A noção de Estado, assim como conhecemos hoje, está
diretamente ligada à constituição de núcleos centralizados, responsáveis por
administrar e tributar aqueles que se inscrevem num território geograficamente
constituído. Historicamente, o primeiro reino a se constituir em tal estrutura
social foi o reino de Portugal (primeiro Estado politicamente constituído),
sendo seguido por Espanha, França e Inglaterra.
Vejamos
como Faoro (2000) descreve a constituição desse Estado, constituição
notadamente marcada pela guerra:
A Península Ibérica formou, plasmou e constituiu a sociedade sob o
império da guerra. Despertou, na História, com as lutas de Aníbal, viveu a
ocupação germânica, contestada vitoriosamente pelos mouros. Duas civilizações –
uma do Ocidente remoto, outra do Oriente Próximo – pelejaram rudemente dentro
de suas fronteiras pela hegemonia da Europa. Das ruínas do império visigótico,
disciplinado e enriquecido pela cultura dos vencidos, dilacerado em pequenos
reinos, gerou-se um mundo novo e ardente, que transmitiu sua fisionomia aos
tempos modernos. Do longo predomínio da espada, marcado de cicatrizes
gloriosas, nasceu, em direção às praias do Atlântico, o reino de Portugal,
filho da revolução da independência e da conquista. (FAORO, 2000: 5)
Como se
percebe, a força da espada legou aos Estados nacionais sua herança. Isso fica
bem patente na forma como o Estado de Direito (constituído após a consolidação
do Estado civil e político, como forma de controlar as pessoas) ainda usa da
violência para se manter, embora seja uma violência silenciosa, onde a força da
espada cedeu lugar à força da coerção, e como nossas leis acabam ainda
praticando tão ‘valente’ feitio.
Aqui
também podemos encontrar a origem do poder, tão violenta como. Pelo menos é o
que nos mostra Foucault (1999: 27-48) em uma de suas várias aulas no Collége de France, entre os anos de
1975 e 1976, reunidas no livro Em Defesa
da Sociedade.
Nesse
sentido, a sociedade quando vista pela noção do poder exercido sobre os povos,
instância praticada pelo Estado de Direito, mostra situações que nos remetem à
nossa insignificância perante a imposição de seu poder, isto é, deixa-nos, de
forma irremediável, onde gostaria que ficássemos. São práticas de poder que,
assim como são aplicadas, em instante algum conseguimos perceber, isso por ser
algo tão inerente à nossa existência de submissos que não nos chega enquanto situação concreta: nós
mesmos nos dispomos a aceitar tal imposição, uma vez que estão amparadas por
leis. Apenas enquanto aparato ideológico percebemos, pois imaginamos que não
conseguiríamos mudar esta situação.
Este
Estado impositor sempre existiu, ele apenas se aperfeiçoa ao longo do tempo e,
baseado nas necessidades de cada era, muda de roupagem e restabelece uma nova
ordem.
A origem
do poder, com efeito, se encontra aguerrida de aparatos sociais e jurídicos,
assim, ao estudar o ‘como do poder’, apreendendo a partir de então todos seus
mecanismos, além disso, tendo como dois pontos de referência tais como: as
regras de Direito que o delimita formalmente e, de outro lado; os efeitos de
verdade que este poder produz, conduzindo-se em si eternamente, logo podemos
deduzir o quanto as verdades que nos circundam nada mais são que ‘regras de
conduta’ para se viver dentro da instituição do Estado.
Dessa
forma, me remeto ao discurso da filosofia da verdade – esta preconizada pelo
Estado de Direito – e até do forjamento da mesma:
(...) como o discurso da verdade ou, pura e simplesmente, como a
filosofia entendida como o discurso por excelência da verdade, podem fixar
limites de direito de poder? (FOUCAULT, 1999: 28)
A pergunta acima, feita por Foucault na década de
1970, também pode ser feita nos dias atuais, porém, sob o primas de uma reflexão
mais profunda. Será que a estrutura, outrora e ainda reinante, não pode ser
vista dentro do atual Estado de Direito, onde público e privado são, por
excelência, uma babel de interposições? E ainda, uma teia criada por homens, de
tal maneira tão perfeita que acabamos por reportar-lhe uma áurea natural e
verdadeira, digna de nos representar.
