sábado, 28 de março de 2009

Filosofando com Vida!



Resgatando os ‘primórdios’ do conhecimento, ao se referir à Filosofia de Vida, ou mesmo, à afirmação da Vida, o primeiro elemento que se desponta à humanidade, nesta busca por origens, é sua transitoriedade, ou seja, uma finitude que tem hora marcada para se efetivar; é onde o que seria viver se transforma em esgotamento do viver.

Mais que isso, perante a natureza o intelecto humano desdobra-se, se mostrando o quão fugaz e sem finalidade está constituída sua desmedida busca racional da verdade.

Quando, ao final do século passado, Nietzsche apresenta tal constatação, o faz com o intento de subjugar o desejo da morte, de esgotamento de vida. Tudo isso, pela letal necessidade de ‘explicação’ de tudo.

Em Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral, por exemplo, tem-se o seguinte texto: “Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais mentiroso da “história universal”: mas também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer.” (§ 1)

A ‘fábula’ que melhor expressaria o desejo de morte, por esgotamento da vida e explicação total da natureza, dirá Nietzsche, é a que melhor ilustraria o descompasso existente entre o avanço científico-racional e a felicidade humana.

O animal homem, em sua descabida arrogância, necessitou inventar o Conhecimento (especificamente o lógico). Parece-nos que conseguiu, inaugurando com isso toda a Tradição filosófica. Apenas esqueceu-se de que a vida precisava ser ‘desbotada’. Essa ânsia de morrer – também conhecida como busca pelo esgotamento do conhecimento, por meio do intelecto –, pelo conhecimento, criou monstros, daí o desejo de encontrar um outro elemento, que desse nova chance à vida e ao homem – Nietzsche buscará na intuição (FT: §§ 5-9; VM) este outro elemento.

Nova referência: “Não há nada tão desprezível e mesquinho na natureza que, com um pequeno sopro daquela força do conhecimento, não transbordasse logo como uma odre; e como todo transportador de carga quer ter seu admirador, mesmo o mais orgulhoso dos homens, o filósofo, pensa ver por todos os lados os olhos do universo telescopicamente em mira sobre seu agir e pensar.” (VM: § 1)

O intelecto, fonte de todo esse ambicioso projeto, ao afirmar-se, joga por terra a felicidade humana. Quer-se conhecer tudo, e a todo custo, até como sintoma de reconhecimento (nem que nos tomemos como um transportador de carga em busca de admiração), aliás, auto-reconhecimento, como se os olhos do universo estivessem sobre o animal homem; é quando a vida se relega a elemento subordinado, e se transforma em carga de admiração.

Por outro lado, ao tentar resgatar este elemento vital, Nietzsche aposta num outro caminho. Podemos dizer que surge, com esse desejo, a ‘filosofia de vida’. Uma vez que o intelecto apoderou-se do mundo e transformou a ilusão e o disfarce em essência, ele deu para o indivíduo um instrumento de controle dele mesmo, um instrumento moral. Assim, abrimos mão da luta pela existência, o que nos apresenta, ademais, a seguinte constatação: apenas no sentido moral, de conservação do indivíduo, que se dá a verdade. Uma conservação intelectual em detrimento da vital.

A vida, pensada a partir do vir-a-ser de Heráclito, deixa de ser uma punição (como em Anaximandro) e se transforma numa dádiva. Vir-a-ser como justificação da vida, e não da essência do conhecimento.

Vejamos as duas referências, apresentadas por Nietzsche: “O que vale vosso existir? E se nada vale, para que estais aí? Por vossa culpa, observo eu, demorai-vos nessa existência. Tereis de expiá-la com a morte. Vede como murcha vossa Terra; os mares minguam e secam; a concha sobre a montanha vos mostra o quanto já secaram; desde já o fogo destrói vosso mundo, que, no fim, se esvairá em vapor e fumaça. Mas sempre a edificar-se um tal mundo de transitoriedade: quem seria capaz de redimir-vos da maldição do vir-a-ser?” (FT: § 4)

Um universo onde a transitoriedade do saber coloca tal filósofo sem solo, tirando-lhe suas certezas: “quem seria capaz de redimir-vos da maldição do vir-a-ser?”; eis que surge a pergunta necessária para tirar da vida o elemento filosófico.

