sábado, 31 de março de 2012

Desistorização!


Se antes tinha-se a eternidade como pretensão prepotente, há que se pensar uma outra prerrogativa à razão. Pois, a razão deveria dar valia, justamente, às pretensões do indivíduo, não o contrário, como havia detectado Horkheimer em meados da década de 40, do século passado. Noutra direção, se verá que esta razão será, sim, uma pretensão de certo indivíduo, ou mesmo de um grupo em si, pleno de sua “vocação”.
 
O grande problema que Horkheimer tenta resolver, imagino eu, seria o de mumificação conceitual sub specie aeterni da razão. Vejamos, pois, qual o respaldo desta afirmação:

Os senhores me perguntam o que são todas as idiossincrasias dos filósofos?... Por exemplo, sua falta de sentido histórico [que aqui, e em Horkheimer é o do capital, como se verá], seu ódio contra a representação mesma do vir-a-ser, seu egipcismo. Eles acreditam que desistoricizar uma coisa, torná-la uma sub specie aeterni, construir a partir dela uma múmia, é uma forma de honrá-la. Tudo o que os filósofos tiveram nas mãos nos últimos milênios foram múmias conceituais; nada de efetivamente vital veio de suas mãos. Eles matam, eles empalham, quando adoram, esses senhores idólatras de conceitos. (NIETZSCHE, 2000: A”razão” na Filosofia, § 1, CI)

Pode parecer um contrassenso a comparação de um texto do século XIX à tese levantada por Horkheimer na metade do século XX, contudo, o que mais sobressai aos olhos é, especialmente, a semelhança de afirmações.

Enquanto Horkheimer disserta acerca do “eclipse da razão” e, consequentemente, do ocaso do indivíduo ontologicamente identitário, Nietzsche tece críticas ácidas à razão, tentando dar ao indivíduo um outro parâmetro reflexivo.

Parece que Horkheimer mostra o caminho torto desta razão pós-revolução industrial, por outro lado, Nietzsche – e sua radical crítica ao racionalismo cartesiano – nos faz propor uma reflexão inflexiva. E nesta inflexão, um caminho totalmente anti-moderno se faz transparecer, por intermédio da pena iracunda de Nietzsche.

Aquilo que, num primeiro momento, pareceu uma blasfêmia conceitual, acaba por nos mostrar uma outra direção; conseqüência radical do caminho empreendido pela razão. Consequência essa que, quase cem anos antes, mostra uma situação (este caminho) já toda torta e equivocada.

É neste momento que vem o flash: não seria, também, um eclipse do indivíduo? Pergunta que queda aberta.

Pois bem, a preocupação de Horkheimer está em soerguer, dos escombros da razão, um indivíduo que busca por um retorno à sua identidade – fica, então, a seguinte questão: não seria também um anelo de inflexão?

Essa espécie de pessimismo para com um futuro, deveras incerto, faz doer profundamente na alma deste indivíduo. Ao menos na alma daquele que tenta compreender qual é, realmente, este caminho que se mostrara eclipsado por uma variedade de fatores “materiais”.

Um pessimismo que clama por uma consciência, segundo Horkheimer, há tempo perdida. Aquela mesma consciência que ele tenta compreender na incerteza identitária do homem em seu elemento mais imberbe: sua entrada na “civilização”.

É do mesmo modo mais fraca [a afirmação de identidade] entre os primitivos do que entre os civilizados; o aborígene, na verdade, que só há pouco tempo foi exposto à dinâmica da civilização ocidental, muitas vezes parece incerto de sua identidade. Vivendo das gratificações do momento, ele parece ter uma consciência muito vaga de que como indivíduo deve preparar-se para enfrentar os riscos do futuro. Esse retardamento da compreensão, nem é preciso dizer, em grande parte é responsável pela crença muito difundida de que esses povos são preguiçosos ou de que são mentirosos – crítica esta que presumiria que os acusados tivessem o próprio senso de identidade que lhes falta. (HORKHEIMER, 1976: 140)

Longe de fazer disso uma análise antropológica, o que Horkheimer deixa transparecer seria um possível retorno a um ambiente ainda mais hostil que o – seu – atual (século XX, em sua metade). Hostilidade essa surgida de uma reflexão que tentasse acompanhar o homem, e sua história de humanidade.

Parece que este homem pensado por Horkheimer – o homem seu contemporâneo –, em uma comparação histórico-antropológica, está bem próximo daquele primitivo que ainda não “acessou” a “civilização”. Uma busca de identidade que, de uma comparação ingênua, se assemelha àquela busca antiga e “primitiva” dos homens – e percebe-se esta citação quando da palavra aborígene – por uma identidade – devido seu estado de “retardo social” –, ainda desconhecida e nebulosa. A afirmação que podemos fazer é a de que há, sim, uma identidade, entretanto, uma identidade vinda de fora – do capital – e posta sobre este homem; que parece se assemelhar ao “aborígene primitivo” em sua fragilidade identitária.

Comparação que se equipara ao homem contemporâneo de Horkheimer. Imagina-se que seu contemporâneo esteja perdido. E numa mesma busca que a dos “aborígenes”. Esta desintegração identitária, pelo que parece, seria uma consequência desta razão, então criticada por Horkheimer. E que se encontra no caminho errado.

Ainda, insistindo na comparação com Nietzsche, o que vemos é uma desincompatibilização do indivíduo, onde sentidos, considerados por este último como essenciais para a afirmação da identidade, outrora legítimos, tornam-se arremedos de razão, sendo direcionados pelo mesmo caminho torto que a razão optara. É como se o testemunho dos sentidos fosse falsificado (NIETZSCHE, CI, 2000: A “razão” na Filosofia, §2).

A ciência, com isso, passa a ser o aceite da não-utilização destes sentidos. A convenção de signos nada mais é que a aceitação deste caminho torto, donde o indivíduo, alijado de seus sentidos, perde sua identidade ontológica, deixando à razão o papel de dar-lhe uma outra identidade.

Colocando o social como outro elemento para a afirmação deste caminho torto, Horkheimer coloca os sujeitos submissos – por sua condição econômica – como sendo tolhidos de sua individualidade. Sendo, então, imitadores de uma condição social concernente a seus “superiores”; que, no caso específico, não tem mais classes sociais. Acabaram-se todos se tornando submissos e alienados.

Essa imitação viria se afirmando quando da ruidosa propaganda por apelos educacionais que não competem a este “substrato” social. Exortam, com isso, o cultivo a uma personalidade que, a uma primeira vista, lhes pareceria inevitavelmente condescendente (HORKHEIMER, 1976: 140). Haveria uma satisfação ilusória na qual eles – os “inferiores” – acalentariam um estado de ser que não lhes seja pertinente. É como se se criasse uma identidade torta, donde o anelo passa a ser o anelo alheio. 

A existência destes indivíduos se daria por uma satisfação imediata, desejo proporcionado pela razão do capital e suas nuances materiais.

