domingo, 26 de julho de 2009

Onde Tudo Começa...


Àquela hora da manhã, o silêncio parecia um mal presságio... até mesmo a patrulha assoprava fumaça no ar. Por incrível que pareça, nem mesmo o odor acre da putrefação, incomodava aqueles homens... não sei se por rotina ou mesmo por estranhezas de guerra. A única certeza é a de que, estranhamente, o ambiente parecia festivo.



Ainda assim, o que se nota é um ambiente extremamente hostil. Nem mesmo as roupas utilizadas faziam parte da realidade daqueles homens. Uma sensação de máscara pairava sobre os ares destas terras estrangeiras... seus habitantes, naquele momento, eram estranhos à paisagem. Apesar de serem homens com características físicas, mais ou menos universais, tal universo era como suas roupas... largas e desconfortáveis.


A divertida sensação de estranhamento acometia vários homens, mas um em especial, ainda nem tinha percebido a hostilidade do terreno, importava apenas a curiosidade do momento. E o momento era um sentimento de surpresa e deslumbre, ou ainda, a sensação de plenitude comportamental.



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O palco estava montado e a encenação era perfeita, porém nosso anti-herói não conhecia os fatos. E foram estes fatos o ponto de partida de uma consciência futura. Foram estes fatos que jogaram Edrid ao desconhecido e à surpresa.


Contava então com 18 anos, acabara de sair da casa dos pais, e aquele ato de desobediência psicológica tinha a caracterização de um ritual libertador, mas, ao mesmo tempo, imprevisível. Todavia, fora esta imprevisibilidade que impulsionara aquele jovem de cabelos rebeldes e ar sério, ao local onde se encontrava.


Sem noção de espaço futuro, porém, forte ímpeto de presente, aquela situação ora vivida, significava o enterro de um passado impessoal. Aliás, o enterro de uma vida hostil e sufocante.


Entretanto, o que levou este jovem a sair da companhia dos pais e arriscar-se numa campanha obscura e incerta? Tentarei explicar: desde auroras passadas, esta criança inquieta sentia-se dispersa e fragmentária; mesmo sem saber do que se tratava, a inquietação era para sua vida uma presença constante. Cá em meus pensamentos imagino que, sendo como é, uma partícula do mundo, os homens, devemos ter raízes resistentementes sulcadas na terra, com suas intermináveis ramificações existenciais; as mesmas, permitindo-nos esclarecer nossa ligação intimista e fragmentária com o mundo, esclarecem também a incompatibilidade de vivermos em platôs suspensos...com raízes aéreas, tais como os jardins da lendária Babilônia.


Talvez, este espírito de estranheza seja a premissa de nosso existir. Assim como Edrid, nossa quintessência tem como fundação o inquieto e o suspenso... por isso a necessidade de raízes saldáveis e volumosas... E mesmo nesta fila, onde Edrid confirma o enterro de seu passado impessoal, queiramos ou não, está lançando uma lanterna até seu futuro. Por mais que seja incerto, traz para ele o conforto da surpresa... embora não saiba, é esta surpresa o símbolo fundante de seu ritual, quiçá, sua personalidade. O desenlace dera-se a partir do momento em que o jovem Edrid entrou na fila.


O palco montado, as personagens silenciosas e a fila... tudo recorrência de uma trama incerta e muito bem representada... a encenação perfeita fora o ponto de partida e Edrid o primeiro passo.
"O tempo, segundo uma bela fórmula de Platão, é a imagem móvel da eternidade."



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O momento, definitivamente, é aquilo que nossas sensações criam. Para Edrid, nem o mal cheiro da trincheira à sua frente tirava-lhe seu estupor. A sensualidade daquele ambiente, sua força psicológica... sua ramagem nunca vista antes, enfim, tudo á sua volta era novidade.


Desembarcara no dia anterior; imaginava que aquela fila traria surpresas, contudo, sua expectativa fora superada. Aqueles corpos... vivos e mortos, dividindo o mesmo espaço, apresentando uma estranheza no ar, mostrando um mundo impreciso, porém, ao mesmo tempo impetuoso... a busca do tempo perdido se confirma na perda final. O tempo é móvel, no entanto traz a eternidade, e aqueles corpos confirmam a sistemática do limite... a certeza de nossa falibilidade. Nem mesmo isso fora capaz de arrancar a sensação de Edrid... seu primeiro dia começara bem.


De repente, como que saindo de um sonho, um barulho estrondoso invade os ouvidos de Edrid, um clarão faz suas vistas turvarem por segundos... minutos... horas... dias! A seqüência é apresentada por gritos, novos estrondos, sombras voam sobre sua cabeça e um novo ruído invade seu estado de espírito. A sensação de escuro toma o ambiente, uma dor insuportável o joga no chão, passam-se vultos sobre sua face... As palavras ouvidas começam a se distanciar, neste momento as trevas preenchem sua memória... suas retinas estão opacas e vão se perdendo no infinito... apagão total!



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Foram horas de agonia, paramédicos com armas em punho. Grandes lança-foguetes tentando revidar... o caos em formato de sangue!


A contar do instante em que aconteceu o ataque aéreo até os olhos se abrirem novamente, foram dias.


Mas, antes de enxergar a luz novamente, muita coisa aconteceu...


Aquela sensação de euforia e novidade fora brutalmente interrompida por uma bomba, a perna sendo despedaçada e o sentido da morte se mostrando tanto quanto da vida que acabara de ganhar... e tão belo quanto! Achava que tinha encontrado a liberdade, no entanto, só a possibilidade da dor, tardiamente sentida, fora capaz de mostrar à sua torpe consciência, a farsa daquela dramaturgia oficialesca.


Foram horas de esquecimento, nada se via, nada se sentia... apenas escurecia. A dor não existia mais, era a própria existência. Contudo, não era uma dor física, pois seu corpo se encontrava dormente e ensangüentado... era a dor da alma, da desilusão e da surpresa. A dor que rondava seu espírito era existencial, algo intenso e, por incrível que pareça... libertador! Aliás, a vida era sofrer, era sentir dor. Sensações como essa começavam a se processar na mente adormecida de Edrid. Apesar de dormente, seus pensamentos despontavam, pulavam aos borbotões sobre aquele vazio escuro e estranho. Erigiam castelos de areia... rompiam a normalidade da vida... apenas pensamentos, todavia, com a força hercúlea do assalto e da plenitude... no entanto, apenas dor!


Se um papel em branco aparecesse á frente da consciência de Edrid, em segundos seria como essa página que o leitor aprecia... cheia de letras e signos... símbolos de dor e sofrimento. Eis o suplício, segundo os olhos de Gutenberg, seu legado se confunde com os sentimentos de Edrid.


E nosso anti-herói? Reflexo da encenação oficialesca de uma conjuntura fascista, medíocre e hipócrita... será que acabou?


Para Edrid acabou, trouxe-lhe surpresas, traçando definitivamente as linhas de uma vida em suplício, aliás, de um suplício eterno no formato de vida...


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