Surge então a contraposição, momento em que Nietzsche vê uma luz que o faz resgatar, de novo, a vida: “No meio dessa noite mística em que estava envolto o problema do vir-a-ser, de Anaximandro, veio Heráclito de Éfeso e iluminou-a com um relâmpago divino. 'Vejo o vir-a-ser', exclama, 'e ninguém contemplou tão atentamente esse eterno quebrar de ondas e ritmo das coisas. E o que vi? Conformidade a leis, certezas infalíveis, trilhas sempre iguais do justo. Por trás de todas as trangressões das leis vi Eríneas julgando. Vi o mundo inteiro com o espetáculo de uma justiça reinante e forças naturais demoniacamente onipresentes subrodinadas a seu serviço. Não vi a punição do que veio a ser, mas a justificação do vir-a-ser. Quando se manifestou o crime, o declínio, nessas formas inflexíveis, nessas leis santamente respeitadas? Onde reina a injustiça há arbítrio. Desrodem, desregramento, contradição; mas onde, como neste mundo, regem somente a lei e a filha de Zeus, Dike, como poderia ser ali a esperada culpa, da expiação, da condenação e como que o patíbulo de todos os danados?'” (FT: § 5)

Ao negar o ser, difernete de seus antecessores, Heráclito afirma o transitório e o indeterminado, o que o coloca lado a lado com a afirmação da vida, transitória em sua diária efetivação, “cercada e protegida por eternas leis não escritas, fluindo e refluindo em brônzeas batidas de ritmo”. (FT: § 5)

Se a verdade racional tem se mostrado como um problema moral, e não mais vital, reconhece-se com isso que a modernidade tem herança nesta composição racional-científica. Tentando encontrar o outro caminho, ou mesmo a outra margem do rio, repensar, tal caminho, seria o mais correto. Imagino que tenha sido esta a proposta de Nietzsche, ao desenterrar a obra de Heráclito.

Daí, ao falar em ‘filosofia de vida’, há que se falar também de Heráclito, como o próprio Nietzsche constata; ao tentar achar o porquê de se querer tão esgotadamente o Logos: “Uma obrigação de conhecer o logos, por ser homem, não existe. Mas por que há terra? Isto é para Heráclito um problema muito mais sério do que perguntar por que os homens são tão estúpidos e ruins. Nos homens mais superiores e nos mais pervertidos revela-se a mesma legalidade e justiça imanentes. Mas, se se quisesse propor a Heráclito a questão: por que o fogo não é sempre fogo, por que ora é água, ora é terra? –, ele responderia apenas: “É um jogo, não o tomeis tão pateticamente e, antes de tudo, não o tomeis moralmente!” (FT: § 7)

O problema está no elucidar dos conceitos (daí a referência ao fogo, terra e água tão veementementes referidos a Heráclito). Se a resposta se resumisse ao jogo e à vida, aí sim, poderíamos chegar à constatação nietzscheana: o espantoso descompasso entre o avanço cioentífico e a felicidade humana.

Por trás da busca racional da verdade mora o desejo da morte, aliás, o desejo de esgotamento da vida, metamorfoseada em saber racional, visto que, a morte é o oposto que dá sentido à vida, e não o objetivo que a vida persegue. Não é à toa que Nietzsche considera a razão extremamente fria e sem vida. A letal ‘explicação’ de tudo é um desejo de esgotamento do saber; pensando em Nietzsche; um desejo de esgotamento da vida.

Em Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral, como exemplo, essa constatação fica mais patente: “Aquela altivez associada ao conhecer e sentir, nuvem de cegueira pousada sobre os olhos e sentidos dos homens, engana-os pois sobre o valor da existência, ao trazer em si a mais lisonjeira das estimativas de valor sobre o próprio conhecer. Seu efeito mais geral é engano – mas mesmo os efeitos mais particulares trazem em si algo do mesmo caráter.” (VM: § 1)

O valor da existência se mede pelo valor do conhecimento acumulado, e sua ânsia de esgotamento. Sinal de que o invento do conhecimento é mero valor, automaticamente, valor sobre o próprio conhecer, ou seja: confirmação moral da realidade pré-estabelecida.

O sentimento moral huimano precisa de uma constatação de sua mentira e engano. Apenas assim as forças desnorteantes da vida podem ser aparadas, condicionadas à conservação do indivíduo e não da vida.

O indivíduo, sendo um ser moral, como podemos detectar pelas citações acima e pela obra de Nietzsche, de forma sintomática justifica sua necessidade de esgotamento do saber. O saber perpetua o ser, e não o devir: o devir está mais próximo de viver.

