terça-feira, 15 de maio de 2012

Sobre o Texto




Um texto é uma construção discursiva intencional, onde temos um autor que nos fala aquilo que ele quer e um leitor que ouve, também, aquilo que ele quer. Desta relação duplamente intencional é que surgirá o significado, é que se construirá uma linguagem, que se quer fazer como símbolo, uma linguagem que se quer estabelecer como nova, ou como constructo que algo já posto.

Por isso, as informações que certo texto nos apresenta são informações de alguém que tem uma carga intelectual e ideológica às suas costas, além de serem informações que querem convencimento, informações que clamam por reconstrução (e nem sempre reconsideração, como seria preferível que fosse, visto que, ao reconsiderar uma informação já dada é como se a tivéssemos incorporando em nosso legado psicológico e intelectual). Sua significação de mundo está totalmente estabelecida, à medida que nossa significação quer coadunar-se com a outra, nem que seja uma coadunação contrária e crítica.

O texto é uma construção para outrem, numa sociedade plena de significados e desejosa de novos signos.

Para que nós leitores consigamos compreender esta informação, sem ignorar o que está por trás dela, requer que tenhamos uma capacidade muito mais abrangente que a mera alfabetização. Precisamos de informações contidas na vida e no discurso do autor, além de precisarmos de uma capacidade intelectual de vislumbrar além do que está posto, mostrando ao mundo que também entendemos as entrelinhas.

Nesse sentido, o bom leitor é aquele que interage com o autor (além de seu texto) e, principalmente, com sua vida social e ideológica. Se conseguirmos assimilar esta capacidade, ou mesmo, esta liberdade de podermos nos debruçar sobre determinada obra e colocar nossa habilidade autoral, de forma automática, teremos maior possibilidade de destrinchar a fundo as informações – e contra-informações – que o autor quer passar.

Enfim, as habilidades requeridas para a leitura de um texto são as mesmas que precisamos ter para construirmos uma linguagem própria, com seus signos, sobre uma linguagem já construída, e totalmente intencional.

domingo, 29 de abril de 2012

Quem é o Defunto?



Bem, meu dia começou tranquilo. Como sempre, pulei da cama assim que meu celular despertou, sabe, o barulho de um despertador é meio incômodo, por isso o celular... meio que ainda cambaleante e sonolento levantei-me... acho que só fui abrir os olhos mesmo quando senti a água fria da pia batendo em meu rosto, sabe como é, a gente se levanta, mas nem sempre acorda... após isso comecei a escovar meus dentes e foi quando tocaram a campainha, achei estranho, baterem, aliás, me chamarem a esta hora. Ainda com água no rosto e a boca meio branca de creme dental peguei uma toalha e fui me enxugando até a porta... foi quando veio o susto! Bem em frente ao meu tapete, estirado no chão, vi um corpo ali caído. Ainda assustado resolvi cutucar o homem, vai que ele tocou a campainha e caiu, imagine que tinha sido um mal súbito, sei lá... nestas horas, ainda meio sonolento, a gente não raciocina direito. E foi aí que me assustei mais; ao cutucar sua cabeça vi que ela estava tombada, meio de lado... senti um frio, parecia algo molhado, em minhas mãos e foi quando a vi vermelha de sangue, desci um pouco mais meus dedos e foi quando notei que ele estava frio e rígido... sei lá, na hora a primeira coisa que pensei foi ligar para alguém, mas aí me lembrei da polícia. Vai que, ao demorar, ainda acham que eu tentei ocultar cadáver ou, sei lá, ter assassinado esta pobre pessoa, pois é seu delegado, foi isso. Foi assim que aconteceu... agora, uma pergunta: quem é o defunto?

sábado, 28 de abril de 2012

José das Couves... Um Solitário!




__ E então meu senhor, fala seu nome completo e, não se esqueça, aqui não pode haver mentira, isso é um depoimento.
__ Me chamo José das Couves, moro na rua das Taturanas, nº 01, bairro da Concórdia.
__ Conta como aconteceu o ocorrido...
__ Olha seu delegado, não sou muito de sair de casa, recebo poucas visitas, ou seja, sou uma pessoa muito reservada...
__ Tá, e aí, conte o que aconteceu primeiro, depois você fala de si mesmo. Não se esqueça que isso é uma investigação policial.
__ Muito bem, como eu estava dizendo, como sou uma pessoa reservada não sou de receber visitas, ainda mais a esta hora do dia, mas aconteceu.
__ Sim, que mais.
__ Eu tinha acabado de me levantar, já estava no banheiro, escovando meus dentes, e foi aí que a campainha tocou. Não pensei duas vezes, peguei uma toalha, ainda enxugando meu rosto da água fria e fui atender.
__ E depois disso.
__ Abri a porta e não vi nada, aquilo estava estranho, nenhum sinal de ninguém por perto, até achei que fosse trote. Foi quando olhei para o chão... e aí veio o susto.
__ E você conhecia a pessoa que estava ali no chão?
__ Não, pelo contrário, sinto que ele era era até um pouco estranho, parecia estrangeiro.
__ Por que você teve esta impressão...
__ Pela cor da pele dele, nunca vi uma pessoa tão cinza...
__ Não seria porque ele já estava morto?
__ Pois é, acho que é isso mesmo... interessante, eu não tinha percebido!
__ Tudo bem, volte aos fatos.
__ Abaixei meu corpo e toquei sua pele, ainda receoso... vai que o sujeito estava tirando uma com minha cara e deitado ali só para incomodar. Sabe, não sou um vizinho muito sociável, mas bem que gostaria que o sujeito fosse uma visita.
__ Sim... mas, se atenha aos fatos.
__ Foi aí que percebi que o caboclo estava frio. Aquilo foi estranho, nem estamos no inverno nada, e este sujeito gelado desse tipo...
__ Meu amigo, cadáveres são gelados, não sabia?
__ Ih é mesmo, estamos falando de um defunto. Agora que me toquei...
__ Tudo bem, termina logo seu depoimento que você já tá exagerando e tem mais gente para ser ouvido.
__ Certo, a partir daqui o senhor já sabe, né. Liguei para cá e falei com uma mocinha de voz macia. Gostei disso, sabe, não converso com muitas pessoas...
__ Tudo bem, já chega... o próximo!
__ Mas, seu delegado, ainda não acabei...
__ Acabou sim, próximo!!
__ Mas...
__ Sem mas, sai daqui senão o prendo por obstrução da justiça.
__ E a mocinha do telefone, posso falar com ela?
__ Alfredo, prende este sujeito. Tá obstruindo o serviço da polícia... sujeitinho abusado.
__ Sim senhor, delegado Feitosa!
__ Mas, espera aí eu sou a testemunha, não o culpado...
__ Sai daqui logo, antes que te dê uns tapas... libera este sujeito Alfredo, manda este elemento para... vai embora daqui, antes que eu fale alguma besteira e ainda serei processado por abuso de autoridade!
__ Que sujeitinho estranho heim doutor?
__ Realmente, é muito estranho. É como se o sujeito tivesse se utilizado do fato para ter alguém com quem conversar, não parece ser uma pessoa nem um pouco sociável esse talzinho aí. Daí as divagações constantes dele... isso é falta de gente na vida dele, Alfredo.
__ Tem razão, doutor, e agora, como faremos?
__ Vamos ver se tem mais alguma testemunha, que esse aí... sem chance.