Quanto mais intensa é a preocupação do indivíduo com o poder sobre as coisas, mais as coisas o dominarão, mais lhe faltarão os traços individuais genuínos, e mais a sua mente se transformará num autômato da razão formalizada. (HORKHEIMER, 1976: 141)

Admite-se que a noção de individualidade ainda estaria por ser descrita e compreendida. Pensa-se, com isso, que a formalidade da razão ganha corpo de acordo com a elite que, dos píncaros, traça suas condições de existência e identidade.

Um pessimismo presencial que não pensa o futuro de outra forma. Há apenas a afirmação de que esta “força” continuará ditando seus valores, dando ao indivíduo percepções e sentidos que não lhe dizem respeito. Acalenta-se algo que, num futuro não tão distante, eclipsará ainda mais o indivíduo e sua razão ontológico-identitária.

Este antagonismo que surge, do indivíduo com sua comunidade, dá mais vazão a este futuro obscuro. Há portanto a afirmação do conflito entre o ego e o mundo. Aquilo que o mundo oferece, além de não chegar a todos, bestifica ainda mais o ego. O arrebanhamento que surge de então distancia este indivíduo de sua identidade. Afirma-se a identidade do outro, colocando o eu dentro de um torvelinho de desincompatibilização, em que a identidade, cada vez com maior frequência, se circunscreve num ambiente hostil.

A derrota, neste ambiente hostil, e seu possível sacrifício, dão mais força à vontade de superar o statu quo, mesmo sabendo da quase total impossibilidade de superação – em poucos casos –, ou se inteirar ao grupo.

Pode-se dizer que a vida do herói não é tanto uma manifestação de individualidade quanto um prelúdio ao seu nascimento, através do casamento entre a autopreservação e o auto-sacrifício. (HORKHEIMER, 1976: 141)

Esta autopreservação nada mais é que o subjugar-se ao grupo. Há aqui uma deturpação do conceito de heroísmo. Herói passa a ser aquele que mutila sua identidade, colocando nos sulcos, abertos por esta mutilação, pedaços de um tecido estranho. Como um câncer silencioso, o organismo se auto-mutila, padecendo devagar e com chagas; nem sempre, tão escancaradas.

Por mais que haja a facilitação de um equilíbrio entre o Estado e seus membros, cria-se uma liberdade do governante. Todos os membros, ademais, se deixam perecer – principalmente sua liberdade individual – em detrimento de um grupo dominante, que nem mesmo tem controle da situação, pois já se dessubjetivaram também. A liberdade individual que floresce é a do burguês e seu desejo consumista. Há os que consomem, e os que querem consumir; não mais o que se rebela.

O antagonismo entre a individualidade e as condições sociais de sua existência é um elemento essencial desta nova individualidade (HORKHEIMER, 1976: 142). Em contrapartida, este antagonismo passa a ser suplantado por um desejo consciente dos indivíduos, querendo se adaptarem a esta nova realidade que lhes fora incutida por meio do sacrifício.

O câncer, com isso, ganha um caráter de pandemia. Apenas sobrevive aquele que o organismo melhor se adapta. Seres mutantes ganham força, e o câncer passa a ser a própria existência desses indivíduos.

A crise do indivíduo, em poucas palavras, estaria consolidada pela confirmação desta idéia cancerígena. Há aqueles que, embora se adaptem, carregam marcas fortes e abrasivas. Tornam-se, então, ponto de fuga – embora em dor – de indivíduos cada vez menos identitários.

Há a consolidação de uma identidade de oprimido. Um escravo que reconhece seus trapos e a eles se veste. Marcas profundas marcam toda a vida. O valor de cada ser se afirma à luz de uma teologia preexistente. (HORKHEIMER, 1976: 143)

Os trapos que vestem estes homens são o próprio trauma de sua existência. Uma existência que se afirma de uma negação constante. Por indivíduo entendemos, tão-somente, a patologia de um alienado.

A razão que se afirma, ao mesmo tempo, reforça seu eclipse. Em especial quando tem nos indivíduos almas, a purgar erros identitários.

Uma noção que para Horkheimer terá dois pontos, não muito em comum, de referenciação. Seriam eles: 1) a transição da razão objetiva, esta mesma que está externa ao indivíduo, para a razão subjetiva, o que inaugura um processo de constante intromissão da razão externa – a do Estado burguês – no sujeito e 2) a idéia de que a doutrina do processo essencializaria diretamente o ideal de dominação que daí deriva, colocando o sujeito como objeto essencial para este progresso sem, no entanto, levar em consideração seu anseio ou não. Progresso esse que não levaria a cabo a contradição que é inerente ao sujeito, senão uma harmonia – forçada, sabemos – estática e não contraditória.

E é neste momento que o erro da razão do capital reforça ainda mais seu caminho torto:

A circunstância de que o cego desenvolvimento da tecnologia reforça a opressão e exploração social ameaça a cada passo transformar o progresso em seu oposto, o barbarismo completo.

Tanto a ontologia estática quanto a doutrina do progresso – ou seja, as formas objetivistas e subjetivistas de filosofia – esquecem o homem
. (HORKHEIMER, 1976: 145)

Circunstâncias que mostram apenas um fim possível: a total desimcompatibilização do indivíduo com sua identidade, e o prolixo e constante estado cancerígeno dos que se “adaptam” a esta nova razão social.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Despalavra... Descaminho! Um Caminho...




Entender o significado dos textos, da comunicação deixado por outrem, sempre acompanhou a curiosidade humana. Ao longo dos tempos, os homens criaram técnicas e métodos para desvendar a polissemia dos discursos. Eis algumas questões sempre atuais que atravessaram o tempo em busca do discernimento do sentido: como caracterizar o sentido de um discurso? Quais são os critérios para tal investida no interior de um texto? O sentido se revela pelo que é dito ou pela maneira de dizer? Quais aspectos extra-texto que poderemos levantar como variáveis para a construção do sentido de um discurso?

Para Roland Barthes – escritor, semiólogo e crítico literário – nascido em Cherbourg, na Normandia, no ano de 1915, o significado das coisas que o mundo oferece, por meio de suas mais variadas linguagens, seria a representação psíquica de uma "coisa" e não a "coisa" em si.

O significado de uma imagem é sua representação gráfica aos olhos de quem a está observando, e de seu conteúdo se inteirando. O significante materializaria a figura do significado (a figura propriamente dita) com seu significado segmentado e entendido de várias formas, segundo as diferenças culturais de cada leitor ou observador.

Acima de tudo, porquanto, uma tradição literária implica um senso histórico ativo do passado, vivo no presente e moldando esse presente.

Dessa forma, parece existir uma espécie de tempo literário – ou mesmo gênero literário – encontrado entre o ensaio, o tratado e o discurso literário e que, ao mesmo tempo, não cabe em nenhum destes parâmetros.

Fora, também, a questão do hipertexto e da Internet, com sua explícita gama de informações livres, e das mais variadas (nem sempre confiáveis, mas intercambiáveis do ponto de vista da construção de determinado discurso).

Este mesmo tempo que outrora fora pensado por Marcel Proust (1871-1922) dentro de um parâmetro mais literário e menos epistemológico, e que acaba sendo resgatado por Barthes com um caráter mais acadêmico – e, ao mesmo tempo, debruçado fora do teor terrificante dos muros da Academia –, mais recentemente, e, no Brasil, pelo professor Evando Nascimento, da Universidade Federal Fluminense.

