terça-feira, 21 de abril de 2009

Homem: Um Prometeu Arrependido...?



O grande problema, porém, de nos defrontarmos com tamanho conhecimento, tal como o mundo teima em nos oferecer seria, talvez, não sabermos lidar com o mesmo, nem tampouco com uma possível utilidade do mesmo. E o 'abalo sísmico' dionisíaco, traduzido pelo mito através de forças descomunais, pode nos oferecer um conhecimento que se aproxima bastante do absurdo, vide o mito de Prometeu, e seu castigo ao trazer o fogo para os homens, como consta em Nitzsche e os Gregos: arte e “mal-estar” na cultura (RODRIGUES, 1998: 43).


Além do mais, quando Heráclito busca no fogo sua referência para justificar a origem das coisas, algo assalta-nos a intuição, aliás; é justamente o mito de Prometeu que desvela a inteligência do homem por meio do fogo, ou seja, uma ligação bem tênue pode ser encontrada nestas duas informações: o mito de Prometeu e o fogo de Heráclito.


É sabido que o mito é muito importante para Nietzsche – e também para compreender este conhecimento 'originário' –, o que nos demonstra A Filosofia na Época Trágica dos Gregos e O Nascimento da Tragédia. Pensando nesta constatação, uma outra coincidência se apresenta: o mito de Prometeu, e como o fogo é sinônimo de conhecimento, sendo importante para a evolução sapiencial do homem.


Mera coincidência ou não, o fogo (sinônimo de conhecimento) está para Heráclito como 'matéria' principal de seus escritos. Além do mais, pelo fogo o homem se equipara aos deuses, como se verá a seguir.


Nos versos 510 a 516 da Teogonia, está contada a estória de Prometeu, segundo Hesíodo. Consta ali que a primeira falta de Prometeu para com Zeus em favor dos homens foi quando dividiu um boi em duas partes, uma cabendo a Zeus e outra aos mortais. Na primeira estavam as carnes e as vísceras, cobertas com couro. Na segunda, apenas ossos, cobertos com a banha do animal.


Zeus, atraído pela banha, escolhe a segunda, e então a raiva, o rancor, e a cólera lhe subiriam à cabeça. Por conta disso, castiga os homens, negando a eles a força do fogo infatigável. O fogo representa simbolicamente a inteligência do homem. A afronta definitiva de Prometeu, porém, ocorre quando este rouba “o brilho longevisível do infatigável fogo em oca Férula” (Teogonia: 566). Com isto, Prometeu reanimou a inteligência do homem, que antes era semelhante aos fantasmas dos sonhos. A fala de Prometeu na tragédia de Ésquilo remete para ele a dívida dos mortais por terem a habilidade de, por exemplo, construir casas de tijolos e madeira. Os mortais, diz o titã, tudo faziam sem tino até que lhes ensinasse “as intrincadas saídas e portas dos astros. Por elas inventei os números (...) a composição das letras e a memória (...), matriz universal” (idem). Prometeu diz, enfim, que os homens devem a ele todas as artes, inclusive a de domesticar animais selvagens e fazê-los trabalhar para os homens.


Aptidões estas que os homens passam a tê-las quando da aquisição do fogo. Antes da descoberta do fogo, conforme consta no período Paleolítico, é um momento que representa a dificuldade de sobrevivência do homem nas eras mais antigas e primitivas, ou a miséria do homem antes da Idade do Ferro – instante em que o homem começa a cunhar o mineral –, como nos demonstra a História.


Dessa forma, o mito de Prometeu se torna uma continuação da eterna luta que o homem trava diante dos deuses, uma luta retomada no relato de figuras simbólicas como as divindades e os titãs. Mais que isso, pode-se afirmar que o mito de Prometeu conta a história do despertar da humanidade. Por ser um titã, simboliza a revolta contra o espírito, que podemos emendar, também, como a revolta contra a tradição.


O castigo pelo roubo do fogo não é porque Zeus ficou irado com Prometeu, mas porque ele se opôs às regras do espírito, da tradição. Assim, o fogo se torna o representante do intelecto, por lhe permitir, também, representar a 'perversão' que é ir contra a tradição. A descoberta do fogo desempenha um papel crucial ligado à eclosão do intelecto tanto sob uma forma positiva quanto negativa, e aqui podemos rever a dualidade, o conflito e o embate que é o estado de guerra de Heráclito. Todo esforço para a mudança do mundo, em função das necessidades corporais do homem, tem sua origem no domínio do fogo.


Por fim, Prometeu representa a própria história da humanidade não-somente por meio da tendência à 'perversão' do ir contra, representada pelo rapto do fogo, mas também pela esperança de se elevar a um caminho mais puro; e puro este visto como sublime ou divino, ou seja, o fogo pode, muito bem, representar a 'divinização' do homem, mesmo fazendo isso para viver sua vida de forma mais plena.


