O conto O
Escrivão Coimbra foi escrito por Machado de Assis no
período de transição entre o Império e a
República e isso fica bem patente logo no início da
obra. “Assim viveu os últimos anos do império e os
primeiros da república, sem já crer em nenhum dos dois
regimes. Não cria em nada. A própria justiça em
que era oficial, não tinha a sua fé; parecia-lhe uma
instituição feita para conciliar ou perpetuar os
desacordos humanos, mas por diversos e contrários caminhos,
ora à direita, ora à esquerda.”
Imagina-se que o mesmo tenha sido publicado em jornal, lá
pelos idos de 1899, bem próximo à virada do século.
Foi publicado
originalmente no Almanaque Brasileiro Garnier em 1906 e
republicado em 1938 no livro Relíquias de Casa Velha,
em edição capitaneada pela Edições W. M.
Jackson do Rio de Janeiro.
O conto traz à tona o
personagem Bernardo Coimbra, um escrivão do cartório
local. Um homem de profunda fé, até a morte de sua
esposa, mas, principalmente por volta dos cinquenta anos e por conta
de certas leitura, acabou tornando-se mais incrédulo que um
ateu, chegando a fazer pilhéria com a Igreja Católica.
Um aparte
histórico; não podemos nos esquecer que é deste
período que o Positivismo de Auguste Comte chega ao Brasil,
tornando-se palavra-chave da nascente República Brasileira,
que tem em seu brasão a máxima Ordem e Progresso,
um dos ícones do Positivismo.
Movimento
europeu, surgido na França, que visava expurgar a religião
e todas e quaisquer crenças dos quehaceres
comportamentais e intelectuais do século XX. Uma ciência
que se explicava por si só e que buscava a mais profunda
certeza da racionalidade. Mostrando que todos, e quaisquer outros tipos
de conhecimento, que não tinham a alcunha da razão,
estavam errados e prontamente vinculados à falibilidade humana
das crenças e da fé.
Pois bem, voltando ao conto. Até
perto deste período (antes dos cinquenta anos) a fé do
escrivão Coimbra o levou a se tonar sócio fundador da
Irmandade de São Bernardo. Construíram uma igreja e uma
escola como alento para os menos crentes e menos afortunados. Fé
essa que, pelo desenrolar do conto, será parte central da
trama.
Aos sessenta anos passa a jogar na
loteria. Neste primeiro momento este jogo não era tão
constante, o que significa que estamos no início de uma era de
vícios, como se verá. Assim, ao passar do tempo, de
jogos esparsos nosso escrivão passou a jogar seis vezes por
semana, folgando apenas aos domingos... talvez resquício da fé
a São Bernardo, visto que o domingo é considerado dia
muito sagrado para os católicos, e em se falando de uma
sociedade extremamente voltada à fé, era de se
compreender tal comportamento.
Em um primeiro momento Coimbra
usava o subterfúgio dos pequenos ganhos para alimentar seu
vício, coisa de trinta a cinquenta mil Réis. Situação
que o afastava ainda mais de sua Irmandade, a ponto de a mesma, junto
com a crença católica, servir de pilhéria para
com as devotas e padres. Com o passar do tempo, nem mesmo deste
argumento ele se utilizava mais. O jogo passou a ser uma obsessão.
Até que pelos idos do Natal
de 1898, em que correria a última loteria do ano, chamado
pelos cambistas de loteria-monstro, ele resolveu fazer uma última
aposta, de fato, mesmo que a contrapelo do que pedia seu amigo
Amaral. E por coincidência, é deste período que
Coimbra conhece um tal de Guimarães em seu local de trabalho,
o cartório da comarca, ganhador de uma loteria com 200 contos
de Réis (o prêmio de Natal correria com o valor de 500
contos de Réis) e que surgiu para o pobre Coimbra como um
aviso, apenas não se sabia quem havia mandado tal aviso.
Ademais, e como reflexo de
referido aviso, Coimbra resolve voltar a visitar sua velha Irmandade
e a igreja por ela construída, chegando a prometer que, caso
ganhasse, doaria 100 contos de Réis à pequena escola
construída junto com a Igreja. Prosa completa, após
fatídica promessa o velho Coimbra sagra-se o mais novo
vencedor da loteria de 500 contos de Réis, vindo a falecer
quatro meses depois, em fins de abril, no governo do presidente
Campos Sales, após testemunhar o casamento do amigo Amaral,
outro escrevente de seu cartório.
Machado de
Assis assim termina seu conto: “No fim de abril, casara o
escrevente Amaral, servindo-lhe Coimbra de testemunha, e morrendo na
volta, como ficou dito atrás. O enterro que a irmandade lhe
fez e o túmulo que lhe mandou levantar no cemitério de
S. Francisco Xavier corresponderam aos benefícios que lhe
devia. A escola tem hoje mais de cem alunos e os cem contos dados
pelo escrivão receberam a denominação de
patrimônio Coimbra.”
Mais uma das mórbidas
lições de moral do velho Machado, deixada para o final.
Onde já se viu, um velho de sessenta anos, perdendo a fé
pela Santa Madre Igreja e ainda se enfurnando no vício do
jogo, o mais pecaminoso de todos!?
Coimbra precisava voltar ao ventre
da Mãe para ser novamente abençoado. O mais
interessante é que a benção veio com a
efetivação do prêmio, o fim do vício e o
fim da própria vida, logo, a vida eterna e a benfeitoria
terrena.