E é com base na obra de Roland Barthes, e do estudioso de tecnologias vinculadas à Internet, o francês Jean Baudrillard, que se tentará pensar este transgênero literário dentro dos parâmetros da Internet, e sua intensa liberdade de expressão.

Expressa nos mais variados assuntos, nas mais variadas páginas pessoais – os blogues, por exemplo – e em ferramentas como o Universia e o Wikipedia, que vêm, justamente, com a tentativa de aplicar este conceito de liberdade escrita e epistemológica em sua estrita valia e local.

Este novo universo epistemológico e linguístico tem muito de reinvenção. Destas que a linguagem não comporta mais seu objeto de constituição. Sendo, para além de sua concretização em signos e letras, um local situado numa terceira margem, onde nem a esquerda ou a direita determinam alguma correlação de força, ou mesmo de significação.

Em recente descoberta – dessas em que certo autor, com suas reminiscências pessoais, dá à sua já grandiosa obra uma força ainda maior, em especial quando de sua valoração conceitual – nos escritos de Samuel Beckett (1906-1989), encontrou-se uma carta – escrita em 7 de junho de 1937 – direcionada a um amigo alemão de nome Axel Kaun, onde a linguagem assume um significado de não-linguagem, tendo no silêncio um novo ponto de referência.

Vejamos, pois, alguns fragmentos desta carta: Tomara chegue o tempo, graças a Deus que em certas rodas já chegou, em que a linguagem é mais eficientemente empregada quando mal empregada. Como não podemos eliminar a linguagem de uma vez por todas, devemos pelo menos não deixar por fazer nada que possa contribuir para sua desgraça. Cavar nela um buraco atrás do outro, até que aquilo que está à espreita por trás seja isto alguma coisa ou nada comece a atravessar; não consigo imaginar um objetivo mais elevado para um escritor hoje.

O uso desmedido da linguagem tem desses contratempos. Até pela quantidade excessiva de informações, ocasionadas contemporaneamente pela Internet, não temos mais lugar para localizarmos conceitualmente a linguagem. Seu não-lugar é hoje o que de mais evidente se nos mostra.

Por outro lado, quando solicita o não-uso dessa linguagem, o autor está nos colocando uma questão que, cada vez com maior evidência, tornara-se algo essencial. Isso pode ser encontrado no conglomerado de gírias que circulam na Internet, onde não se fala muita coisa, falando demais aquilo que não significa nada.

Beckett não está desconsiderando este tipo de linguagem, está, sim, tentando encontrar uma linguagem que se iguale ao homem. Uma linguagem que diga mais que sua composição tipológica. Este tipo de linguagem, ao contrário daquela típica da Internet, tem o que dizer sem existir. Diferente desta internética onde se diz muito, sem nada para informar.

Quando pede que a linguagem seja mal empregada não está, de modo algum, fazendo dela um mal emprego tipológico como o visto nos bits da Internet, mas um mal emprego epistemológico, dando significações, até então, não recorrentes no universo linguístico humano.

O caminho original, quando redirecionado – e isto tentava fazer Beckett –, tende a ser novo e mais criativo. Deixando de ser original, no sentido teológico, e tornando-se original no sentido filosófico e histórico.

Este mesmo caminho pode ser constatado neste outro fragmento da carta de Beckett: À caminho dessa literatura da despalavra, para mim tão desejável, alguma forma da ironia nominalista poderia ser um estágio necessário. Mas não é suficiente que o jogo perca um pouco de sua sacrossanta seriedade. Ele deveria cessar. Ajamos então como aquele matemático louco(?) que empregava um princípio de mensuração diferente a cada etapa de seu cálculo. Um ataque às palavras em nome da beleza.

Um caminho que tem muito de descaminho e de despalavra, como bem expressa o autor. Com efeito, a partir do momento em que não mais mensuremos este caminho, e esta mesma linguagem, de forma nominalista, nomeando elementos e determinando fatores; aí sim, a partir desse momento teríamos um descaminho mais original, e sem muita explicação. Talvez seja esta não-linguagem a qual Beckett faça referência.

Noutro fragmento, mais um (des)caminho teríamos traçado, e novas informações teríamos acumulado: Ou será que a literatura, solitária, deve permanecer atrasada em seus velhos caminhos preguiçosos que há tanto tempo foram abandonados pela música e pela pintura? Há alguma coisa paralisantemente sagrada na natureza viciosa da palavra que não se encontra nos elementos das outras artes? Há alguma razão pela qual a terrível e arbitrária materialidade da superfície da palavra não seria capaz de ser dissolvida, como pode, por exemplo, a superfície do som, rasgada pelas enormes pausas, da Sétima Sinfonia de Beethoven, de forma que, por páginas a fio, nós não podemos perceber a não ser um caminho de sons suspensos nas alturas vertiginosas, ligando insondáveis abismos de silêncio? Uma resposta faz-se necessária.

Uma resposta que não coloque limites, como o faz as palavras, mas que, realmente, dê respostas a este longo e lento caminho. Um caminho que tenha muito mais de simbologia que propriamente de nominalismo. Símbolos são muito mais que meras letras nominadas, eles têm muito de significações e de re-significações. É como se novos valores linguísticos dessem novas conceituações aos já pisados valores existentes.

Mais que um projeto de futuro, o que se quer com tal proposta é recolocar a linguagem numa local donde ela nunca teria saído: o local das significações e re-signifações humanas. Homens que somos, tentamos colocar peia em nossos devaneios, situação que, diretamente, também afeta a linguagem e sua objetivação de conceitos e nominação de saberes – alguns nem sempre nomináveis, nem tampouco mensuráveis.

A literatura está repleta de obras em que o autor mergulha junto nas atribulações de seus personagens, a ponto de modificar a estrutura da narrativa para acomodá-las.

Um mundo fraturado naturalmente separa em partes. Você não consegue ter uma relação orgânica, natural, com um país ou uma pessoa, por exemplo, se apenas dispõe de uma imagem na televisão. Trata-se de uma versão contemporânea de um velho problema: o mundo sempre nos pareceu fraturado. Nossa mente não está em sintonia com nosso corpo, nossas vidas não têm nenhum elo óbvio com o divino, a consciência dos outros não nos é acessível. A vida está cheia de descontinuidades (Zadie Smith, Folha de São Paulo, 27/05/2006).

Nem sempre um escrevinhador consegue comunicar ou revelar as volúpias literárias que impulsionam a sua pena. Num bom escritor, porém, o prazer do texto, como dizia Barthes, desemboca no prazer da leitura. A frase “uma expressão feliz” descreve uma felicidade literal. Daí a possibilidade de escrever uma obra-prima praticamente do nada, como as famosas crônicas sem enredo: o escritor, como um poeta, limita-se a tocar um instrumento que é ele mesmo (Hugo Estenssoro, As musas se divertem, Primeira Leitura, 51).

quinta-feira, 29 de março de 2012

Dessubjetivação da Razão


Este texto tenta explicar o papel que a razão subjetiva empreendeu sobre o indivíduo, e como seu status cognoscente deixou de ter algum significado – por razão subjetiva, entendemos “razão” do capital.