sábado, 21 de abril de 2012

O Lobo da Estepe - Hermann Hesse (Recomendação de Leitura)



Só Para Loucos

O dia passara como normalmente passam os dias: eu o havia desperdiçado, dissipado suavemente, com minha primitiva e arredia maneira de ser; trabalhara algumas horas a compulsar velhos livros e sentira dores durante duas horas seguidas, como os velhos costumam sentir; engolira uns pós e me alegrara porque as dores se haviam deixado enganar; metera-me num banho quente e absorvera o agradável calor; recebera três vezes o correio e correra a vista pelas cartas e os impressos sem importância (...). Agradável, assim como ler os livros antigos [alfarrábios] ou demorar-me no banho quente, mas, afinal de contas, não fora a bem dizer um dia encantador [acho que bebi demais, e esta cerveja não me fez muito bem], nem brilhante, nem feliz, nem plácido, mas tão-somente um desses dias como desde algum tempo [um tempo tênue que não cessa em passar] costumam ser os normais de minha vida: moderadamente agradáveis, totalmente suportáveis, toleráveis, tépidos dias de um velho e descontente senhor, dias sem dores particulares, sem singulares preocupações, sem aflições especiais, sem desesperos, dias em que até mesmo a pergunta, de que se não seria o momento de seguir o exemplo de Albert Stifter e degolar-se com a navalha de barbear, era meditada tranquilamente sem emoção, sem qualquer sentimento de angústia. (Hermann Hesse: O Lobo da Estepe)

Ás vezes é isso, a escrita não-somente agustia, mas dá motivos para que a angústia vire vida. Quando leio Hermann Hesse me sinto assim: angustiado por mais vida.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Diálogos Impenetráveis II



Não é isso, a idade faz a gente encarar as coisas com um outro ponto de vista. Aparecem responsabilidades, as loucuras vão se esmaecendo e a gente vai virando refém de uma situação que, outrora, não tínhamos pensado. Pensar demais, e pensar a Filosofia em especial, faz a gente olhar para o mundo e tentar fazer parte nalgumas coisas e odiar outras. Sabe aquele ódio, talvez de desespero, ou mesmo de resignação por algo que não dá para mudar? Essas coisas mexem muito com a gente!

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Seção D'Outro


Fábulas
As fábulas, os mitos, as parábolas são fecundos para impregnar de impressões positivas e provocar reflexões nas crianças (e nos adultos), numa proposta de educação para a Ética. Mas como qualquer recurso para despertar uma discussão e deixar uma semente de valor ou de idéia, devem ser contextualizados e trabalhados interdisciplinarmente.
Como exemplo, duas fábulas que foram originalmente concebidas por Esopo, transformadas em poesia por La Fontaine, e aqui estão traduzidas de forma simples e agradável para as crianças. As fábulas têm essa vitalidade permanente e atemporal, que está acima das idades e das épocas, mas para que se enraízem no coração das crianças, devem ser contadas, recontadas, discutidas, analisadas, declamadas, dramatizadas, desenhadas e recriadas, de modo que renasçam a cada instante em suas palavras e produções.
Costumo trabalhar essas fábulas, contando quem foi Esopo, falando então da Grécia Antiga, contando quem foi La Fontaine, fazendo pesquisas, mostrando figuras e olhando mapas, para identificar a França e a época desse autor e, por fim, propondo questões e produções, para que as crianças fixem na alma o que elas querem dizer.
O avarento que perdeu seu tesouro
Dinheiro só tem valor
se o usamos sabiamente.
Que adianta, tendo dinheiro,
viver miseravelmente?
A pessoa com mania
de só guardar e guardar,
é tão pobre quanto a outra
que não tem o que gastar.
Na verdade, o avarento,
de rico, vira mendigo,
como na história de Esopo,
que exemplifica o que digo.
Um infeliz avarento
o seu tesouro escondia,
não possuía seu ouro,
o ouro é que o possuía.
Cavou um buraco fundo
e enterrou todo o dinheiro
e, com ele, guardou junto
o seu coração inteiro.
Pensava nesta fortuna,
dia e noite, noite e dia,
comendo, bebendo, andando
a mente prá lá fugia.
E tanto foi ao lugar,
onde escondia o tesouro,
que um coveiro percebeu,
cavou e levou o ouro.
Noutro dia, o avarento
achou a cova vazia
e entre lágrimas, suspiros,
gritava, arfava, gemia.
Um passante quis saber
o motivo de tal choro.
O avarento respondeu:
Roubaram o meu tesouro.
Ué! –Tornou o passante
Pois não há nenhuma guerra,
por que escondê-lo longe,
embaixo de tanta terra?
Não era melhor guardá-lo
com você, no próprio quarto,
usando a todo o momento
deste dinheiro tão farto?
A todo momento?! Ó deuses!
Gritou o nosso pão-duro –
Nunca toquei no tesouro,
estava aqui, bem seguro!
O passante disse então:Se o ouro a nada servia,
guarde uma pedra na cova,
será de igual serventia!
***
O Leão e o Rato
É bom sempre que se possa
a todo mundo ajudar,
pois mesmo dos pequeninos
poderemos precisar!
Desta verdade bem certa
esta história vai falar,
mostrando como ela vale
em qualquer tempo ou lugar!
Um dia, um pobre ratinho
se viu aterrorizado
entre as patas de um leão…
E achou: “serei devorado”.
Mas neste dia o leão
generoso, deu-lhe a vida,
deixou o rato ir embora
sem dele fazer comida!
Esta bondade leonina
o rato iria pagar!
Mas um leão poderia
de um ratinho precisar?
Pois foi o que aconteceu:
um belo dia o leão
foi preso por grossa rede,
rugindo em grande aflição!
Senhor rato o socorreu
usando o pequeno dente,
paciente roeu a rede
livrando o leão valente!
Assim, pequenino e fraco
pagou o seu benfeitor.
Mostrou que a força não vale
tanto quanto vale o amor!
O que é filosofia?
Dora Incontri
O que é filosofia?Perguntam todos perplexos.
Será um monte de livros,
Com discursos desconexos?
Será um bicho difícil,
que pode nos devorar,
se não formos muito espertos,
para a resposta encontrar?
Na filosofia mesmo,
nada deve ser complexo,
podemos fazê-la fácil,
numa lógica com nexo.
Filosofia é uma forma
de perguntar as questões,
que mais afligem o homem,
que mais nos dão comichões.
É perguntar sobre a vida
querer saber sobre a morte,
é um olhar para o universo
é um indagar sobre a sorte…
Filosofia faz parte
da vida de cada dia
porque pergunta os porquês
que a nossa razão afia.
Filósofo é qualquer um
que pára à beira da estrada
para pensar sobre as coisas
e ver que não sabe nada.
Filósofo deve ser
quem não quiser vegetar,
passando a vida sem rumo
sem um sentido encontrar.
Portanto filosofemos,
buscando sabedoria,
pois num bom filosofar,
teremos mais harmonia.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Signos e Linguagem