Saciedade e esgotamento, conforme Nietzsche, citando Heráclito, gera o crime, consequentemente, faz com que os indivíduos, moralmente, se sintam ‘obrigados’ a confirmar tal tese. Quando a confirmação desta tese se apresenta como o único meio possível de se ‘viver’ em conhecimento, ou mesmo embebido dele, e como constatação da atual tradição filosófica, criminoso é aquele que não tenta esgotar o conhecimento.

Situação que, por Heráclito, se mostra justamente o contrário, como pode ser visto: “O provérbio grego segundo o qual 'a saciedade gera o crime' (a hybris) parece vir em nosso auxílio. De fato, podemos perguntar-nos por um instante se Heráclito faz derivar da hybris esse retorno à pluralidade. Levemos essa idéia a sério: à sua luz, o rosto de Heráclito se transforma a nossos olhos, o orgulhoso brilho de seus olhos se apaga, uma ruga de dolorosa renúncia e de impotência se desenha em seus traços. Parece que compreendemos porque a antiguidade tardia o chamou o 'filósofo que chora'. O conjunto do processo universal não parece doravante um castigo da hybris? A pluralidade não seria o resultado de um crime? A transformação do puro em impuro, uma consequência da iniquidade? A culpa não se instala a partir de então no coração das coisas? E o mundo do devir e dos indivíduos que se vê assim libertado, não está ao mesmo tempo condenado a sofrer por causa disso novas consequências?" (FT: § 6) "Esta palavra perigosa, hybris, é de fato a pedra de toque de todo discípulo de Heráclito. É aqui que pode demonstrar sua compreensão ou não da doutrina do mestre. Será que este mundo é o lugar da culpa, da iniquidade, da contradição, do sofrimento?” (FT: § 7)

O mundo é uma obra em vias de realização, embora nos pareça um grande fardo a carregar, especialmente quando nos é colocado sobre os ombros toda a culpa, ou pecado original, de termos herdado seu conhecimento, e a ele nos sentirmos obrigado a esgotá-lo. O que não significa que o intelecto tenha que pegar para si a extrema necessidade de encerrar esta obra, esgotando seus fundamentos. A satisfação contemplativa dá o teor da ‘filosofia de vida’. E a ela deveríamos nos apegar para desafogar tamanho fardo.

segunda-feira, 23 de março de 2009

A Vida é uma Cilada III



A Caixa de Pandora


Camargo quando abriu sua caixa postal, no dia seguinte, nem levou em conta o fato inusitado de receber um adiantamento que, por si só, já pagava o caso, tamanha a crise financeira pela qual passava. Nem sequer desconfiou da forma como o caso foi lhe transmitido. Afinal, os tempos mudaram. Não havia mais escritórios rotos e mal-cheirosos ou becos escuros, agora era através da internet, do celular que os casos, impessoalmente, eram passados. Divertiu-se Camargo ao pensar isso.


Pena que seria a última descontração do longo dia que só estava começando. Pois, logo que viu que no lugar de um envelope ou de uma pasta, como de costume, havia uma caixa e que esta tinha um peso muito superior a que alguns papéis e fotos teriam, o sinal de alerta acendera na cabeça de Camargo.


Alguns passos rua acima, onde ficava o Correio, quando então, parou na banca de jornal e comprou uma Folha para ler a coluna social, o susto que levou, bambeou suas pernas ao ponto de quase cair ao chão. Na manchete estava: “Paulo Almeida Prado, industrial assassinado misteriosamente”.


Ao abrir na página da notícia, seu susto virou desespero ao ver sua cliente na foto, aos prantos chorando pela morte do marido sexagenário.


- Sexagenário? Pensou alto Camargo.


Ao chegar a sua espelunca, nem mal sentou naquilo que um dia foi um sofá, abriu o pacote e o que viu foi a confirmação de uma enorme enrascada em que se metera. Na caixa se encontrava uma arma, possivelmente, usada na noite anterior, pois estava cheirando a pólvora. E abaixo da arma, estava um bilhete impresso escrito em computador: “Não lhe cause sofrimento, seja breve e não deixe pistas. Será muito bem recompensado.”


Enquanto pensava nos últimos lances de sua medíocre vida, forçando a mente para colocar um pouco de ordem no turbilhão de pensamentos que o perturbava, quando então conseguiu focar os detalhes do seu encontro no dia anterior... Visualizando em pensamento a tal Juliana com o celular à mesa, não havia trocado uma palavra se quer com ela,...


