intrigante e, ao mesmo tempo, exótica. O ato de conhecer deve ser pensado não em sua integridade, mas em sua integralidade.


 

Ainda Kant, com sua propedêutica da metafísica: conhecimento especulativo da razão, o qual sua posição se eleva acima e à parte, tendo na construção da própria razão o papel de demiurgo, mostrando-lhe que deva ser discípula de si própria e não da experiência, restando à experiência apenas o papel de ser pensada como um objeto de uso, necessário, porém, logo abaixo.


 

Trocando em miúdos, o a priori seria a premissa do saber, já o inato seria uma espécie de disposição ao saber, e que está em todos, entretanto, não seria todos que desta disposição se usufruíssem.


 

É como se existisse um objeto oculto que, baseado no a priori, e tocado pela experiência, traria ao homem uma disposição constante ao saber, ou, como diria Aristóteles no início da Metafísica: todo homem, necessariamente, aspira ao saber... (eu emendando), embora, nem todo homem tenha noção muito clara desta sua tão nobre aspiração.


 

Referência Bibliográfica

BERGE, Damião (1969). O Logos Heraclítico: introdução ao estudo dos fragmentos. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro/MEC.

BEUQUE, Van de (2004). Experiência do Nada como Princípio do Mundo. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj.

COSTA, Alexandre (2002). Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: Difel.

KANT, Immanuel (2005). Crítica da Razão Pura. São Paulo: Martin Claret.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm (2002). A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Lisboa: Edições 70.

PIMENTA, Olímpio (1999). A Invenção da Verdade. Belo Horizonte: Editora UFMG.

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