Um instrumento de mediação, ao ser utilizado pelo homem, conforme Vigotski, transforma a natureza ao seu favor, ao mesmo tempo em que transforma também o indivíduo. Ao manipular a natureza, em benefício próprio, o homem se transforma biológica, cultural e socialmente.

Assim, nossas atividades psicológicas, enquanto espécie, são ativadas por signos. Essa seria, então, sua função mediadora. Apesar de os signos não serem necessariamente um instrumento de mediação. Signo enquanto informação é um instrumento de nível psicológico e, como tal, responsável por transformar fisiologicamente o ser humano e seu ambiente ao redor.

Este instrumento serve para propiciar a ação do homem sobre a natureza, transformando algo inerte em cultura coletiva e em movimento.

Por isso, a linguagem, instrumento de signo, torna comunitário alguma ideia, especificamente aquela advinda do signo; por esse sentido, ela pode ser encarada como instrumento de correlação de fatos e de relações sociais. A linguagem é um sistema fundamental em todos os grupos humanos, sendo uma representação simbólica muito peculiar a determinado grupo social. Ela organiza um sistema simbólico, organizando também os signos deste sistema simbólico, conforme o simbólico.

Precisamos entrar em contato com objetos não-presentes, e é a linguagem que cria – e organiza – esta estrutura formal. Enfim, o objeto depende da linguagem para ser conhecido em sua plenitude físio-psicológica.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Reminiscências


Minha relação com a escrita começou numa idade muito tenra. Lembro-me bem, minha mãe era merendeira de uma escola rural localizada numa espécie de vila de trabalhadores de uma Companhia de mineração, onde meu pai trabalhava. E certa vez, ainda com meus 5 anos tive a feliz sorte de ir com minha mãe ao seu trabalho. Aquela sensação me foi de um prazer tremendo, pois seria a primeira vez que eu iria numa escola que, para mim, era um universo de outro mundo. No meio do expediente dela me foi dado um giz (pedacinho mágico de fantasia) por uma das professoras. Fiquei tão extasiado com tal situação que comecei a escrever sem parar no chão (letras, desenhos, aquilo que uma criança de cinco anos apenas rabiscava, como sendo uma escrita mágica, numa língua mágica, só entendida por mim, pensava eu), sem me dar conta me vi rodeado de pessoas, professoras principalmente... meu mundo mágico tinha desabado!... mas não: recebi elogios que jamais imaginava e isso foi de uma surpresa tremenda; enfim, com este primeiro contato com tal universo vi meu futuro ali traçado; e cá estou: professor!! Quanta Alegria.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Novas Práticas de Leitura



Pensado sob uma perspectiva social, o letramento entra em cena, ao substituir a alfabetização, com a intenção de dar um maior significado à escrita, para aqueles que dela estão se iniciando. O impacto social desta primeira escrita, ou mesmo das primeiras letras, faz com o que o indivíduo sinta uma situação de pertencimento ao grupo, principalmente quando nos referimos a um grupo tão focado em tecnologias como é o da sociedade contemporânea. Não é mais só aprender a ler e escrever, mas construir uma linguagem social que represente este educando, e em tempos de Era Digital, este tema ganha ainda mais espaço na rede, visto que a Internet é um grande universo, onde cada tribo, conhecendo-se, e aos outros, tenta inteirar-se de sua identidade, ganhando com isso uma nova faceta.

Também as próprias práticas sociais de leitura e escrita e os eventos em que elas ocorrem compõem o conceito de letramento, visto que é por meio destas práticas que o indivíduo se reconhece enquanto ser pensante e que constrói seu próprio saber! Quer-se, com isso, muito mais que alfabetizar alguém.

Um evento de letramento é qualquer situação em que um portador qualquer de escrita é parte integrante da natureza das interações entre os participantes e de seus processos de interpretação. (Heat: 1982: p. 93)

Além do mais, letramento não pode ser pensado apenas como mera repetição, ou introdução de um indivíduo em sua sociedade escrita, mas, um evento garantidor de identidade para determinado grupo e determinada sociedade. O indivíduo precisa ter participação efetiva de seu grupo, e isso não pode vir apenas com a ação de saber ler e escrever, mas de pertencer, participar e se fazer existir. Sua validade no grupo depende de como ele se enquadra no mesmo.

Busca-se assimilar competências discursivas, ao adentrar o universo da escrita por meio do letramento, e competências cognitivas ao saber se posicionar perante seus iguais. Situação que confere ao indivíduo um determinado e diferenciado estado de ser e condição de existir social e culturalmente, como ser inserido numa sociedade letrada. Letramento seria então, conforme Soares (2002: p. 146): estado resultante da ação de letrar, um vero que segundo a autora, ainda precisa ser dicionarizado para que a palavra tenha sua completa compleição.

A cultura do papel vem sendo tragada pela cultura da cibercultura, resta-nos saber lidar com os dois de maneira que o letramento não seja prejudicado. Imagina-se que este universo novo acaba favorecendo o surgimento de uma nova escrita (em papel ou eletrônica), fazendo com que o letramento ganhe ainda mais significado para aqueles que dele se utilizam, ou são evidenciados.