“Bum, bum, bum”. Nesse momento, o pensamento de Camargo é interrompido pelo barulho de sua porta chutada.


- Abra a porta Camargo e não resista, temos um mandado... “a porta cai”Policiais armados logo imobilizam Camargo.


- Que fria você se meteu, heim?


- Qual a acusação?


- Você não sabe? Você está sendo acusado de assassinar Paulo Almeida Prado!


- Revistem o quarto todo!


- Nem precisa chefe, olha só o que tem nessa caixa!

domingo, 22 de março de 2009

A Vida é uma Cilada II




O Caso Típico



Quando chegou ao lugar marcado, já fazia algum tempo que Camargo tomara um banho em água fria e a sua aparência quase conseguia disfarçar suas rotineiras investidas noturnas aos piores puteiros da cidade. É incrível o crédito policial que ainda detinha nessas espeluncas, justamente por fingir, quando ainda era delegado, que nada demais rolava nesses locais de prazeres baratos.Nesse momento, ao seu lado sentava-se um homem de terno preto alto e forte que disse:
- Eu vim em nome de Dona Juliana, a mulher que me pediu para contratar seus serviços ontem por telefone, ela está ali naquela mesa em frente, com o celular na mão, está vendo? Seja discreto, por favor.



- Sim, estou.



À mesa indicada estava uma suntuosa loira que, mesmo para o ambiente que não era nem um pouco modesto, se destacava entre os que ali estavam, principalmente, em comparação ao desleixo clássico de Camargo. Ela tentava ser discreta, embora, com um rosto harmonioso, preenchidos por delicados lábios carnudos e com um corpo escultural, isso fosse quase impossível.



- Por que tanta precaução, eu sou um profissional.



- Por favor, não se ofenda, a Dona Juliana é uma pessoa conhecida, freqüentemente está nas colunas sociais.



Camargo, como é de praxe, demonstrou que o caso era delicado e que devido a discrição máxima exigida pela cliente, seus serviços custariam um pouco mais.



- Tudo bem, dinheiro não é problema.



E quando Camargo falou o preço e ele aceitou de primeira, causou um terrível arrependimento no detetive que, pensara, devia ter cobrado mais.



- Você tem celular, detetive?



- Sim, por quê?



- Vou passar o número para a Sra. Juliana, assim, ela negociará pessoalmente contigo.



- Mas, ela está logo ali...



- Lembre-se, você vai ganhar pela discrição.



O homem alto de terno escuro deixa o balcão, passa por Juliana e discretamente deixa o guardanapo com número do celular de Camargo sobre a mesa. Quem não tivesse vendo, como Camargo via, não perceberia nada.



Logo depois o celular de Camargo toca o sinal de mensagem de texto que dizia:



- “Quero que investigue Paulo m u irm e sócio na empresa acho que ele está me traindo”. A mensagem, apesar de alguns erros de português, era inteligível, pensava ao ler, Camargo.



Na mensagem seguinte: “Deixarei o dinheiro e tudo que precisa na caixa postal indicada no seu anúncio de jornal”. “Tome cuidado, tudo deve ser tratado com a mais alta discrição, ok?”



“Ok!”, tecla Camargo respondendo às mensagens que recebera.



Logo depois, Juliana levanta-se e sai com a máxima sutileza que sua beleza estonteante poderia permitir. O cara alto, possivelmente, o chofer, já não se encontrava no requintado bar da Consolação.



O caso era aparentemente simples, meditava Camargo, sorvendo um caríssimo pingado, ele preferiria uma dose de qualquer coisa, mas seu dinheiro só lhe deixava a opção do café com leite. Tudo indicava que o marido de sua cliente, Juliana, que fora, por certo, obrigada pela família do noivo a retirar seu sobrenome de solteira, casara com um playboy que fizera dela apenas mais uma de suas “máquinas” que compunham sua coleção, como uma Ferrari, uma Masserati e assim, por diante. Iludira a moça na flor da idade, como um sedutor fingindo ser o “príncipe encantado” de seus sonhos juvenis. Agora, deixava aquela beldade empoeirar, enquanto ficava mais tarde no “escritório” e em “reuniões” até madrugadas a fora, sem dar a menor satisfação a sua mulher. Era o típico caso da mulher apaixonada traída pelo marido rico.


sábado, 21 de março de 2009

A Vida é uma Cilada I



Lembranças, Mágoas e Medos



Era quase meio-dia e o cheiro fétido da fábrica de lingüiça, que caracterizava o lado negro daquela cidade hostil, ainda entrava nas narinas sem pedir licença. Sinal de que Camargo ainda não estava bêbado. Por isso, encostado ao balcão do Iraci’s Bar, uma espelunca com nome de bar de filme hollywoodiano tipo “d”, estava ele, o homem arruinado e fracassado em todas as circunstâncias de sua medíocre vida.