Assim se
constitui o Estado, este mesmo que, já em sua criação, mostrou-se violento e
que, eivado dessa herança, persegue-nos; como se o homem não conseguisse viver
senão dentro de uma relação de força e poder.
Portanto,
essa relação de poder, remetida à teia de verdades que a mesma criou, impõe
regras de conduta que por sua – semelhante – tão natural justaposição chega como se sendo únicas e
verdadeiras, dignas de submissão e respeito, eis então o motivo de se refletir
acerca, o que poderia possibilitar ao homem que o mesmo se torne agente de
compreensão e até mudança, bem aos moldes marxistas; todavia sem o ranço de seu
economicismo.
O corpo
social que então seguimos perpassa toda a noção de relacionamento,
caracterizando-nos e nos constituindo como tal, instaurando a produção,
acumulação e funcionamento do discurso – do Estado tornando-se também nosso –
que, verdadeiro concebemos, sem ao menos indagarmos o porquê. Assim, somos
submetidos pelo poder à (re)produção da verdade e só podemos exercer este poder
mediante a produção da verdade (FOUCAULT, 1999: 29). Vale ressaltar que este
poder, o qual seguimos e até nos subordinamos, é o poder constituído por um
ideário burguês de livre iniciativa – sem o ser um pontinho sequer –, que nos
persegue desde tempos mais remotos (pelo menos desde a instauração do Estado
burguês que, na cola da simbologia ibérica e do pensamento Iluminista, dá
‘liberdade’ aos homens), amparados pelo corpo judiciário, incitando-nos, dentro
da liberdade burguesa, á docilidade e subserviência, posto entre nós por
aqueles que, desde longínqua data, exerce sua soberania na sociedade.
Essa
verdade que somos forçados a reproduzir é exigida pelo poder e, sendo assim,
também é necessária a esse poder para que o mesmo sobreviva na instituição do
Estado. Pelo fato de sermos coagidos a dizer a verdade, buscando-a como a uma
condenação, ademais, se institucionaliza a busca da verdade, restando aos
homens a subserviência à mesma – incorporada no Estado e sua instituição
personalista, onde elementos políticos os mais distintos, representantes do
público, pesam o privado e o institui como público, pondo suas vontades
pessoais acima da vontade de toda a população que os elegeram; talvez esta
seria a maior crise da atual instituição denominada Estado, notadamente seu
braço político –, isso para que sejamos lícitos junto ao corpo social – um
corpo social muito mais rousseauniano que hobbesiano –, portanto esta verdade se
forja como regras de Direito, mecanismos de poder e efeitos de verdade.
A noção
do pensamento jurídico, responsável por dar corpo ao Estado, voltado à
elaboração do poder, fez-se corpo concreto, nas sociedades ocidentais modernas,
no limiar da Idade Média – visto que Portugal se faz Estado nacional por volta
de 1385, com um patente apoio da burguesia –, isso com a justificativa de
instrumentalizar a soberania daquele que a elaborou, ou seja, um direito sob
encomenda, tendo como papel essencial a legitimação do poder enquanto aparato
jurídico, com o único intuito de dominação – aquém da centralização –; uma
encomenda régia aos súditos.
Contudo,
essa elaboração jurídica teve como função mascarar duas coisas: os direitos
ilegítimos da soberania monárquica – ainda sob a tutela do Manual de Bossuet –
e a obrigação legal de obediência, para que não haja uma perda (pelo fato de
que essa posse tenha sido ordenada juridicamente em proveito do ‘real’
proprietário, aquele que eterniza e centraliza o poder).
O
Direito – todo e qualquer aparelho institucionalizado para regulamentar a
aplicar as jurisprudências jurídicas – torna-se instrumento de dominação e
veiculação das relações sociais, tendo como centro a soberania daquele que,
então, forjou tal aparelho (a propósito, uma caricatura assaz honesta do
Estado).
As
várias formas responsáveis pela sujeição do corpo social ao Direito faz com que
todo o aparelho estatal se condicione ao reduto de seu locus uno, assim, nada mais é necessário para poder congregar em si
todo o rebanho social que se condicionou aí.