Além do letramento, nossa língua também garante esta sensação de pertencimento. E só falamos o português porque é algo que nosso universo criou e que fomos criado pelo mesmo. Nosso universo, nossa vida e nosso língua são nossos instrumentos de validação do ser, ser-no-mundo. Nos validamos quando nos tornamos ser-no-mundo, e nossa língua tem esse papel, por isso a grande importância em fazer com que o letramento seja mais que um primeiro contato com o mundo.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

De Kropotkin por Heráclito



Edilson Antônio Alves



A mudança de fundamentos, proveniente da revolução copernicana, traz para o ideário das ciências humanas um outro parâmetro epistemológico. Baseado nessa reconfiguração de saberes, busco o argumento que Piotr Kropotkin (anarquista russo, nascido em 1842 e falecido em 1921, um dos principais defensores do comunismo-anarquismo) se utiliza para, no meu entender, alimentar sua teoria filosófica anarquista.

Vejamos, então, a tese de Kropotkin:

Todo o aspecto do universo muda com esta nova concepção [teoria heliocêntrica]. Desaparece a idéia de força regendo o mundo, da lei preestabelecida, da harmonia preconcebida, para dar lugar àquela harmonia que Fourier anteviu um dia, e que é apenas a resultante dos inumeráveis enxames de matéria, caminhando e conservando-se mutuamente em equilíbrio. (2001: 24)

Se antes o homem, por temor ao desconhecido, tenta justificar as instituições e até o poder de uns sobre os outros, a partir do momento em que se tem uma reconfiguração de mundo – e de universo –, pode-se asseverar que este temor deixa de ser elemento reconfigurante, o que garantiria uma maior liberdade para este mesmo homem – e liberdade passa a ser entendida não como algo concreto e reduzido, mas elástico e amplo, onde se tem uma liberdade, que coloque o homem acima (pelo menos como propósito) da imposição de poderes proveniente do discurso filosófico-jurídico reinante – e aqui me refiro à materialização do capitalismo e a constante reificação do homem, transformando-o em objeto de ganho, para um fim exploratório.

O fato de estarmos imersos no social dá cabo à justificativa desta transformação, visto que, desde o momento em que o coletivo sente, ou sofre, uma mudança muito drástica, todos os elementos desta colônia sofrerão com isso. Portanto, cada elemento dessa colônia deveria lutar para resolver os sofrimentos e desventuras de seu grupo. O que afeta um, deve afetar a todos; isso é o que mais se aproxima da solidariedade anarquista.

A grande questão que fica na escrita de Kropotkin é a de que toda harmonia, desde que aconteça, deveria existir de forma provisória. É como se houvesse um estado de guerra constante, onde a vontade do grupo só se mantém para transformar sua coletividade.

Há sim a cordialidade entre as várias facetas da cultura, não significando, contudo, que esta cordialidade se imponha. A maior cordialidade estaria no reconhecimento da diferença e no convívio com ela. Pensadas como mal-entendidos, estas diferenças impõem um consenso chucro, determinando o suicídio conceitual da própria cultura, desembocando, em menor grau, na patologização da diferença.

Com relação à aceitação de certa Doutrina, como sendo uma verdade inquestionável e sagrada, pode-se dizer que, dos elementos acima, dois entram em cena: 1) é o caso da criação de identidade e, 2) da construção de uma cultura bastante ideologizada – pois, disso depende a construção simbólica desta cultura e de suas correlações –, com forte respaldo numa ordem formal.

Não podemos nos esquecer, portanto, que a própria noção de cultura, dentre suas várias interpretações, tem nesta construção ideológica sua concretização, determinando uma memória coletiva comum, e impondo certos parâmetros de conduta. Vejamos, pois, como Cliffort Geertz em A Interpretação das Culturas nos informa sobre isso:

Outra implicação é que a coerência não pode ser o principal teste de validade de uma descrição cultural. Os sistemas culturais têm que ter um grau mínimo de coerência, do contrário não os chamaríamos sistemas, e através da observação vemos que normalmente eles têm muito mais que isso. Mas não há nada tão coerente como a ilusão de um paranóico ou a estória de um trapaceiro. A força de nossas interpretações não pode repousar, como acontece hoje em dia com tanta freqüência, na rigidez com que elas se mantêm ou na segurança com que são argumentadas. Creio que nada contribui mais para desacreditar a análise cultural do que a construção de representações impecáveis de ordem formal, em cuja existência verdadeira praticamente ninguém pode acreditar. (1989: 13)

Todo o passado da cultura passa a ser pensado, a priori, antes de se tentar traçar algum tipo de confirmação do objeto homem e sua história.

Diferente do Medievo, onde toda a explicação provinha de cima, neste momento tenta encontrar cá embaixo uma outra explicação plausível, e também outros parâmetros de conduta e comportamento, sem, contudo, desvincular-se totalmente desse éter, ser impassível que sobrevoa a vontade do homem, mantendo-se acima do mesmo, e que o coloca numa certa prisão psicológica – como se percebe, há aqui uma discussão da teoria copernicana, e, com base em especulações, como a mesma poderia servir de subsídio à obra de Kropotkin.

Esta discussão lembra a obra de Heráclito, em especial, o estado de guerra que do Uno (Também chamado de logos, palavra usada para designar “palavra” ou, mais propriamente, “ação” ou “estudo sistematizado”, ou dinâmica de organização do elemento Saber, e foi uma das primeiras construções conceituais que dizem respeito à busca pela verdade, ou mesmo pelas origens – se bem que para os gregos do período de Heráclito a noção de origem ainda é algo um tanto quanto obscura, sendo portanto, muito pouco usada; há sim a noção de retorno e de ciclo, jamais de começo, daí a noção de eterna guerra entre os opostos: do Uno há a divisão de dois pólos que, pelo resto da eternidade se digladiariam para construir o saber) advém para, em seguida, retornar a este Uno, para, noutro momento, subdividir-se novamente.

Parece-me uma teoria bastante coletivista, porquanto, dentro de um elemento comum, a saber: a transformação e ajuda mútua, uma vez que, em Kropotkin há a afirmação do comunismo-anarquismo, em que se imagina a tendência para a igualdade econômica e política. Contudo, uma ajuda nem um pouco harmônica:

A harmonia aparece assim como equilíbrio temporário, estabelecido entre todas as forças, como uma adaptação provisória; e este equilíbrio só durará com uma condição: a de se modificar continuamente, representando em cada instante o restante de todas as ações contrárias. (2001: 30)



Bibliografia Consultada

GEERTZ, Clifford (1989). As Interpretações das Culturas. Rio de Janeiro: LTC.

HERÁCLITO de Éfeso (2000). Sobre a Natureza, tradução de José Cavalcanti de Souza. PESSANHA, José Alberto. Pré-Socráticos. São Paulo: Nova Cultural (Coleção Os Pensadores).