- Mais uma vodka!



- Aqui está!



- Glu glu glu... Ahhhrrrgg!



Talvez a infelicidade de Camargo devia-se unicamente a sua personalidade autodestrutiva, a seu comportamento blasé e a seu agudo pessimismo em relação a tudo, o que lhe dava um ar gélido, mal-humorado e tedioso. Isso, sem dúvida, contribuiu para o fim de seu relacionamento com Sara, sua ex-esposa.



Porém, nada incomodava mais Camargo, do que a lembrança dessa perda estar agora presente, se revelando com algum valor e lhe mostrando que de fato foi uma perda e que ele realmente é um fracassado que não serve nem para perceber o que realmente importa para a sua vida.



Por outro lado, sua resignação à derrota o forçava a inércia que, em termos práticos, o levou ao álcool e ao aumento progressivo de suas já características e constantes bebedeiras homéricas.



O álcool da vodca barata já afetava seu cérebro quando lhe veio o seguinte pensamento: (sem respeito a qualquer ordem cronológica, aliás, o que veio antes?) Sua ruína profissional ou o fim do seu casamento? A ordem dos fracassos não altera o resultado, pois eles se amontoam uns sobre os outros e a desordem os confunde aumentando o peso que cada um tem, na soma que se acumula sobre seus ombros em forma de culpa.



E a culpa, na vida de Camargo, tomava forma na imagem de socos e pontapés desferidos sobre um pedófilo que abusava de um garoto em plena Avenida Paulista numa noite fria e úmida da Capital. Tomava forma na raiva e na injustiça que sentiu quando foi acusado de abuso de poder contra o gerente de um banco multinacional por ter lhe espancado simplesmente por dar esmola a um menino de rua. Desde então Camargo trabalha por conta própria.



Mas, apesar de tanta mágoa, o que o levou até aquela espelunca de bar onde se encontrava, não foram lembranças, mas o medo provocado por uma caixa que ele pegou há algumas horas atrás, em virtude de um caso, que agora, soava muito esquisito. Assim, a poucos passos de seu cafofo, decidiu tomar umas e outras para se encorajar a abrir aquela caixa, pois algo lhe dizia que dali, como na mitológica caixa de pandora, sairia todos os males que atingiria sua vida a partir daquele momento.



Antes disso, naquele mesmo dia, adormecido ao sofá de seu horripilante quarto alugado ao lado da estação do Belenzinho. Depois de sorver o último gole de conhaque na noite anterior e apagar estatelado, Camargo acordara assustado pensando ser o mini-terremoto provocado pelo metrô que sempre passava quando tentava dormir. Mas, quando recobrou a consciência percebeu que era apenas o telefone tocando pela primeira vez desde que se estabeleceu ali.



- Alô?



Responde uma voz masculina:- ah, oi, estou ligando para falar sobre o anúncio de investigador particular, você está disponível?



- Ah, sim, claro, estou. Qual é o caso?



- Estou representando uma pessoa, é um caso que exige muita discrição, devemos conversar em particular.



- Claro, quando e onde?



- Deixa eu ver, no Donni’s Bar, que tal? Conhece?



- Donni’s Bar, não. Qual é o endereço?



- Fica na Consolação perto da...



Depois de anotar o endereço, Camargo pensou que deveria ter demonstrado menos ansiedade e interesse, isso comprometeria os honorários. Mas como estava vivendo de favores e da “pendura” da Mercearia do Seu Rui, que já estava impaciente com os atrasos e com a falta de perspectiva de pagamentos, e ao ouvir a voz que acabara de requisitar seus serviços, não conseguiu se controlar, deixando a verdadeira impressão de quem precisava desesperadamente de dinheiro.

terça-feira, 17 de março de 2009

Crônicas do Futebol II

Pita, um jogador torcedor

Se todo brasileiro que se preze sonha algum dia em ser jogador de futebol, eu, que não fujo a regra, sonhava em ser o Pita do São Paulo, jogador ágil, habilidoso e inteligente, além é claro, de ser tímido, como eu.

