Edilson
Antônio Alves
Á medida que buscamos as origens, vamos nos tornando
caranguejos. O historiador olha para trás; até que finalmente também acredita
para trás.
Friedrich
Nietzsche – Crepúsculo dos Ídolos
Em sua segunda intempestiva,
Da Utilidade e dos Inconvenientes da História para a Vida, obra que data
do ano de 1874, Nietzsche tenta traçar uma História da Filosofia, no entanto,
despreocupada com a finalidade. Esta despreocupação se mostra na forma como o
filósofo apresenta seu método (que, aliás, ao pé da letra, não tem método algum). O
grande questionamento que faz diz respeito à forma como os homens vêm o passado,
subordinando-se ao mesmo. Esta situação de subordinança é, para Nietzsche, sintoma
de degenerescência, chamado pelo autor de Moral de Rebanho.
Quando se remete ao
passado, tenta encontrar uma forma de ver este passado sem que o mesmo pese
demais sobre nossas costas e, para isso, busca o exemplo da criança que, em sua
inocência, esquecer-se-á do acontecido, e não preocupar-se-á com o futuro.
Parábola que retoma em uma obra posterior (Za; 200: I,
Das Três Transformações) e que, imagino, tem a ver com uma metodologia
filosófica para a educação, como também esta obra a qual se faz referência
neste ensaio.
Como se percebe, o esquecimento passa a ser ponto de partida para a
filosofia nietzscheana, principalmente quando este esquecimento tem a ver com a
Tradição – passado impositor e que não permite o desenvolvimento do homem
enquanto espírito livre – e sua ferocidade em defender o passado.
Amparado nestes pressupostos Nietzsche busca encontrar a real
‘utilidade’ da História, e não uma farsa que desdobre sobre o homem parâmetros
valorativos que não lhe competem, como estava havendo na Alemanha de seu tempo
e o despotismo esclarecido do Oto Von Bismarch, como apresente Nietzsche ainda
no prefácio de sua obra:
Contamos, efetivamente, expor nestas
páginas por que razão devemos abominar, segundo a palavra de Goethe, o ensino
que não vivifica, o saber que amolece a actividade, a história encarada como
precioso supérfluo e fluxo do conhecimento – falta-nos o necessário, e o
supérfluo é inimigo do necessário. Decerto que temos necessidade da história,
mas temos necessidade dela de uma maneira diferente da do ocioso requintado nos
jardins do saber, mesmo que ele olhe altivamente para as nossas rudes e antipáticas
necessidades. (Co.Ext.II; 1976: prefácio)
Para Nietzsche a História precisa ser repensada como uma necessidade
para a vida e para a ação, não mais como mero enfeite de um ocioso
requintado nos jardins do saber. E, para que atinja esta estrutura, deveria
se ater mais em ação e contraprova ao que está posto, e menos em reforçar a
Tradição e imposição de um statu quo.
O abuso da História e sua sobrevalorização provocam a degenerescência da
vida, encarcerando os homens cada vez mais em um rebanho acéfalo e obediente.
Nesse sentido, penso que a História deveria ter o papel de subversão e
revolução, algo que, amparado em fatos de outrora, nos permita repensar um
tempo e contrapor uma ideologia. Os velhos ídolos do passado precisam ser
quebrados a marteladas (CI; 2000), porém, que não coloquemos outros no
lugar; faz-se necessário manter o trono vazio.
A partir do momento em que o passado for confrontado, decerto, a vontade
de rebanho deixará de existir, dando à vontade seu real caráter. “Mas o
homem também se admira de si próprio, de não poder aprender a esquecer e de
ficar permanentemente amarrado ao passado. Por mais longe que vá, por mais
depressa que corra, as suas algemas seguem-no”. (Co.Ext.II; 1976: §1)
Caso o homem se esqueça um pouco do passado enquanto amarra, talvez o
conhecimento teria um outro caminho. Dessa forma, o ensino do esquecimento
estaria relacionado à formação do espírito, de caráter, de julgamento preciso,
de imaginação e à descoberta de valores, bem distintos dos atuais.
