sábado, 10 de dezembro de 2011

Tal Como Machado!

O conto O Escrivão Coimbra foi escrito por Machado de Assis no período de transição entre o Império e a República e isso fica bem patente logo no início da obra. “Assim viveu os últimos anos do império e os primeiros da república, sem já crer em nenhum dos dois regimes. Não cria em nada. A própria justiça em que era oficial, não tinha a sua fé; parecia-lhe uma instituição feita para conciliar ou perpetuar os desacordos humanos, mas por diversos e contrários caminhos, ora à direita, ora à esquerda.” Imagina-se que o mesmo tenha sido publicado em jornal, lá pelos idos de 1899, bem próximo à virada do século.

Foi publicado originalmente no Almanaque Brasileiro Garnier em 1906 e republicado em 1938 no livro Relíquias de Casa Velha, em edição capitaneada pela Edições W. M. Jackson do Rio de Janeiro.

O conto traz à tona o personagem Bernardo Coimbra, um escrivão do cartório local. Um homem de profunda fé, até a morte de sua esposa, mas, principalmente por volta dos cinquenta anos e por conta de certas leitura, acabou tornando-se mais incrédulo que um ateu, chegando a fazer pilhéria com a Igreja Católica. 
 
Um aparte histórico; não podemos nos esquecer que é deste período que o Positivismo de Auguste Comte chega ao Brasil, tornando-se palavra-chave da nascente República Brasileira, que tem em seu brasão a máxima Ordem e Progresso, um dos ícones do Positivismo. 
 
Movimento europeu, surgido na França, que visava expurgar a religião e todas e quaisquer crenças dos quehaceres comportamentais e intelectuais do século XX. Uma ciência que se explicava por si só e que buscava a mais profunda certeza da racionalidade. Mostrando que todos, e quaisquer outros tipos de conhecimento, que não tinham a alcunha da razão, estavam errados e prontamente vinculados à falibilidade humana das crenças e da fé.

Pois bem, voltando ao conto. Até perto deste período (antes dos cinquenta anos) a fé do escrivão Coimbra o levou a se tonar sócio fundador da Irmandade de São Bernardo. Construíram uma igreja e uma escola como alento para os menos crentes e menos afortunados. Fé essa que, pelo desenrolar do conto, será parte central da trama.

Aos sessenta anos passa a jogar na loteria. Neste primeiro momento este jogo não era tão constante, o que significa que estamos no início de uma era de vícios, como se verá. Assim, ao passar do tempo, de jogos esparsos nosso escrivão passou a jogar seis vezes por semana, folgando apenas aos domingos... talvez resquício da fé a São Bernardo, visto que o domingo é considerado dia muito sagrado para os católicos, e em se falando de uma sociedade extremamente voltada à fé, era de se compreender tal comportamento.

Em um primeiro momento Coimbra usava o subterfúgio dos pequenos ganhos para alimentar seu vício, coisa de trinta a cinquenta mil Réis. Situação que o afastava ainda mais de sua Irmandade, a ponto de a mesma, junto com a crença católica, servir de pilhéria para com as devotas e padres. Com o passar do tempo, nem mesmo deste argumento ele se utilizava mais. O jogo passou a ser uma obsessão.

Até que pelos idos do Natal de 1898, em que correria a última loteria do ano, chamado pelos cambistas de loteria-monstro, ele resolveu fazer uma última aposta, de fato, mesmo que a contrapelo do que pedia seu amigo Amaral. E por coincidência, é deste período que Coimbra conhece um tal de Guimarães em seu local de trabalho, o cartório da comarca, ganhador de uma loteria com 200 contos de Réis (o prêmio de Natal correria com o valor de 500 contos de Réis) e que surgiu para o pobre Coimbra como um aviso, apenas não se sabia quem havia mandado tal aviso.

Ademais, e como reflexo de referido aviso, Coimbra resolve voltar a visitar sua velha Irmandade e a igreja por ela construída, chegando a prometer que, caso ganhasse, doaria 100 contos de Réis à pequena escola construída junto com a Igreja. Prosa completa, após fatídica promessa o velho Coimbra sagra-se o mais novo vencedor da loteria de 500 contos de Réis, vindo a falecer quatro meses depois, em fins de abril, no governo do presidente Campos Sales, após testemunhar o casamento do amigo Amaral, outro escrevente de seu cartório.

Machado de Assis assim termina seu conto: “No fim de abril, casara o escrevente Amaral, servindo-lhe Coimbra de testemunha, e morrendo na volta, como ficou dito atrás. O enterro que a irmandade lhe fez e o túmulo que lhe mandou levantar no cemitério de S. Francisco Xavier corresponderam aos benefícios que lhe devia. A escola tem hoje mais de cem alunos e os cem contos dados pelo escrivão receberam a denominação de patrimônio Coimbra.

Mais uma das mórbidas lições de moral do velho Machado, deixada para o final. Onde já se viu, um velho de sessenta anos, perdendo a fé pela Santa Madre Igreja e ainda se enfurnando no vício do jogo, o mais pecaminoso de todos!?

Coimbra precisava voltar ao ventre da Mãe para ser novamente abençoado. O mais interessante é que a benção veio com a efetivação do prêmio, o fim do vício e o fim da própria vida, logo, a vida eterna e a benfeitoria terrena.

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