KROPOTKIN, Piotr (2001). A Anarquia: sua filosofia, seu ideal, tradução de Plínio Augusto Coêlho. São Paulo: Imaginário (Coleção Escritos Anarquistas).

Viva Para Ser de Novo...


A concepção da linguagem como instrumento de formação chegou hoje à sua concepção mais extrema. Quando se reporta à palavra, o homem está dentro de sua própria mutação, onde podemos mensurar, sempre a possuindo. O curso dessa mutação não para tão de repente. Isso se completa em outro local, onde há um silêncio mais profundo. 

Certamente, devemos admitir que a linguagem, dentro de seu uso quotidiano, aparece como um meio de compreensão, onde a mesma se encontra dentro das circunstâncias mais comuns de nossa vida. 

Somente existe dentro de outras relações mais que as relações mais corriqueiras. 

Goethe qualifica estas outras relações de "mais profundas", e diz, a propósito da linguagem: "Dentro da vida quotidiana, nós nos arranjamos tão bem que mal compreendemos a palavra que nos circunda, que não em outra situação, dentro de significações superficiais. E a partir do momento em que compreendemos estas relações mais profundas, uma outra palavra faz sua apresentação: a palavra poética."

E a poesia corrobora com o humano que, nalgum momento, deixamos de ser. Ou voltemos a sê-lo, ou deixemos de existí-lo! Viva para ser de novo...

sábado, 31 de março de 2012

Desistorização!


Se antes tinha-se a eternidade como pretensão prepotente, há que se pensar uma outra prerrogativa à razão. Pois, a razão deveria dar valia, justamente, às pretensões do indivíduo, não o contrário, como havia detectado Horkheimer em meados da década de 40, do século passado. Noutra direção, se verá que esta razão será, sim, uma pretensão de certo indivíduo, ou mesmo de um grupo em si, pleno de sua “vocação”.
 
O grande problema que Horkheimer tenta resolver, imagino eu, seria o de mumificação conceitual sub specie aeterni da razão. Vejamos, pois, qual o respaldo desta afirmação:

Os senhores me perguntam o que são todas as idiossincrasias dos filósofos?... Por exemplo, sua falta de sentido histórico [que aqui, e em Horkheimer é o do capital, como se verá], seu ódio contra a representação mesma do vir-a-ser, seu egipcismo. Eles acreditam que desistoricizar uma coisa, torná-la uma sub specie aeterni, construir a partir dela uma múmia, é uma forma de honrá-la. Tudo o que os filósofos tiveram nas mãos nos últimos milênios foram múmias conceituais; nada de efetivamente vital veio de suas mãos. Eles matam, eles empalham, quando adoram, esses senhores idólatras de conceitos. (NIETZSCHE, 2000: A”razão” na Filosofia, § 1, CI)

Pode parecer um contrassenso a comparação de um texto do século XIX à tese levantada por Horkheimer na metade do século XX, contudo, o que mais sobressai aos olhos é, especialmente, a semelhança de afirmações.

Enquanto Horkheimer disserta acerca do “eclipse da razão” e, consequentemente, do ocaso do indivíduo ontologicamente identitário, Nietzsche tece críticas ácidas à razão, tentando dar ao indivíduo um outro parâmetro reflexivo.

Parece que Horkheimer mostra o caminho torto desta razão pós-revolução industrial, por outro lado, Nietzsche – e sua radical crítica ao racionalismo cartesiano – nos faz propor uma reflexão inflexiva. E nesta inflexão, um caminho totalmente anti-moderno se faz transparecer, por intermédio da pena iracunda de Nietzsche.

Aquilo que, num primeiro momento, pareceu uma blasfêmia conceitual, acaba por nos mostrar uma outra direção; conseqüência radical do caminho empreendido pela razão. Consequência essa que, quase cem anos antes, mostra uma situação (este caminho) já toda torta e equivocada.

É neste momento que vem o flash: não seria, também, um eclipse do indivíduo? Pergunta que queda aberta.

Pois bem, a preocupação de Horkheimer está em soerguer, dos escombros da razão, um indivíduo que busca por um retorno à sua identidade – fica, então, a seguinte questão: não seria também um anelo de inflexão?

Essa espécie de pessimismo para com um futuro, deveras incerto, faz doer profundamente na alma deste indivíduo. Ao menos na alma daquele que tenta compreender qual é, realmente, este caminho que se mostrara eclipsado por uma variedade de fatores “materiais”.

Um pessimismo que clama por uma consciência, segundo Horkheimer, há tempo perdida. Aquela mesma consciência que ele tenta compreender na incerteza identitária do homem em seu elemento mais imberbe: sua entrada na “civilização”.

É do mesmo modo mais fraca [a afirmação de identidade] entre os primitivos do que entre os civilizados; o aborígene, na verdade, que só há pouco tempo foi exposto à dinâmica da civilização ocidental, muitas vezes parece incerto de sua identidade. Vivendo das gratificações do momento, ele parece ter uma consciência muito vaga de que como indivíduo deve preparar-se para enfrentar os riscos do futuro. Esse retardamento da compreensão, nem é preciso dizer, em grande parte é responsável pela crença muito difundida de que esses povos são preguiçosos ou de que são mentirosos – crítica esta que presumiria que os acusados tivessem o próprio senso de identidade que lhes falta. (HORKHEIMER, 1976: 140)

Longe de fazer disso uma análise antropológica, o que Horkheimer deixa transparecer seria um possível retorno a um ambiente ainda mais hostil que o – seu – atual (século XX, em sua metade). Hostilidade essa surgida de uma reflexão que tentasse acompanhar o homem, e sua história de humanidade.

Parece que este homem pensado por Horkheimer – o homem seu contemporâneo –, em uma comparação histórico-antropológica, está bem próximo daquele primitivo que ainda não “acessou” a “civilização”. Uma busca de identidade que, de uma comparação ingênua, se assemelha àquela busca antiga e “primitiva” dos homens – e percebe-se esta citação quando da palavra aborígene – por uma identidade – devido seu estado de “retardo social” –, ainda desconhecida e nebulosa. A afirmação que podemos fazer é a de que há, sim, uma identidade, entretanto, uma identidade vinda de fora – do capital – e posta sobre este homem; que parece se assemelhar ao “aborígene primitivo” em sua fragilidade identitária.

Comparação que se equipara ao homem contemporâneo de Horkheimer. Imagina-se que seu contemporâneo esteja perdido. E numa mesma busca que a dos “aborígenes”. Esta desintegração identitária, pelo que parece, seria uma consequência desta razão, então criticada por Horkheimer. E que se encontra no caminho errado.