Acresce-se a isso a questão do rebanho e como este homem, que ainda se encontra
algemado ao passado, sente-se feliz com referida situação. Mais adiante
Nietzsche reforça:
O homem defende-se do peso progressivamente mais
pesado do passado, que o esmaga ou o desvia, que torna pesada a sua caminhada
como um invisível fardo de trevas, que ele pode negar por vezes, e que nega com
gosto no contacto com os seus semelhantes, para despertar a sua inveja. Por
isso é que se emociona ao ver o rebanho a pastar como se se tratasse da
reminiscência de um paraíso perdido ou, numa proximidade ainda mais familiar, a
criança que não tem qualquer passado a recusar e que brinca, na sua feliz cegueira,
entre as barreiras do passado e do futuro. (Co.Ext.II; 1973: § 1)
E aqui retomamos o papel
da criança nesta transvaloração dos valores, com um espírito sem-medo para com
o passado, até mesmo porque há um esquecimento, onde o que acaba interessando é
a ação de um tempo presente, com re-configurações futuras e re-visão passada.
Os sintomas de nossa época
podem trazer clareza aos olhos, e se estes sintomas se evidenciam de forma
deturpada, como é o caso da a-criticidade e do arrebanhamento dos homens, é
sinal de que a mudança, ou mesmo re-valoração, poderá ser dolorosa. Talvez o
esquecimento teria um caráter de emplasto – talvez de cura –, uma vez que o
homem precisa encontrar alguma cura para tais sintomas.
Ao negarmos nossos valores
mais primitivos apenas por estarmos em estado de civilidade, é sinal de
obediência e subordinação a este estado o qual, segundo Rousseau (1997), deixa os homens doentes. Pode parecer uma visão romântica,
contudo, a partir do instante em que o homem consegue seu arrebatamento,
repensando seus valores, pode ser que nossa comoção, ao ver o rebanho pastar,
acabe sendo meramente a comoção para com os miseráveis, jamais uma vontade de
voltarmos a este estágio.
Esta visão que Nietzsche traz, gravada a ira e cólera, é muito antiga;
do tempo em que virtude era sinal de força e não de degenerescência, como
tornou-se após a efetivação da sociedade socrático-cristã. Como pode ser visto,
a noção valorativa que aqui se apresenta é algo da Antigüidade: talvez aquilo
que Heráclito chamou de estado de guerra de uma multiplicidade, surgida na
unidade do Logos.
Em face disso, o vigor pretendido por Nietzsche, bem como se mostra na
vontade humana, também pode ser remetido à História: movimento constante e processual
que joga o homem em ambientes e que também pode submetê-lo ao tempo da Tradição
e da subordinança.
O homem, quando não consegue impor este vigor à obra de seu tempo, na
comparação de Nietzsche, é como um animal de uma vida não-histórica.
Quando se pensa que este seria o homem ideal, de fato, o é para a Tradição. Com
efeito, a existência do homem deveria ser pensada como algo imperfeito, e que
não há de se completar jamais. Eis, quiçá, o maior pressuposto para se viver
extemporâneo, encarando o conhecimento como um acúmulo aberto e não um acúmulo
fechado como o é na História que Nietzsche questiona.
Vejamos então como se faz este homem, segundo o filósofo, e como deveria
ser:
Quando, por fim, a morte traz o
esquecimento desejado, rouba-nos simultaneamente o presente e a existência e
põe o selo definitivo sobre a verdade, que ser não passa de um ter sido
ininterrupto, uma coisa que vive de se negar e de se consumir, de se
contradizer a si própria. (Co.Ext.II; 1973: § 1)
Este homem que se quer em
rebanho é justamente o homem do negar-se a sua vontade e do consumir-se a si
mesmo. Chega então o selo da morte, que se há de dizer daquilo que tal homem
deveria ter feito? Há de se dizer que sua vida não existira, que sua vontade
não acontecera e que é justamente o oposto do homem que usa de seu esquecimento
para ousar repensar o passado e toda a História da Filosofia. Na obra em
específico o grande questionamento de Nietzsche é sobre estes homens; os velhos
moralistas, guardiões da sacralidade do Tempo. Senhores de ofício e gosto
requintados e que, por serem assim, se negam e se consomem em detrimento do statu
quo epistemológico.
Nietzsche esboça encontrar
um homem o qual, baseado em seu cinismo, não bajula, ao contrário, está sempre
disposto a ironizar o passado, questionar a História e propor novos valores.
Portanto, os valores antigos precisam ser transvalorados, necessita-se, para
isso, de um homem o qual tenha espírito livre e vontade de potência;
mostrando-se sempre que é capaz. Imagina-se que referido homem tenha a
possibilidade de esquecer, ou mesmo a faculdade de sentir-se momentaneamente fora
da história, em suspenso, até mesmo com a intenção de compreendê-la com um
outro olhar e novos valores.