Neste
momento, parece que o replicar de Nietzsche sempre fora coerente e profético
quando de seu denominação de Instinto (ou Moral) de Rebanho:
Em qualquer lugar onde nos deparamos com uma moral,
encontramos uma avaliação e uma classificação hierárquica dos instintos e dos
atos humanos. Tais classificações e avaliações expressam as necessidades de uma
comunidade, de um rebanho: aquilo que beneficia o rebanho, que lhe é útil em
primeiro lugar – e em segundo e em terceiro – é o que serve também de medida
suprema do valor de qualquer indivíduo. A moral ensina ao homem a ser a função
do rebanho [o Estado apenas condiciona], e a se atribuir valor somente como
função. Uma vez que as condições de conservação eram muito diferentes; e, se
considerarmos todas as transformações essenciais que os rebanhos e as
comunidades, os Estados e as sociedades são ainda chamadas a sofrer, pode-se
profetizar que haverá ainda morais muito divergentes. Moralidade é o instinto
gregário no indivíduo. (NIETZSCHE, 2003: § 116)
Enquanto
colocamos o ser social como o alimento do Estado, em Nietzsche o mesmo assume o
nome de Moralidade. Pode até destoar do tema em questão, no entanto, aquilo que
aproxima os homens, chamado por Hobbes de estado de civilidade, para Nietzsche,
é o grande elo que mantém o Estado ainda imponente e, sempre, presente.
Se a
discussão gira em torno da crise do Estado, imagino que a mesma esteja
justamente nas pessoas que, para além da sensação de rebanho, há por parte de
alguns de nossos representantes políticos justamente o uso deste arrebanhamento
para continuarem na máquina estatal, dando ao público um caráter cada vez mais
privativo, daí a importância em inserir Nietzsche nesta discussão.
Para que
possamos compreender este poder e sua institucionalização – e até mesmo
tentando reconcebê-lo, faz-se necessário uma reavaliação de todo Estado de
Direito, máquina que garante integridade ao atual Estado, sendo responsável,
inclusive, pela crise que o mesmo tem passado –, e tendo como viés sua face
externa; aquela que se encontra arraigada no corpo social, responsável por
produzir seus efeitos reais na exteriorização do Estado; pode-se dizer que a
noção de Estado, assim como hoje se encontra, precisa ser reavaliada. Assim
compreendido, passa-se para a etapa da indagação, pois o poder, tal como
aparelhado, não pode mais ser visto através de uma reprodução, senão de uma
higienização de seu teor.
O poder,
como o vemos no Estado de Direito, circula como em uma cadeia; só funciona m se
complementando-o com seu circuito, é um para-si
e não um em-si – talvez um dos
motivos desta confusão, onde o privado se sobrepõe ao público –, suas
justificativas só têm efeito quando postas em prática, dessa maneira o
indivíduo torna-se um efeito desse poder, sendo também um intermediário; isto
é, seria o locus onde esse poder se
aplica e se constitui como tal.
Situação
que acaba ocasionando a repressão do indivíduo em detrimento do Estado:
Pois bem, simplesmente, como o corpo humano se
tornou essencialmente força produtiva a partir dos séculos XVII e XVIII
[Revolução Industrial], todas as formas de dispêndio irredutíveis a essas
relações, à constituição das forças produtivas, todas as formas de dispêndio
assim manifestadas em sua inutilidade, foram banidas, excluídas, reprimidas.
(FOUCAULT, 1999: 37)
Assim
foram surgindo aparatos, dentro do Estado de Direito, para que houvesse a
(auto)repressão de pessoas que não se enquadram no perfil dessa sociedade
industrial-burguesa. Tudo instrumentalizado pelo poder político de uns sobre
outros, exercido a cada dia sob a proteção da justiça; a mesma que proporciona
aos excluídos ‘uma chance de se reabilitarem’, de acordo com o processo
apregoado por eles e seus instrumentos ideológicos, podendo assim citar a
repressão sexual iniciada ainda na infância ou até mesmo a excludente política
de banimento da loucura; a mesma que aprisiona quem não quer se enquadrar junto
ao processo social, processo que se fundamenta no poder político-jurídico. Um
exemplo dessa adequação seria o uso da força de trabalho, conduzindo o homem a
uma caminhada junto ao corpo social e ao seu mundo do trabalho.