A razão, senhora absoluta dos saberes ocidentais, desde a passagem de Nietzsche pelos preâmbulos da filosofia, não tem conseguido manter seu antigo status: o de eternidade da coesão sapiencial. Esta ilusão de eternidade, em consequência, acaba atingindo também o indivíduo: ponto de partida para todo e qualquer saber. Embora o grande problema da atualidade seja a instrumentalização dessa razão, e não sua objetivação.

Há aqui, todavia, um despejo do eu – este mesmo que, ao longo de toda a história do ocidente tem tentado se erguer. Aquela morada, há tanto habitada, mostra-nos que está sem inquilino, e é neste momento que começa o grande problema. Poderíamos dizer que a razão instrumental ganhou morada por usucapião.

Nesta consumação irracional da razão, o indivíduo deixa de ser o “objeto” preservado. Preservação passa a ser uma prerrogativa da razão subjetiva, por ela mesma. Sua autopreservação tenta expurgar de seu contexto o papel do eu (ou melhor, do indivíduo em sua reflexão sobre o mundo e sobre si mesmo).

Com efeito, por indivíduo, segundo Max Horkheimer (1976: 139), cabe-nos refletir melhor, dando-lhe novos conceitos. O conceito de indivíduo se transformou. E sua significação requer novos elementos cognoscentes.
Ainda de acordo com Horkheimer:

Quando falamos do indivíduo como uma entidade histórica, não queremos significar simplesmente a existência sensível e espácio-temporal de um membro particular da espécie humana, mas, além disso tudo, a compreensão de sua própria individualidade como um ser humano consciente, inclusive o reconhecimento da sua própria identidade. (1976: 139)

Acima de tudo, o que se quer com essa re-significação é, basicamente, colocar o ser ontológico naquilo que tem de mais primordial. O que quer dizer: dar-lhe (e lhe mostrar) sua real e própria identidade.

O jogo dessubjetivante da razão acaba por tornar-se o grande inimigo do “eu” e sua essência mais legítima.

Quer-se, com esta inflexão, retomar a autonomia do eu, colocando-o defronte sua própria essência. Se essência legítima nos dá margem para pensarmos num novo caminho da “razão”, quer-se, principalmente, oferecer ao indivíduo um local que jamais deveria ter saído de seus meandros – e demais circunferências.

A percepção de que a identidade do eu tomou um caminho equivocado, quando direcionado por esta razão – também direcionada –, dá-nos a clareza de que identidade, realmente, não mais há. Quer-se, apenas, oferecer-te esta identidade, perdida pelo eu, novamente.

Não há como se esquecer que, afirmar o “eu” é a mais elementar afirmação de identidade deste “sujeito”. Apelos cognoscentes, que redirecionem este caminho, oferecendo ao eu sua real legitimidade, nada mais é que repensar este caminho empreendido pela razão – que em breve se desnudará mais claramente –; o qual ofereceu ao “eu” uma outra identidade que não a sua. E é este caminho torto o principal erro da razão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HEIDEGGER, Martin (1990). Identidad y Diferencia. Barcelona: Anthropos.

HORKHEIMER, Max (1976). Eclipse da Razão, tradução de Sebastião Uchoa Leite. Rio de Janeiro: Editorial Labor do Brasil.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm (2000). Crepúsculo dos Ídolos: ou como Filosofar com o Martelo, tradução de Marco Antônio Casa Nova. Rio de Janeiro: Relume Dumará.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Comportamentalmente Humano!


O estudo da infância e da forma como a criança desenvolve suas habilidades, mesmo que de uma forma bem tenra, faz com que tenhamos melhor capacidade de compreensão do que podemos chamar de pré-história (segundo Vigotski) do desenvolvimento cultural devido ao surgimento de instrumentos como a fala e a formação da índole humana. 

A cultura torna parte da natureza das pessoas e essa relação tem muito de ir e vir, ou seja, influencia-nos e influenciamos. Nossa natureza depende de elementos culturais externos para sua completa elucidação e formação. 


O pensamento adulto é culturalmente mediado pela sociedade, usando a linguagem como principal instrumento de mediação e de consolidação dos elementos já estabelecidos socialmente. 

O comportamento humano é um fenômeno histórico socialmente determinado. Nossa relação com as pessoas e com os fazeres das pessoas no mundo determinam muito de nosso comportamento. Se fôssemos pensar o homem como um mutante, seria aquele que depende do mundo social para se constituir de maneira intelectual e psicológica! 

O ser humano deve ser observado e compreendido como ser que está em seu ambiente de operacionalidade, e por isso se valida enquanto ser vivente, o que por sua vez dá origem e novas formas de consciência. E aqui não nos referimos apenas à consciência crítica ou acrítica, mas sua constituição fisiológica como um todo. 

domingo, 25 de março de 2012

A Importância da História Local



Considerações Preliminares

Ao se trabalhar com História Local, os pesquisadores têm feito o desvelamento de um espaço repleto de intrigas e sempre presente.
Quando menciono a expressão ‘um passado sempre presente’, tento mostrar o quão complicado é lidar com a História de uma estrutura de poder muito próxima com nossa realidade. É fato que o historiador não deve se imiscuir de apresentar a verdade, uma vez que esta verdade também seja compartilhada por um grupo maior de pessoas e, ademais, esteja caracterizada pelo compromisso que o pesquisador assume quando se dispõe a questionar determinadas estruturas de poder, destarte, estruturas que mascaram determinados eventos e situações.
A presença constante de uma força que cerceia, ou mesmo, se usufrui de espaço urbano, em benemérito próprio, pode amedrontar o historiador, como de fato, em alguns casos o faz. É este o cuidado que deve-se tomar com relação a um passado que ainda percorre, com seu olhar inquisidor, as ruas da cidade, ou melhor, um passado ainda presente e vivo.
Mas, acima destas intrigas, faz-se mister apresentar o quehacer da História Local. Surgida com a preocupação de oferecer maiores subsídios para a compreensão do que está mais próximo, a mesma tem desenvolvido um referencial metodológico próprio e envolvente. Este referencial, ao abarcar uma série de fatores, se auto-constrói com base em memórias (principalmente a chamada História Oral), crônicas, atas, jornais e revistas. A documentação, estando mais próxima, a densidade do conteúdo se afirma com maior veemência e, ademais, a análise das experiências adquire uma abrangência maior e mais precisa.
Segundo Rodrigues:

Enquanto a História Nacional e mesmo Regional oferece uma visão de macros acontecimentos e de narrativas que abarcam períodos históricos maiores, a História Local tem se preocupado com as circunstâncias cotidianas, com o fragmento, o inusitado, o particular e o específico.(RODRIGUES, 1996)

Esse microcosmo apresentado acima confere ao estudo um maior aprofundamento e, consequentemente, a verossimilhança adquire uma densidade mais precisa. O micro surge mais límpido aos olhos do pesquisador e, neste bojo, traz à luz os eventos da cidade e sua estrutura histórica.
A precisão do lugar da História desembocará na precisão de um micro-universo, as vezes ferino, outras ideologizado e, principalmente, sempre marcado pela organização de forças.
Ao trazer a História para o âmbito local, os agentes dessa História se enxergam. Aquele discurso de que não fazemos História cai por terra, é visualizada uma estrutura onde sujeitos mais precisos se encontram. Não existe o grande general, nem mesmo o mito ou o herói, mas sim o sujeito simples, comum e seu cotidiano peculiar. O Outro deixa de ser o objeto da História, neste momento o Eu também se transforma em objeto e agente dessa História.
Outrossim, surge o estabelecimento dialógico entre o geral e o particular. Os momentos históricos que vêm descritos nos livros didáticos passam a se aproximar mais de nossa realidade, uma vez que, é no microcosmo que a justaposição de poder estrutura uma História mais generalizada. Aquilo que ilustra o livro didático pode ter se iniciado nas ruas de minha cidade, no entanto, estas ruas nem aparecerão na escrita.