Todo ato de ação, nesse
contexto, requer que tal homem se utilize do esquecimento e, como verdadeiro
discípulo de Heráclito, se insira no devir e guerreie com o mesmo, contrapondo
valores e fazendo explodir um caos na unidade, mostrando que, a partir do Uno,
possa explodir um universo estelar, com uma estrela dançante. Este homem não se
deixa perder na torrente do devir, mas se deixa envolver na luz e na
obscuridade deste acontecimento sem, jamais, abrir mão da contradição; jogar
com o jogo dos contrários é o único meio de desobrigar a Tradição de seu posto
de única dona da verdade.
Para que se torne o
coveiro do passado, conforme Nietzsche, seria necessário conhecer a medida
exata da foca plástica de um homem, de uma nação, de uma civilização.
Aqui temos, portanto, o conhecimento do homem baseado na faculdade de crescer
por si mesmo, transformando e assimilando o passado e o heterogêneo, fazendo
com que as feridas se fechem – porém, sempre deixando a cicatriz –, reparando
perdas e reconstruindo formas que foram destruídas pela História. “Quanto
mais o temperamento do homem está fortemente enraizado nele, tanto melhor saberá
apropriar-se de largas porções do passado, ou dominá-las”. (Co.Ext.II; 1973: § 1)
Cabe aqui a intervenção no passado, não com um instrumento qualquer, mas
com o vigor de uma transformação conceitual, de um caos interior que parteje
uma estrela dançarina, assim como nos apresenta Nietzsche em Humano,
Demasiado Humano. Se o passado já existe não significa que esteja fechado,
caso o encontre fechado há que se quebrá-lo, pois: o sentido histórico e a
sua negação são igualmente necessários à saúde de um indivíduo, de uma nação e
de uma civilização.
Assim, a História deve ser
pensada não como um emplasto apenas, mas como uma cura. Cura esta somente
possível quando a força plástica de um homem entra em cena, não quando
tememos este passado (talvez por sua pretensa autoridade). A autoridade do
passado precisa ser questionada, apenas como tal poderíamos ter uma
transvaloração de valores. Trata-se, pois, de saber esquecer o tempo, como de
saber recordar o tempo, cada qual em seu momento. Somente um espírito vigoroso
nos adverte a saber o momento certo de ver as coisas historicamente. E, para
tal, o sentido histórico nem sempre é o melhor caminho para evitarmos o
definhamento e a degenerescência. Se falta sentido histórico não deve faltar força
plástica, pois é ela a responsável por determinar a coerência de nossos
atos. Aquilo que é grande e humano nem sempre é ‘ético’ e histórico!
Para que compreendamos
melhor a colocação acima:
É, pois, pela faculdade que ele [homem] tem de fazer servir o passado à
vida e de refazer a história com o passado, que o homem se torna homem; mas um
excesso de história destrói o homem e ele não teria começado a pensar, sem esta
nebulosa que envolve a vida, antes da história. (Co.Ext.II;
1973: § 1)
Como se vê, nem sempre os
valores que possuímos dão conta de entender o mundo onde habitamos. Quando de
uma situação tal como essa, o melhor a se fazer é repensar os valores e, se
necessário, recriarmos verdades, nem que para isso usemos de uma etimologia
totalmente nova. O âmbito do conhecimento não pode ser sistematizado, nem
tampouco seccionado. Existem fenômenos epistemológicos os quais não competem à
consciência humana, daí a necessidade de se expandir para compreender (jamais sistematizar).
A nossa memória, ao girar
dentro do mesmo círculo, se cansa. O incrível é que não vemos isso, a não ser
num estágio de assombro perante certas situações inabituais. Caso continuemos
com a memória girando ao redor do mesmo círculo ela tornar-se-á excessivamente
fraca, incapaz de ultrapassar os limites da nossa razão. É neste momento que
deve entrar a sem-razão – non-sense – do conhecimento e seu salto no
escuro.
O conhecimento, quando do non-sense,
deve ser compreendido fora de qualquer pensamento histórico-temporal, por isso
a necessidade em ultrapassar a História, repropondo-a. Há que se pensar o
resultado possível de cogitações históricas.