Ainda, insistindo na comparação com Nietzsche, o que vemos é uma desincompatibilização do indivíduo, onde sentidos, considerados por este último como essenciais para a afirmação da identidade, outrora legítimos, tornam-se arremedos de razão, sendo direcionados pelo mesmo caminho torto que a razão optara. É como se o testemunho dos sentidos fosse falsificado (NIETZSCHE, CI, 2000: A “razão” na Filosofia, §2).

A ciência, com isso, passa a ser o aceite da não-utilização destes sentidos. A convenção de signos nada mais é que a aceitação deste caminho torto, donde o indivíduo, alijado de seus sentidos, perde sua identidade ontológica, deixando à razão o papel de dar-lhe uma outra identidade.

Colocando o social como outro elemento para a afirmação deste caminho torto, Horkheimer coloca os sujeitos submissos – por sua condição econômica – como sendo tolhidos de sua individualidade. Sendo, então, imitadores de uma condição social concernente a seus “superiores”; que, no caso específico, não tem mais classes sociais. Acabaram-se todos se tornando submissos e alienados.

Essa imitação viria se afirmando quando da ruidosa propaganda por apelos educacionais que não competem a este “substrato” social. Exortam, com isso, o cultivo a uma personalidade que, a uma primeira vista, lhes pareceria inevitavelmente condescendente (HORKHEIMER, 1976: 140). Haveria uma satisfação ilusória na qual eles – os “inferiores” – acalentariam um estado de ser que não lhes seja pertinente. É como se se criasse uma identidade torta, donde o anelo passa a ser o anelo alheio. 

A existência destes indivíduos se daria por uma satisfação imediata, desejo proporcionado pela razão do capital e suas nuances materiais.

Quanto mais intensa é a preocupação do indivíduo com o poder sobre as coisas, mais as coisas o dominarão, mais lhe faltarão os traços individuais genuínos, e mais a sua mente se transformará num autômato da razão formalizada. (HORKHEIMER, 1976: 141)

Admite-se que a noção de individualidade ainda estaria por ser descrita e compreendida. Pensa-se, com isso, que a formalidade da razão ganha corpo de acordo com a elite que, dos píncaros, traça suas condições de existência e identidade.

Um pessimismo presencial que não pensa o futuro de outra forma. Há apenas a afirmação de que esta “força” continuará ditando seus valores, dando ao indivíduo percepções e sentidos que não lhe dizem respeito. Acalenta-se algo que, num futuro não tão distante, eclipsará ainda mais o indivíduo e sua razão ontológico-identitária.

Este antagonismo que surge, do indivíduo com sua comunidade, dá mais vazão a este futuro obscuro. Há portanto a afirmação do conflito entre o ego e o mundo. Aquilo que o mundo oferece, além de não chegar a todos, bestifica ainda mais o ego. O arrebanhamento que surge de então distancia este indivíduo de sua identidade. Afirma-se a identidade do outro, colocando o eu dentro de um torvelinho de desincompatibilização, em que a identidade, cada vez com maior frequência, se circunscreve num ambiente hostil.

A derrota, neste ambiente hostil, e seu possível sacrifício, dão mais força à vontade de superar o statu quo, mesmo sabendo da quase total impossibilidade de superação – em poucos casos –, ou se inteirar ao grupo.

Pode-se dizer que a vida do herói não é tanto uma manifestação de individualidade quanto um prelúdio ao seu nascimento, através do casamento entre a autopreservação e o auto-sacrifício. (HORKHEIMER, 1976: 141)

Esta autopreservação nada mais é que o subjugar-se ao grupo. Há aqui uma deturpação do conceito de heroísmo. Herói passa a ser aquele que mutila sua identidade, colocando nos sulcos, abertos por esta mutilação, pedaços de um tecido estranho. Como um câncer silencioso, o organismo se auto-mutila, padecendo devagar e com chagas; nem sempre, tão escancaradas.

Por mais que haja a facilitação de um equilíbrio entre o Estado e seus membros, cria-se uma liberdade do governante. Todos os membros, ademais, se deixam perecer – principalmente sua liberdade individual – em detrimento de um grupo dominante, que nem mesmo tem controle da situação, pois já se dessubjetivaram também. A liberdade individual que floresce é a do burguês e seu desejo consumista. Há os que consomem, e os que querem consumir; não mais o que se rebela.

O antagonismo entre a individualidade e as condições sociais de sua existência é um elemento essencial desta nova individualidade (HORKHEIMER, 1976: 142). Em contrapartida, este antagonismo passa a ser suplantado por um desejo consciente dos indivíduos, querendo se adaptarem a esta nova realidade que lhes fora incutida por meio do sacrifício.

O câncer, com isso, ganha um caráter de pandemia. Apenas sobrevive aquele que o organismo melhor se adapta. Seres mutantes ganham força, e o câncer passa a ser a própria existência desses indivíduos.

A crise do indivíduo, em poucas palavras, estaria consolidada pela confirmação desta idéia cancerígena. Há aqueles que, embora se adaptem, carregam marcas fortes e abrasivas. Tornam-se, então, ponto de fuga – embora em dor – de indivíduos cada vez menos identitários.

Há a consolidação de uma identidade de oprimido. Um escravo que reconhece seus trapos e a eles se veste. Marcas profundas marcam toda a vida. O valor de cada ser se afirma à luz de uma teologia preexistente. (HORKHEIMER, 1976: 143)

Os trapos que vestem estes homens são o próprio trauma de sua existência. Uma existência que se afirma de uma negação constante. Por indivíduo entendemos, tão-somente, a patologia de um alienado.

A razão que se afirma, ao mesmo tempo, reforça seu eclipse. Em especial quando tem nos indivíduos almas, a purgar erros identitários.

Uma noção que para Horkheimer terá dois pontos, não muito em comum, de referenciação. Seriam eles: 1) a transição da razão objetiva, esta mesma que está externa ao indivíduo, para a razão subjetiva, o que inaugura um processo de constante intromissão da razão externa – a do Estado burguês – no sujeito e 2) a idéia de que a doutrina do processo essencializaria diretamente o ideal de dominação que daí deriva, colocando o sujeito como objeto essencial para este progresso sem, no entanto, levar em consideração seu anseio ou não. Progresso esse que não levaria a cabo a contradição que é inerente ao sujeito, senão uma harmonia – forçada, sabemos – estática e não contraditória.

E é neste momento que o erro da razão do capital reforça ainda mais seu caminho torto:

A circunstância de que o cego desenvolvimento da tecnologia reforça a opressão e exploração social ameaça a cada passo transformar o progresso em seu oposto, o barbarismo completo.