Histórico da História Local


Segundo Goubert (1992), a História Local tem no século XVIII seu grande descenso, uma vez que é neste momento “(...) que as idéias começaram a circular mais depressa e os homens a se deslocar mais rapidamente (...)”. Anteriormente, como a locomoção humana era mais lenta e mais difícil, a grande preocupação que perpassava a cabeça destes homens e mulheres era sua circunvizinhança, eis o motivo de privilegiarem a História Local. Estas pessoas tinham um universo sensível muito limitado, seu mundo era amarrado a sua condição geográfica (quando se distanciava muito chegava-se ao povoado vizinho), necessitando da localização geográfica para afirmação de seu conhecimento, ou seja, os locais de conhecimento eram bastante limitados. A grande preocupação era compreender melhor sua pequena vila, para dela se usufruir da melhor maneira possível. Como as notícias tinham uma lentidão muito grande de circulação, acabavam ficando limitadas à espacialização geográfica dessas pessoas, ou ainda, de seus povoados.
Segundo Goubert:

Numa vida assim restrita, as atividades intelectuais de pequena minoria se tratavam ou de meditações sobre os textos antigos, especialmente gregos e romanos, ou de História da região, entendida como a terra da família.(GOUBERT, 1992: p.46)

Dessa forma, as grandes preocupações tendiam ao micro, trazendo ao caráter histórico uma precisão mais veemente e às pessoas envolvidas um maior aprofundamento das características físicas e culturais de suas localidade.
Já no século XVIII começaram a surgir diversas publicações sobre a História Local, entretanto, tais discussões não passavam de hagiografias, isto é, endeusamento de determinados indivíduos, por meio da biografia,  com o propósito de eternizar, quiçá, imortalizar algum nome, ou mesmo ‘grande homem’. Segundo Goubert, este seria o motivo deste tipo de História ter entrado em descrédito já no início do século XX, uma vez que a preocupação se direcionava às elites de determinada localidade, seu interesse não se mostrava mais tão patente.
Em contrapartida, com o Positivismo, começava a se afirmar a preocupação com a História Geral e os grandes feitos de estadistas. A História passa a ter um direcionamento mais universalizante. Já em meados do século XIX, a preocupação com o universalismo toma conta de todos os estudos, ou mesmo escritos literários, de grande parte dos autores europeus. Essa tendência começou a se espalhar pelo mundo e veio lançar seus reflexos nos rincões brasileiros.
No Brasil, em meados do século XIX, passa a existir a preocupação pela História brasileira, é criado o IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, instituição oficial que tinha na figura de Dom Pedro II o grande idealizador; inicia-se o forjamento de uma memória para o povo brasileiro. Criado em 1838 tinha a preocupação de metodizar, arquivar e publicar a História e Geografia brasileiras.
Segundo Guimarães & Holten:

Ao longo do século XVIII, em diversos países, intensificou-se a criação de academias, consagradas ao estudo da história nacional e ao desenvolvimento da cultura científica. Este movimento intelectual conheceu sua plenitude nos anos oitocentos, quando tais instituições começaram a se voltar para o exterior, trocando informações e publicações, atravessando fronteiras e até mesmo continentes. Entre algumas dessas sociedades científicas, entretanto, os contatos foram além do intercâmbio formal de conhecimentos, revelando a existência de interesses comuns mais abrangentes.(GUIMARÃES & HOLTEN, 1997: p.2)

Segundo percebo, é a partir deste momento, com fortes inspirações Positivistas (já em seu estágio prévio), que a História brasileira começa a ‘existir’ profissionalmente, até então essa preocupação ficava amalgamada nas mãos de jornalistas, juristas, viajantes e narradores extra-oficiais. Ou em outras palavras, a História brasileira surge sem a preocupação do local, é fato que em várias cidades do país este trabalho já estava sendo desenvolvido, todavia, enquadrado nas informações acima citadas, a saber; devido a limitação geográfica de nossos primeiros ‘historiadores’ locais.

A Importância da História Local


Ao sustentarem a tese de que uma História séria deveria se respaldar na precisão dos fatos, a HL passa a ser vista com novos olhos, uma vez que, fatos precisos devem ter uma dimensão espacial e temporal bem próximos, cria-se essa reestruturação. O pesquisador começa a se preocupar com as proximidades de seu objeto de estudo, neste sentido, a cidade ganha novas luzes e o Local mais espaço.
Talvez a grande importância da HL esteja no fato de apresentar melhor uma estrutura que interfere no dia-a-dia das pessoas. Assim, o Local traz à cena, além da precisão dos fatos, a preocupação diuturna de uma sistemática de poder, podendo o mesmo ser utilizado, inclusive, como arma de proteção e cobrança por parte dos indivíduos, e ainda, das associações de bairro.
Entretanto, segundo Rodrigues (1996), há um detalhe, por parte do historiador, que precisa ser melhor observado. Além do tempo histórico que, talvez não seja o mesmo dos grandes eventos da História Geral, muitas vezes é detectado o problema da escassez de fonte e, ademais, do desmazelo destas. Inúmeras cidades ainda não desenvolveram a preocupação por seus patrimônios público e memorial, não dispondo de arquivos organizados, nem tampouco de uma estrutura política que privilegie esta memória.
Outros cuidados dizem respeito à metodologia e contextualização para trabalhar o Local, no âmbito da História Nacional, como a falta de bibliografia sobre o tema, além da interdisciplinariedade que certas abordagens requer e, sobremaneira, a objetividade do trabalho, uma vez que se tem notado um extremo amadorismo por parte de quem já pratica esta abordagem historiográfica.
Afora a discussão acima, muitos historiadores têm questionado a escassez de temáticas para pesquisa, destarte, a HL permite lançar sangue novo nestas artérias, trazendo discussões ainda não exploradas e, ademais, novas abordagens sobre temáticas já saturadas.
Ao trazer de volta a HL, nota-se a preocupação em abrir novas possibilidades que revejam as generalizações e homogeneizações presentes na História Nacional, as quais, segundo Rodrigues (1997) “negligencia o particular, o específico porque estavam voltadas para os grandes marcos da História Política e Econômica.”. Dessa forma, a proporcionalidade de erro cairá à medida que desaba, também, a distância para com o objeto de estudo. Desse processo vemos o surgimento de novos paradigmas e a emergência de uma pluralidade de novos agentes sociais.
Ainda, segundo Rodrigues:

Cabe ressaltar que, paralelo a estas inovações e em decorrência delas, uma verdadeira revolução ocorreu em relação às evidências históricas, matéria-prima do(a) historiador(a). Para emitir o acesso às atitudes, mentalidades e às experiências cotidianas, as fontes documentais se alargaram e passaram a oferecer um leque infindável de possibilidades à pesquisa. Aos documentos oficiais, foram incorporadas inúmeras outras fontes, como as cartas pessoais, os diários, a indumentária, a fotografia, a entrevista e outros tantos indícios.(RODRIGUES, 1997: p.151)

Além desta série de instrumentos novos, o historiador do Local terá condições de apresentar nuances da vida de uma cidade, nunca dantes explorada, e ainda, poderá interferir mais intimamente em seu meio social, pois sabemos que, além de pesquisar, é imprescindível que o pesquisador também interfira em seu meio de forma crítica e questionadora. Eis o grande compromisso de um historiador preocupado com as injustiças de seu tempo.

Considerações Finais


A revitalização da História necessita ser feita todos os dias, a HL vem para dar sua contribuição a esta revitalização, porque, ao propor uma nova metodologia que interfira mais intimamente em seu objeto, propõe também uma nova forma de se fazer História.
É fato que ainda tem muito o que se fazer para que a mesma se efetive, no entanto só pelo fato da HL entrar na Academia, inclusive nas monografias e metodologias de pesquisa, nota-se um grande avanço e, também, uma revalorização desta que a muito anda relegada do eixo das grandes publicações.
A riqueza detalhista que a História Local tem a oferecer precisa ser revista e posta em prova. Ainda bem que os historiadores estão ressuscitando esta metodologia historiográfica.
Enfim, muito ainda pode ser feito, todavia, o primeiro passo foi dado, só pelo fato de estarmos fazendo um módulo específico na área de HL, dentro desta especialização, já é sinal de preocupação com o Local.

Referências Bibliográficas


GOUBERT, Pierre (1992). História Local. Revista História & Perspectivas. Uberlândia: EDUFU, n° 6, Jan./Jun., pp. 45-58.
GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal & HOLTEN, Brigitte (1997). O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a Real Sociedade dos Antiquários do Norte e o Dr. Peter Wilhelm Lund: a suposta presença escandinava na Terra de Santa Cruz e a ciência. Apresentado no Encontro da Latin American Studies Association, Continental Plaza Hotel, Guadalajara. México, 17-19 de Abril (mimeo).
RODRIGUES, Jane de Fátima Silva (1996). História e Memória Local: desafios e perspectivas. Boletim do CDHIS. Uberlândia: EDUFU, n° 16, 2° semestre, s/p.

sábado, 24 de março de 2012

Diálogos Impenetráveis (Thaís)!




Thaís: Isso que é...


"E o supérfluo é inimigo do necessário. Decerto que temos necessidade da história, mas temos necessidade dela de uma maneira diferente da do ocioso requintado nos jardins do saber, mesmo que ele olhe altivamente para as nossas rudes e antipáticas necessidades." (Co.Ext.II; 1976: prefácio)


E quando a antipatia domina, temos um jardim sem flor e uma História sem Filosofia. Uma História onde o elemento homem deixa de ser homem e se torna um mero apêndice de homem. Precisamos do homem assim como precisamos do pensar profundo e da filosofia de jardim!

Observe o Jardim, dê vida à ele e você estará vendo uma Filosofia plena de História, e uma vida plena de Vida. Assim se faz o mundo, assim os homens se fazem, assim a História deixa de ser um apêndice de Homem. Precisamos do humano e a História precisa de você, enquanto ser humano... um humano de nome nerudiano: humano momenté... e que o Homem e a Thaís não seja um mero momento!

Thaís: Nerudiano...Esse adjetivo ainda era desconhecido.

Para Um Repensar da História!





Edilson Antônio Alves

Á medida que buscamos as origens, vamos nos tornando caranguejos. O historiador olha para trás; até que finalmente também acredita para trás.
Friedrich Nietzsche – Crepúsculo dos Ídolos

Em sua segunda intempestiva, Da Utilidade e dos Inconvenientes da História para a Vida, obra que data do ano de 1874, Nietzsche tenta traçar uma História da Filosofia, no entanto, despreocupada com a finalidade. Esta despreocupação se mostra na forma como o filósofo apresenta seu método (que, aliás, ao pé da letra, não tem método algum). O grande questionamento que faz diz respeito à forma como os homens vêm o passado, subordinando-se ao mesmo. Esta situação de subordinança é, para Nietzsche, sintoma de degenerescência, chamado pelo autor de Moral de Rebanho.
Quando se remete ao passado, tenta encontrar uma forma de ver este passado sem que o mesmo pese demais sobre nossas costas e, para isso, busca o exemplo da criança que, em sua inocência, esquecer-se-á do acontecido, e não preocupar-se-á com o futuro. Parábola que retoma em uma obra posterior (Za; 200: I, Das Três Transformações) e que, imagino, tem a ver com uma metodologia filosófica para a educação, como também esta obra a qual se faz referência neste ensaio.
Como se percebe, o esquecimento passa a ser ponto de partida para a filosofia nietzscheana, principalmente quando este esquecimento tem a ver com a Tradição – passado impositor e que não permite o desenvolvimento do homem enquanto espírito livre – e sua ferocidade em defender o passado.
Amparado nestes pressupostos Nietzsche busca encontrar a real ‘utilidade’ da História, e não uma farsa que desdobre sobre o homem parâmetros valorativos que não lhe competem, como estava havendo na Alemanha de seu tempo e o despotismo esclarecido do Oto Von Bismarch, como apresente Nietzsche ainda no prefácio de sua obra:

Contamos, efetivamente, expor nestas páginas por que razão devemos abominar, segundo a palavra de Goethe, o ensino que não vivifica, o saber que amolece a actividade, a história encarada como precioso supérfluo e fluxo do conhecimento – falta-nos o necessário, e o supérfluo é inimigo do necessário. Decerto que temos necessidade da história, mas temos necessidade dela de uma maneira diferente da do ocioso requintado nos jardins do saber, mesmo que ele olhe altivamente para as nossas rudes e antipáticas necessidades. (Co.Ext.II; 1976: prefácio)