Tais
mecanismos são complementos do conjunto social, ambos se igualam na caminhada
da construção do Estado de Direito – até mesmo a noção de democracia se
encaixaria nesta adequação, pelo menos a noção que rege nosso corpus político –, conduzidos pelo poder
político e institucionalizado pelo poder jurídico:
(...) o poder, quando se exerce em seus mecanismos
finos, não pode fazê-lo sem a formação, a organização e sem pôr em circulação
um saber, ou melhor, aparelhos de saber que não são acompanhamentos ou
edifícios ideológicos. (FOUCAULT, 1999: 40)
Se molda
o corpo social de acordo com o poder jurídico e político que, no momento em
específico, se mostra soberano, nesse sentido, as ideologias têm papéis
importantíssimos, pois, as verdades como as conhecemos advêm de sua criação.
Com
relação à instância público e privado podemos encontrar em Habermas (1997) uma
discussão muito interessante, até mesmo como forma de balizar as preocupações
político-jurídicas até então em evidência.
O grande
erro, responsável pela crise do Estado atualmente, diz respeito, como dito
acima, à confusão das noções de esfera pública e privada:
Esfera ou espaço público é um fenômeno social
elementar, do mesmo modo que a ação, o ator, o grupo ou a coletividade; porém,
ele não é arrolado entre os conceitos tradicionais elaborados para descrever a
ordem social. A esfera pública não pode ser entendida como uma instituição, nem
como uma organização, pois, ela não constitui uma estrutura normativa capaz de
diferenciar entre competências e papéis, nem regula o modo de pertença a uma
organização, etc. Tampouco ela constitui um sistema, pois, mesmo que seja
possível delinear seus limites internos, exteriormente ela se caracteriza
através de horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis. (HABERMAS, 1997: 92)
A
comunicação de conteúdos, capaz de melhor gerir o aparelho do Estado, esta sim
pode ser compreendida e descrita como esfera pública, diferente da
institucionalização de um poder burocratizado dum certo grupo, tal como
perpassa o atual Estado.
Acresce-se
a isso a noção de democracia que, como se saber, também oferece uma enorme
confusão para aqueles indivíduos que aparelharam o Estado. São situações que,
dentro de um determinado ambiente social, gera incerteza e crise, pois as
pessoas não têm plenas condições de melhor escolher seus representantes.
Imagino
que esta crise nada mais é que uma má interpretação de certos preceitos como público
e privado, além de má-fé por parte de alguns indivíduos que, se utilizando de
seu poder de arrebanhamento, coloca todo mundo dentro de seu âmbito de poder e
controle, uma vez que já vimos que existem forças muito constantes em nossa
estrutura filosófico-jurídica, acarretando uma pressão invisível e uma
violência silenciosa sobre as pessoas.
Se
começara violento não seria agora que o Estado mudaria, apesar de haver um mal
uso da máquina, ainda somos coagidos por um código de leis que mostra seu poder
punitivo a todo momento.
Enfim, o
poder enquanto instituição de ‘direito’, condutor dos rumos que os homens
‘optam’ por seguir, nada mais é que veículo peculiar de dominação e soberania
alheia; bem , peculiar em que instância? Ora, a partir do momento em que o
homem conduz sua vida moldado em leis que, nem sempre – ou nunca – foram
criadas de forma natural, esse mesmo homem acaba por acatar sua inferioridade
enquanto possibilidade de poder social. E, dessa maneira, não consegue refletir
– nem tampouco agir – sobre seu real papel no meio social em que vive,
tornando-se indivíduo inerente ao que o corpo social apregoou como normas a
serem seguidas, as mesmas que são criadas com o único intuito de reprodução dos
inúmeros instrumentos sociais em que está exposto, os mesmo que repercutem no
aparelho de Direito como controle da passividade humana.
BIBLIOGRAFIA UTILIZADA
ALLEZ, Eric (1988). Contratempo: ensaios sobre algumas
metamorfoses do capital. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
FAORO, Raymundo (2000). Os Donos do Poder (vol. I), 10 ed. São
Paulo: Globo; Publifolha.
FOUCAULT,
Michel (1999). Em Defesa da Sociedade.
São Paulo: Martins Fontes.
HABERMAS, Jürgen (1997). Direito e Democracia: entre facticidade e
validade (vol. II). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
NIETZSCHE, Friedrich
(2003). Gaia Ciência. São Paulo:
Martin Claret.
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