Tanto a ontologia estática quanto a doutrina do progresso – ou seja, as formas objetivistas e subjetivistas de filosofia – esquecem o homem
. (HORKHEIMER, 1976: 145)

Circunstâncias que mostram apenas um fim possível: a total desimcompatibilização do indivíduo com sua identidade, e o prolixo e constante estado cancerígeno dos que se “adaptam” a esta nova razão social.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Despalavra... Descaminho! Um Caminho...




Entender o significado dos textos, da comunicação deixado por outrem, sempre acompanhou a curiosidade humana. Ao longo dos tempos, os homens criaram técnicas e métodos para desvendar a polissemia dos discursos. Eis algumas questões sempre atuais que atravessaram o tempo em busca do discernimento do sentido: como caracterizar o sentido de um discurso? Quais são os critérios para tal investida no interior de um texto? O sentido se revela pelo que é dito ou pela maneira de dizer? Quais aspectos extra-texto que poderemos levantar como variáveis para a construção do sentido de um discurso?

Para Roland Barthes – escritor, semiólogo e crítico literário – nascido em Cherbourg, na Normandia, no ano de 1915, o significado das coisas que o mundo oferece, por meio de suas mais variadas linguagens, seria a representação psíquica de uma "coisa" e não a "coisa" em si.

O significado de uma imagem é sua representação gráfica aos olhos de quem a está observando, e de seu conteúdo se inteirando. O significante materializaria a figura do significado (a figura propriamente dita) com seu significado segmentado e entendido de várias formas, segundo as diferenças culturais de cada leitor ou observador.

Acima de tudo, porquanto, uma tradição literária implica um senso histórico ativo do passado, vivo no presente e moldando esse presente.

Dessa forma, parece existir uma espécie de tempo literário – ou mesmo gênero literário – encontrado entre o ensaio, o tratado e o discurso literário e que, ao mesmo tempo, não cabe em nenhum destes parâmetros.

Fora, também, a questão do hipertexto e da Internet, com sua explícita gama de informações livres, e das mais variadas (nem sempre confiáveis, mas intercambiáveis do ponto de vista da construção de determinado discurso).

Este mesmo tempo que outrora fora pensado por Marcel Proust (1871-1922) dentro de um parâmetro mais literário e menos epistemológico, e que acaba sendo resgatado por Barthes com um caráter mais acadêmico – e, ao mesmo tempo, debruçado fora do teor terrificante dos muros da Academia –, mais recentemente, e, no Brasil, pelo professor Evando Nascimento, da Universidade Federal Fluminense.

E é com base na obra de Roland Barthes, e do estudioso de tecnologias vinculadas à Internet, o francês Jean Baudrillard, que se tentará pensar este transgênero literário dentro dos parâmetros da Internet, e sua intensa liberdade de expressão.

Expressa nos mais variados assuntos, nas mais variadas páginas pessoais – os blogues, por exemplo – e em ferramentas como o Universia e o Wikipedia, que vêm, justamente, com a tentativa de aplicar este conceito de liberdade escrita e epistemológica em sua estrita valia e local.

Este novo universo epistemológico e linguístico tem muito de reinvenção. Destas que a linguagem não comporta mais seu objeto de constituição. Sendo, para além de sua concretização em signos e letras, um local situado numa terceira margem, onde nem a esquerda ou a direita determinam alguma correlação de força, ou mesmo de significação.

Em recente descoberta – dessas em que certo autor, com suas reminiscências pessoais, dá à sua já grandiosa obra uma força ainda maior, em especial quando de sua valoração conceitual – nos escritos de Samuel Beckett (1906-1989), encontrou-se uma carta – escrita em 7 de junho de 1937 – direcionada a um amigo alemão de nome Axel Kaun, onde a linguagem assume um significado de não-linguagem, tendo no silêncio um novo ponto de referência.

Vejamos, pois, alguns fragmentos desta carta: Tomara chegue o tempo, graças a Deus que em certas rodas já chegou, em que a linguagem é mais eficientemente empregada quando mal empregada. Como não podemos eliminar a linguagem de uma vez por todas, devemos pelo menos não deixar por fazer nada que possa contribuir para sua desgraça. Cavar nela um buraco atrás do outro, até que aquilo que está à espreita por trás seja isto alguma coisa ou nada comece a atravessar; não consigo imaginar um objetivo mais elevado para um escritor hoje.

O uso desmedido da linguagem tem desses contratempos. Até pela quantidade excessiva de informações, ocasionadas contemporaneamente pela Internet, não temos mais lugar para localizarmos conceitualmente a linguagem. Seu não-lugar é hoje o que de mais evidente se nos mostra.

Por outro lado, quando solicita o não-uso dessa linguagem, o autor está nos colocando uma questão que, cada vez com maior evidência, tornara-se algo essencial. Isso pode ser encontrado no conglomerado de gírias que circulam na Internet, onde não se fala muita coisa, falando demais aquilo que não significa nada.

Beckett não está desconsiderando este tipo de linguagem, está, sim, tentando encontrar uma linguagem que se iguale ao homem. Uma linguagem que diga mais que sua composição tipológica. Este tipo de linguagem, ao contrário daquela típica da Internet, tem o que dizer sem existir. Diferente desta internética onde se diz muito, sem nada para informar.

Quando pede que a linguagem seja mal empregada não está, de modo algum, fazendo dela um mal emprego tipológico como o visto nos bits da Internet, mas um mal emprego epistemológico, dando significações, até então, não recorrentes no universo linguístico humano.

O caminho original, quando redirecionado – e isto tentava fazer Beckett –, tende a ser novo e mais criativo. Deixando de ser original, no sentido teológico, e tornando-se original no sentido filosófico e histórico.

Este mesmo caminho pode ser constatado neste outro fragmento da carta de Beckett: À caminho dessa literatura da despalavra, para mim tão desejável, alguma forma da ironia nominalista poderia ser um estágio necessário. Mas não é suficiente que o jogo perca um pouco de sua sacrossanta seriedade. Ele deveria cessar. Ajamos então como aquele matemático louco(?) que empregava um princípio de mensuração diferente a cada etapa de seu cálculo. Um ataque às palavras em nome da beleza.

Um caminho que tem muito de descaminho e de despalavra, como bem expressa o autor. Com efeito, a partir do momento em que não mais mensuremos este caminho, e esta mesma linguagem, de forma nominalista, nomeando elementos e determinando fatores; aí sim, a partir desse momento teríamos um descaminho mais original, e sem muita explicação. Talvez seja esta não-linguagem a qual Beckett faça referência.