Para Nietzsche a História precisa ser repensada como uma necessidade para a vida e para a ação, não mais como mero enfeite de um ocioso requintado nos jardins do saber. E, para que atinja esta estrutura, deveria se ater mais em ação e contraprova ao que está posto, e menos em reforçar a Tradição e imposição de um statu quo.
O abuso da História e sua sobrevalorização provocam a degenerescência da vida, encarcerando os homens cada vez mais em um rebanho acéfalo e obediente. Nesse sentido, penso que a História deveria ter o papel de subversão e revolução, algo que, amparado em fatos de outrora, nos permita repensar um tempo e contrapor uma ideologia. Os velhos ídolos do passado precisam ser quebrados a marteladas (CI; 2000), porém, que não coloquemos outros no lugar; faz-se necessário manter o trono vazio.
A partir do momento em que o passado for confrontado, decerto, a vontade de rebanho deixará de existir, dando à vontade seu real caráter. “Mas o homem também se admira de si próprio, de não poder aprender a esquecer e de ficar permanentemente amarrado ao passado. Por mais longe que vá, por mais depressa que corra, as suas algemas seguem-no”. (Co.Ext.II; 1976: §1)
Caso o homem se esqueça um pouco do passado enquanto amarra, talvez o conhecimento teria um outro caminho. Dessa forma, o ensino do esquecimento estaria relacionado à formação do espírito, de caráter, de julgamento preciso, de imaginação e à descoberta de valores, bem distintos dos atuais.
Acresce-se a isso a questão do rebanho e como este homem, que ainda se encontra algemado ao passado, sente-se feliz com referida situação. Mais adiante Nietzsche reforça:

O homem defende-se do peso progressivamente mais pesado do passado, que o esmaga ou o desvia, que torna pesada a sua caminhada como um invisível fardo de trevas, que ele pode negar por vezes, e que nega com gosto no contacto com os seus semelhantes, para despertar a sua inveja. Por isso é que se emociona ao ver o rebanho a pastar como se se tratasse da reminiscência de um paraíso perdido ou, numa proximidade ainda mais familiar, a criança que não tem qualquer passado a recusar e que brinca, na sua feliz cegueira, entre as barreiras do passado e do futuro. (Co.Ext.II; 1973: § 1)

E aqui retomamos o papel da criança nesta transvaloração dos valores, com um espírito sem-medo para com o passado, até mesmo porque há um esquecimento, onde o que acaba interessando é a ação de um tempo presente, com re-configurações futuras e re-visão passada.
Os sintomas de nossa época podem trazer clareza aos olhos, e se estes sintomas se evidenciam de forma deturpada, como é o caso da a-criticidade e do arrebanhamento dos homens, é sinal de que a mudança, ou mesmo re-valoração, poderá ser dolorosa. Talvez o esquecimento teria um caráter de emplasto – talvez de cura –, uma vez que o homem precisa encontrar alguma cura para tais sintomas.
Ao negarmos nossos valores mais primitivos apenas por estarmos em estado de civilidade, é sinal de obediência e subordinação a este estado o qual, segundo Rousseau (1997), deixa os homens doentes. Pode parecer uma visão romântica, contudo, a partir do instante em que o homem consegue seu arrebatamento, repensando seus valores, pode ser que nossa comoção, ao ver o rebanho pastar, acabe sendo meramente a comoção para com os miseráveis, jamais uma vontade de voltarmos a este estágio.
Esta visão que Nietzsche traz, gravada a ira e cólera, é muito antiga; do tempo em que virtude era sinal de força e não de degenerescência, como tornou-se após a efetivação da sociedade socrático-cristã. Como pode ser visto, a noção valorativa que aqui se apresenta é algo da Antigüidade: talvez aquilo que Heráclito chamou de estado de guerra de uma multiplicidade, surgida na unidade do Logos.
Em face disso, o vigor pretendido por Nietzsche, bem como se mostra na vontade humana, também pode ser remetido à História: movimento constante e processual que joga o homem em ambientes e que também pode submetê-lo ao tempo da Tradição e da subordinança.
O homem, quando não consegue impor este vigor à obra de seu tempo, na comparação de Nietzsche, é como um animal de uma vida não-histórica. Quando se pensa que este seria o homem ideal, de fato, o é para a Tradição. Com efeito, a existência do homem deveria ser pensada como algo imperfeito, e que não há de se completar jamais. Eis, quiçá, o maior pressuposto para se viver extemporâneo, encarando o conhecimento como um acúmulo aberto e não um acúmulo fechado como o é na História que Nietzsche questiona.
Vejamos então como se faz este homem, segundo o filósofo, e como deveria ser:

Quando, por fim, a morte traz o esquecimento desejado, rouba-nos simultaneamente o presente e a existência e põe o selo definitivo sobre a verdade, que ser não passa de um ter sido ininterrupto, uma coisa que vive de se negar e de se consumir, de se contradizer a si própria.        (Co.Ext.II; 1973: § 1)

Este homem que se quer em rebanho é justamente o homem do negar-se a sua vontade e do consumir-se a si mesmo. Chega então o selo da morte, que se há de dizer daquilo que tal homem deveria ter feito? Há de se dizer que sua vida não existira, que sua vontade não acontecera e que é justamente o oposto do homem que usa de seu esquecimento para ousar repensar o passado e toda a História da Filosofia. Na obra em específico o grande questionamento de Nietzsche é sobre estes homens; os velhos moralistas, guardiões da sacralidade do Tempo. Senhores de ofício e gosto requintados e que, por serem assim, se negam e se consomem em detrimento do statu quo epistemológico.
Nietzsche esboça encontrar um homem o qual, baseado em seu cinismo, não bajula, ao contrário, está sempre disposto a ironizar o passado, questionar a História e propor novos valores. Portanto, os valores antigos precisam ser transvalorados, necessita-se, para isso, de um homem o qual tenha espírito livre e vontade de potência; mostrando-se sempre que é capaz. Imagina-se que referido homem tenha a possibilidade de esquecer, ou mesmo a faculdade de sentir-se momentaneamente fora da história, em suspenso, até mesmo com a intenção de compreendê-la com um outro olhar e novos valores.
Todo ato de ação, nesse contexto, requer que tal homem se utilize do esquecimento e, como verdadeiro discípulo de Heráclito, se insira no devir e guerreie com o mesmo, contrapondo valores e fazendo explodir um caos na unidade, mostrando que, a partir do Uno, possa explodir um universo estelar, com uma estrela dançante. Este homem não se deixa perder na torrente do devir, mas se deixa envolver na luz e na obscuridade deste acontecimento sem, jamais, abrir mão da contradição; jogar com o jogo dos contrários é o único meio de desobrigar a Tradição de seu posto de única dona da verdade.
Para que se torne o coveiro do passado, conforme Nietzsche, seria necessário conhecer a medida exata da foca plástica de um homem, de uma nação, de uma civilização. Aqui temos, portanto, o conhecimento do homem baseado na faculdade de crescer por si mesmo, transformando e assimilando o passado e o heterogêneo, fazendo com que as feridas se fechem – porém, sempre deixando a cicatriz –, reparando perdas e reconstruindo formas que foram destruídas pela História. “Quanto mais o temperamento do homem está fortemente enraizado nele, tanto melhor saberá apropriar-se de largas porções do passado, ou dominá-las”. (Co.Ext.II; 1973: § 1)
Cabe aqui a intervenção no passado, não com um instrumento qualquer, mas com o vigor de uma transformação conceitual, de um caos interior que parteje uma estrela dançarina, assim como nos apresenta Nietzsche em Humano, Demasiado Humano. Se o passado já existe não significa que esteja fechado, caso o encontre fechado há que se quebrá-lo, pois: o sentido histórico e a sua negação são igualmente necessários à saúde de um indivíduo, de uma nação e de uma civilização.
Assim, a História deve ser pensada não como um emplasto apenas, mas como uma cura. Cura esta somente possível quando a força plástica de um homem entra em cena, não quando tememos este passado (talvez por sua pretensa autoridade). A autoridade do passado precisa ser questionada, apenas como tal poderíamos ter uma transvaloração de valores. Trata-se, pois, de saber esquecer o tempo, como de saber recordar o tempo, cada qual em seu momento. Somente um espírito vigoroso nos adverte a saber o momento certo de ver as coisas historicamente. E, para tal, o sentido histórico nem sempre é o melhor caminho para evitarmos o definhamento e a degenerescência. Se falta sentido histórico não deve faltar força plástica, pois é ela a responsável por determinar a coerência de nossos atos. Aquilo que é grande e humano nem sempre é ‘ético’ e histórico!
Para que compreendamos melhor a colocação acima:

É, pois, pela faculdade que ele [homem] tem de fazer servir o passado à vida e de refazer a história com o passado, que o homem se torna homem; mas um excesso de história destrói o homem e ele não teria começado a pensar, sem esta nebulosa que envolve a vida, antes da história. (Co.Ext.II; 1973: § 1)

Como se vê, nem sempre os valores que possuímos dão conta de entender o mundo onde habitamos. Quando de uma situação tal como essa, o melhor a se fazer é repensar os valores e, se necessário, recriarmos verdades, nem que para isso usemos de uma etimologia totalmente nova. O âmbito do conhecimento não pode ser sistematizado, nem tampouco seccionado. Existem fenômenos epistemológicos os quais não competem à consciência humana, daí a necessidade de se expandir para compreender (jamais sistematizar).
A nossa memória, ao girar dentro do mesmo círculo, se cansa. O incrível é que não vemos isso, a não ser num estágio de assombro perante certas situações inabituais. Caso continuemos com a memória girando ao redor do mesmo círculo ela tornar-se-á excessivamente fraca, incapaz de ultrapassar os limites da nossa razão. É neste momento que deve entrar a sem-razão – non-sense – do conhecimento e seu salto no escuro.
O conhecimento, quando do non-sense, deve ser compreendido fora de qualquer pensamento histórico-temporal, por isso a necessidade em ultrapassar a História, repropondo-a. Há que se pensar o resultado possível de cogitações históricas.
Para Nietzsche, todo o passado merece condenação, uma vez que nele se misturaram toda a fraqueza e força do homem. A partir do momento em que o submetemos a um critério rigoroso, tornamo-lo crítico; instante em que o homem aplica sua força sobre o mesmo e se debruça sobre hipóteses nunca dantes pensadas. Porque, uma vez sendo frutos das gerações passadas, também somos frutos dos seus desvios e paixões, como dos seus erros e até mesmo de seus crimes, daí a importância em haver um julgamento que zele pela clareza e pela verossimilhança. Podemos condenar estes erros, achando que assim estaríamos isentos deles, todavia tal situação não impede nossa origem nestes erros. A origem de nossos valores e hábitos, além de nossas fraquezas e erros. E, de acordo com Nietzsche, na melhor das hipóteses, chegaremos a um conflito entre a nossa natureza herdada e hereditária e o nosso conhecimento, a uma luta entre uma nova e estrita disciplina e o que é inato em nós ou nos foi inculcado pela educação. (Co.Ext.II; 1974: § 3)
A partir do momento em que alvejamos este passado de erro é como se estivéssemos implantando uma segunda natureza, que farão morrer a nossa primeira natureza. É como se poderíamos conseguir, posteriormente, um passado que poderia ter sido, e não o que temos enquanto instrumento de conhecimento. Este novo passado, talvez menos deturpado poderia ser utilizado como mecanismo de mudança futura, desde os valores mais básicos do homem até sua relação com a sociedade e seu estado civil. Contudo, isto poderia nos jogar em um erro maior, pois a segunda natureza é sempre mais débil que a primeira e bem mais corruptível, claro que toda tentativa é perigosa e, indo mais além, muito mais perigoso é não perscrutar este passado e, quiçá, não repensar esta primeira natureza (a mesma que seguimos junto a um passado bajulador e nem um pouco crítico, ou até passível de crítica). A História crítica deve ser posta a serviço da vida e é justamente o contrário o que, atualmente, se faz.
O homem que quer a verdade a quer não:

Não como um conhecimento frio e estéril, mas como verdade que julga, ordena e pune, como uma verdade que não é propriedade egoísta do indivíduo, mas direito sagrado de deslocar os limites de todas as propriedades egoístas, uma verdade, em suma, que é julgamento final e que, em nenhum caso, é presa fortuita e prazer de um caçador isolado. (Co.Ext.II; 1974: § 6)

Na medida em que a verdade não for mais presa de um tempo e de uma História equivocada, assim como a que temos, ela terá mais fidedignidade para com suas palavras, dando novas margens e novos valores a este que o é o mundo mais falso e ilusório de todos. Vivemos sob máscaras, mas ao invés de às pensarmos como algo positivo, o qual temos controle, a vivemos como algo pejorativo e prejudicial à sabedoria e, em específico, à verdade na Filosofia.
Temos que nos rebelar contra o hábito inveterado de repetir, aprender e imitar; há que se buscar o novo no novo e não o novo no que está aí e se faz passar por novo. A cultura deve ser pensada como algo mais, além do mero ornamento da vida que cultuamos. Esta maneira que temos de disfarçar a verdade tem deixado as verdades escondidas e obscurecidas pelo clarão da História; qualquer ornamento esconde aquilo que enfeita. Quando arrancarmos referidos ornamentos, aí sim, teríamos uma revolução, onde o conhecimento teria valor, de fato, de sabedoria e verossimilhança, para com cada um de nós e para com nossos espíritos inquietos.
Enfim, a cultura deve ser pensada sem distinção entre o interior e o exterior, sem dissimulação e sem convenção, cultura concebida como a união da vida e do pensamento, da aparência e do querer. Todo progresso em sinceridade deve preparar e favorecer a cultura autêntica, mesmo que a sinceridade prejudique aqueles que gozem do status de classe culta, ou mesmo elite intelectual de um povo (Co.Ext.II; 1973: § 10). E a cultura em progresso é justamente o que Nietzsche concebe como sendo a História que precisa ser repensada, dando margem para que o conhecimento tenha validade extemporânea, mantendo-o aquém das dissimulações de uma Era em específica.

Referência Bibliográfica


NIETZSCHE, F.W. (1973). Considerações Intempestivas. Lisboa: Editorial Presença.
NIETZSCHE, F.W. (2000). Sobre la utilidad y los Perjuicios de la Historia para la Vida. Madrid: Editorial EDAF.
NIETZSCHE, F.W. (2000). Crepúsculo dos Ídolos, ou como filosofar com o martelo. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
NIETZSCHE, F.W. (2000). Assim Falou Zaratustra, um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Martin Claret.
ROUSSEAU, J.J. (1997). Discurso Sobre a Desigualdade dos Homens. São Paulo: Abril Cultural.