Para Nietzsche, todo o
passado merece condenação, uma vez que nele se misturaram toda a fraqueza e
força do homem. A partir do momento em que o submetemos a um critério rigoroso,
tornamo-lo crítico; instante em que o homem aplica sua força sobre o mesmo e se
debruça sobre hipóteses nunca dantes pensadas. Porque, uma vez sendo frutos das
gerações passadas, também somos frutos dos seus desvios e paixões, como dos
seus erros e até mesmo de seus crimes, daí a importância em haver um julgamento
que zele pela clareza e pela verossimilhança. Podemos condenar estes erros,
achando que assim estaríamos isentos deles, todavia tal situação não impede
nossa origem nestes erros. A origem de nossos valores e hábitos, além de nossas
fraquezas e erros. E, de acordo com Nietzsche, na melhor das hipóteses,
chegaremos a um conflito entre a nossa natureza herdada e hereditária e o nosso
conhecimento, a uma luta entre uma nova e estrita disciplina e o que é inato em
nós ou nos foi inculcado pela educação. (Co.Ext.II;
1974: § 3)
A partir do momento em que alvejamos este passado de erro é como se
estivéssemos implantando uma segunda natureza, que farão morrer a nossa
primeira natureza. É como se poderíamos conseguir, posteriormente, um passado
que poderia ter sido, e não o que temos enquanto instrumento de conhecimento.
Este novo passado, talvez menos deturpado poderia ser utilizado como mecanismo
de mudança futura, desde os valores mais básicos do homem até sua relação com a
sociedade e seu estado civil. Contudo, isto poderia nos jogar em um erro maior,
pois a segunda natureza é sempre mais débil que a primeira e bem mais
corruptível, claro que toda tentativa é perigosa e, indo mais além, muito mais
perigoso é não perscrutar este passado e, quiçá, não repensar esta primeira
natureza (a mesma que seguimos junto a um passado bajulador e nem um pouco
crítico, ou até passível de crítica). A História crítica deve ser posta a
serviço da vida e é justamente o contrário o que, atualmente, se faz.
O homem que quer a verdade a quer não:
Não como um conhecimento frio e estéril,
mas como verdade que julga, ordena e pune, como uma verdade que não é
propriedade egoísta do indivíduo, mas direito sagrado de deslocar os limites de
todas as propriedades egoístas, uma verdade, em suma, que é julgamento final e
que, em nenhum caso, é presa fortuita e prazer de um caçador isolado. (Co.Ext.II;
1974: § 6)
Na medida em que a verdade
não for mais presa de um tempo e de uma História equivocada, assim como a que
temos, ela terá mais fidedignidade para com suas palavras, dando novas margens
e novos valores a este que o é o mundo mais falso e ilusório de todos. Vivemos
sob máscaras, mas ao invés de às pensarmos como algo positivo, o qual temos
controle, a vivemos como algo pejorativo e prejudicial à sabedoria e, em específico,
à verdade na Filosofia.
Temos que nos rebelar
contra o hábito inveterado de repetir, aprender e imitar; há que se buscar o
novo no novo e não o novo no que está aí e se faz passar por novo. A cultura
deve ser pensada como algo mais, além do mero ornamento da vida que cultuamos.
Esta maneira que temos de disfarçar a verdade tem deixado as verdades
escondidas e obscurecidas pelo clarão da História; qualquer ornamento esconde
aquilo que enfeita. Quando arrancarmos referidos ornamentos, aí sim, teríamos
uma revolução, onde o conhecimento teria valor, de fato, de sabedoria e verossimilhança,
para com cada um de nós e para com nossos espíritos inquietos.
Enfim, a cultura deve ser
pensada sem distinção entre o interior e o exterior, sem dissimulação e sem
convenção, cultura concebida como a união da vida e do pensamento, da aparência
e do querer. Todo progresso em sinceridade deve preparar e favorecer a cultura autêntica,
mesmo que a sinceridade prejudique aqueles que gozem do status de classe culta,
ou mesmo elite intelectual de um povo (Co.Ext.II;
1973: § 10). E a cultura em progresso é justamente o
que Nietzsche concebe como sendo a História que precisa ser repensada, dando
margem para que o conhecimento tenha validade extemporânea, mantendo-o aquém
das dissimulações de uma Era em específica.
Referência Bibliográfica
NIETZSCHE, F.W.
(1973). Considerações Intempestivas. Lisboa: Editorial Presença.
NIETZSCHE, F.W.
(2000). Sobre la utilidad y los Perjuicios de la
Historia para la Vida. Madrid: Editorial EDAF.
NIETZSCHE, F.W.
(2000). Crepúsculo dos Ídolos, ou como filosofar com o martelo. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
NIETZSCHE, F.W.
(2000). Assim Falou Zaratustra, um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Martin Claret.
ROUSSEAU, J.J.
(1997). Discurso Sobre a Desigualdade dos Homens. São Paulo: Abril Cultural.
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