Noutro fragmento, mais um (des)caminho teríamos traçado, e novas informações teríamos acumulado: Ou será que a literatura, solitária, deve permanecer atrasada em seus velhos caminhos preguiçosos que há tanto tempo foram abandonados pela música e pela pintura? Há alguma coisa paralisantemente sagrada na natureza viciosa da palavra que não se encontra nos elementos das outras artes? Há alguma razão pela qual a terrível e arbitrária materialidade da superfície da palavra não seria capaz de ser dissolvida, como pode, por exemplo, a superfície do som, rasgada pelas enormes pausas, da Sétima Sinfonia de Beethoven, de forma que, por páginas a fio, nós não podemos perceber a não ser um caminho de sons suspensos nas alturas vertiginosas, ligando insondáveis abismos de silêncio? Uma resposta faz-se necessária.

Uma resposta que não coloque limites, como o faz as palavras, mas que, realmente, dê respostas a este longo e lento caminho. Um caminho que tenha muito mais de simbologia que propriamente de nominalismo. Símbolos são muito mais que meras letras nominadas, eles têm muito de significações e de re-significações. É como se novos valores linguísticos dessem novas conceituações aos já pisados valores existentes.

Mais que um projeto de futuro, o que se quer com tal proposta é recolocar a linguagem numa local donde ela nunca teria saído: o local das significações e re-signifações humanas. Homens que somos, tentamos colocar peia em nossos devaneios, situação que, diretamente, também afeta a linguagem e sua objetivação de conceitos e nominação de saberes – alguns nem sempre nomináveis, nem tampouco mensuráveis.

A literatura está repleta de obras em que o autor mergulha junto nas atribulações de seus personagens, a ponto de modificar a estrutura da narrativa para acomodá-las.

Um mundo fraturado naturalmente separa em partes. Você não consegue ter uma relação orgânica, natural, com um país ou uma pessoa, por exemplo, se apenas dispõe de uma imagem na televisão. Trata-se de uma versão contemporânea de um velho problema: o mundo sempre nos pareceu fraturado. Nossa mente não está em sintonia com nosso corpo, nossas vidas não têm nenhum elo óbvio com o divino, a consciência dos outros não nos é acessível. A vida está cheia de descontinuidades (Zadie Smith, Folha de São Paulo, 27/05/2006).

Nem sempre um escrevinhador consegue comunicar ou revelar as volúpias literárias que impulsionam a sua pena. Num bom escritor, porém, o prazer do texto, como dizia Barthes, desemboca no prazer da leitura. A frase “uma expressão feliz” descreve uma felicidade literal. Daí a possibilidade de escrever uma obra-prima praticamente do nada, como as famosas crônicas sem enredo: o escritor, como um poeta, limita-se a tocar um instrumento que é ele mesmo (Hugo Estenssoro, As musas se divertem, Primeira Leitura, 51).

quinta-feira, 29 de março de 2012

Dessubjetivação da Razão


Este texto tenta explicar o papel que a razão subjetiva empreendeu sobre o indivíduo, e como seu status cognoscente deixou de ter algum significado – por razão subjetiva, entendemos “razão” do capital.

A razão, senhora absoluta dos saberes ocidentais, desde a passagem de Nietzsche pelos preâmbulos da filosofia, não tem conseguido manter seu antigo status: o de eternidade da coesão sapiencial. Esta ilusão de eternidade, em consequência, acaba atingindo também o indivíduo: ponto de partida para todo e qualquer saber. Embora o grande problema da atualidade seja a instrumentalização dessa razão, e não sua objetivação.

Há aqui, todavia, um despejo do eu – este mesmo que, ao longo de toda a história do ocidente tem tentado se erguer. Aquela morada, há tanto habitada, mostra-nos que está sem inquilino, e é neste momento que começa o grande problema. Poderíamos dizer que a razão instrumental ganhou morada por usucapião.

Nesta consumação irracional da razão, o indivíduo deixa de ser o “objeto” preservado. Preservação passa a ser uma prerrogativa da razão subjetiva, por ela mesma. Sua autopreservação tenta expurgar de seu contexto o papel do eu (ou melhor, do indivíduo em sua reflexão sobre o mundo e sobre si mesmo).

Com efeito, por indivíduo, segundo Max Horkheimer (1976: 139), cabe-nos refletir melhor, dando-lhe novos conceitos. O conceito de indivíduo se transformou. E sua significação requer novos elementos cognoscentes.
Ainda de acordo com Horkheimer:

Quando falamos do indivíduo como uma entidade histórica, não queremos significar simplesmente a existência sensível e espácio-temporal de um membro particular da espécie humana, mas, além disso tudo, a compreensão de sua própria individualidade como um ser humano consciente, inclusive o reconhecimento da sua própria identidade. (1976: 139)

Acima de tudo, o que se quer com essa re-significação é, basicamente, colocar o ser ontológico naquilo que tem de mais primordial. O que quer dizer: dar-lhe (e lhe mostrar) sua real e própria identidade.

O jogo dessubjetivante da razão acaba por tornar-se o grande inimigo do “eu” e sua essência mais legítima.

Quer-se, com esta inflexão, retomar a autonomia do eu, colocando-o defronte sua própria essência. Se essência legítima nos dá margem para pensarmos num novo caminho da “razão”, quer-se, principalmente, oferecer ao indivíduo um local que jamais deveria ter saído de seus meandros – e demais circunferências.

A percepção de que a identidade do eu tomou um caminho equivocado, quando direcionado por esta razão – também direcionada –, dá-nos a clareza de que identidade, realmente, não mais há. Quer-se, apenas, oferecer-te esta identidade, perdida pelo eu, novamente.

Não há como se esquecer que, afirmar o “eu” é a mais elementar afirmação de identidade deste “sujeito”. Apelos cognoscentes, que redirecionem este caminho, oferecendo ao eu sua real legitimidade, nada mais é que repensar este caminho empreendido pela razão – que em breve se desnudará mais claramente –; o qual ofereceu ao “eu” uma outra identidade que não a sua. E é este caminho torto o principal erro da razão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HEIDEGGER, Martin (1990). Identidad y Diferencia. Barcelona: Anthropos.

HORKHEIMER, Max (1976). Eclipse da Razão, tradução de Sebastião Uchoa Leite. Rio de Janeiro: Editorial Labor do Brasil.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm (2000). Crepúsculo dos Ídolos: ou como Filosofar com o Martelo, tradução de Marco Antônio Casa Nova. Rio de Janeiro: Relume Dumará.