A Idade do Ferro, junto com a agricultura, são dois grandes avanços da humanidade, corroborando, de forma histórica, à tese do fogo, visto que é na Idade do Ferro que o homem começa a manipulá-lo. Dessa forma, podemos dizer que o fogo coloca o homem lado a lado com os deuses, afinal de contas, ele pertencia a Zeus.


Ademais, para (Rodrigues, 1998: 49), citando Nietzsche, o mito passa a ser uma espécie de confirmação da sabedoria dionisíaca, se potencializando por meio de forças vitais, impedindo qualquer espécie de degeneração do seu verdadeiro significado para o homem. Apenas um horizonte cercado de mitos encerra em unidade todo um movimento cultural, emenda Nietzsche em O Nascimento da Tragédia.


E, como brincam o artista e a criança, também brinca o fogo eternamente vivo, construindo e destruindo com toda inocência; uma inocência eternamente intacta. Nietzsche dirá ainda mais (FT: § 7), como uma criança que amontoa e destrói o castelo de areia, à beira mar, também começa e recomeça o jogo sem que o compromisso de saciar o conhecimento surja como um empecilho à vida.


Novamente Nietzsche, na mesma obra: não é a perversidade de esgotar o saber que deveria assaltar os homens, mas a inocência da criança e o instinto do jogo, sempre despertando de novo, que chamaria à vida novos mundos, e cada vez mais nova vida.


O fogo, sinônimo de desobediência aos deuses, por um titã, e sublimação do homem, conforme o mito de Prometeu, tem muito de fogo e criança: obedece apenas a um capricho inocente, de sempre ver o novo diante de si. Sem lógica interna, nem articulação depuradora.


A obra da vida é vista sempre como necessidade e jogo, capricho e inocência. Uma criança a reconstruir, um fogo a consumir e um jogo a constar, e a jogar também.


Ainda Nietzsche, referindo-se a Heráclito: “O homem, até sua última fibra, é inteiramente necessidade e absolutamente 'não-liberdade' – se por liberdade se entender a exigência extravagante de poder mudar a natureza segundo o próprio capricho, como uma roupa, pretensão que toda filosofia digna desse nome recusou até agora com a ironia requerida.” (FT: § 7), pois a natureza está posta, e o capricho inocente não é aquele que a desvenda, tentando desvelar seus segredos, mas a transforma: um brincar que não assume compromisso, nem tampouco valoração moral (conhecer a todo custo).


O mundo é uma obra em vias de realização, por isso o jogo da criança, com sua inocência e despretensão no montar e desmontar: que está a transformar; por isso o consumir do fogo: inteligência pura, sem qualquer estribeira moral e, ao mesmo tempo, sinônimo de humanidade divinizada. Um presente de Prometeu, um jogo inocente e infantil.


O jogo do universo não pode ser interpretado como uma atenção trivial que se dedica às oportunidades oferecidas, em proveito da saciedade e esgotamento humanos. Mas, como um consumir e um brincar.


Apenas no jogo do fogo, intenso, consigo mesmo, é que o Uno consegue ser, simultaneamente, o Múltiplo; mostrando o sopro quente que transforma argila em homem. Desconhecimento e assombro em conhecimento, saber em sabor: sabor de vida, homem de Prometeu.


E Prometeu, seguindo esta linha de reflexão, é mais uma constatação a Heráclito, uma vez que, sendo o benfeitor da humanidade é também quem lhe causou a desgraça. Humanidade cuja sorte é concebida em termos de queda (quando do destroçar da águia, ao fígado de Prometeu), ao mesmo tempo em que ascensão aos deuses (quando do libertar de Héracles, com o consentimento de Zeus). E ao homem, sua imagem e sapiência: por meio do fogo dos deuses.


2 comentários:

Anônimo disse...

Pontual e lúcida avaliação da grandeza de Prometeu. A referência à brincadeira, ao jogo inocente me satisfez plenamente. Pois é. Andei à procura, em casa, de qualquer comentário que me pusesse na pista do temperamento alegre e brincalhão do titã. Nada que servisse ao meu propósito. Ao dar com Freud e suas freudices, referindo-se à renúncia à virilidade, descobrindo ambigüidades fálicas até no cabo oco de onde saía a fagulha roubada, capitulei. Revoltada, busquei o querido Niestszche e Werner Jaeger, para um ponto final prometeico (no sentido próprio do termo) sobre o mito grandioso. Mas pensei em dar uma olhada em Nietszche e Prometeu e... Eureka!, lá estava o seu artigo. Vou citá-lo no meu trabalho. Obrigada. Maria José de Queiroz (Professora da UFMG)

Clio & Dionísio disse...

Recebi seu comentário por email e gostaria de lhe enviar minha dissertação de mestrado (em Filosofia pela UNESP de Marília), visto que, na conclusão é que abordei o tema. Tentei encontrar seu email pelo Lattes e não consegui. Entre em contato comigo, por gentileza, meu emai é: ediwilsonfilho@gmail.com.