Enquanto os meus colegas, quando jogávamos em nossos “contras” e peladas periódicas, diziam a cada lance que eram Careca, Zico, Sócrates, Maradona, Platini, Paolo Rossi, Matheus, Miller, Taffarel, eu; simplesmente, era o Pita. Para mim, ele era o melhor, o mais clássico e o mais interessante jogador do futebol brasileiro dos anos 80.

Muitos seriam os motivos que me levaram a incorporar o Pita em nossas peladas. A timidez do jogador nas entrevistas, as raríssimas chances que teve na Seleção, suas grandes jogadas e gols... Lembro, porém, de alguns lances e momentos inesquecíveis. O golaço, é óbvio, do Pita contra o Palmeiras em 1985, naquele jogo que terminou 4 a 4, no qual ele foi o melhor jogador em campo.A raspadela de cabeça na final do Brasileiro de 1986 que deu a chance a Careca de empatar a partida no segundo tempo da prorrogação, jogo ao qual o São Paulo ganhou nos pênaltis.

Outros tantos jogos em que Pita foi o maestro, o jogador que quando a partida estava complicada era acionado e requisitado pelos companheiros ou visado pelos adversários.

Mas, o que eu mais lembro é de um jogo pela Copa União de 1987, jogava Santos e Cruzeiro no Pacaembu, pelo regulamento, o São Paulo, depois de uma sonora goleada no Internacional de Porto Alegre, torcia para que o Santos, que não tinha mais chance, apenas empatasse o jogo contra o Cruzeiro.

Quando, de repente, a câmera focaliza um torcedor com a bandeira do São Paulo na arquibancada, a imagem se aproximou e... quem? Pita, torcendo pelo seu time do coração e, ao mesmo tempo, para o time que o revelou para o futebol, o Santos.

Se não fosse pela péssima arbitragem de José Roberto Right que validou um gol ilegal do Cruzeiro aos 46 minutos do 2º tempo, seria uma lembrança feliz, o São Paulo teria ido a semi-final daquela fatídica Copa União, e o Flamengo, que era realmente um timaço, teria, talvez, maior dificuldade e vencer aquele Brasileiro.

Entretanto, mesmo com um final triste, a imagem de Pita, que devoto e humildemente, como um mero torcedor abraçava a bandeira de seu time na Arquibancada do Pacaembu, permanece límpida e clara na minha memória.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Crônicas do Futebol I

Canhoteiro, o gênio

Dizem alguns que têm bem mais primaveras do que eu, que Garrincha seria menos idolatrado se um certo jogador do São Paulo, o maior de todos que vestiu a gloriosa camisa tricolor, não tivesse um medo patológico por aviões.



Essa seria a explicação plausível para o fato de um jogador tão talentoso que, diziam, distribuía laranjas com os pés para os outros jogadores fazendo embaixadinhas, não ter deslanchado na seleção brasileira e ter perdido a vaga de ponteiro esquerdo na escalação de Feola para a Copa de 1958, para um medíocre jogador chamado Zagalo.



José Ribamar de Oliveira, porém, não era apenas uma malabarista da bola, era também um jogador objetivo que fazia muitos gols, fez 103 pelo São Paulo.



Se tivesse dado certo, mas na vida quase sempre isso não acontece, talvez, atualmente, conheceríamos Garrincha como o jogador que fazia na direita o que Canhoteiro fazia na esquerda. Era também boêmio.



Canhoteiro, esse era o nome dele, como escreveu Renato Pompeu em sua biografia sobre o craque: “Canhoteiro: o homem que driblou a glória” é uma página esmaecida e apagada de nossa história que merece ser enaltecida.



VIVA CANHOTEIRO!

quinta-feira, 12 de março de 2009

Prefácio Pouquíssimo Interessantíssimo... de um livro nunca publicado

E Mais uma Criança Nasceu...
Com cara de Abortada



A bandeira preta da multidão carregada e os barulhos das máquinas paradas que não fazem barulho. O que me dói é saber a dor e dizê-la, mas dizendo desfaz a dor, ai, muito Pessoa no isso.

O dia de sol claro molhou de raios a folha que só podia ser branca, mas era preta qual minha dor. Já dizia Mário de Andrade o cara que estou tentando plagiar agora, mas não estou conseguindo e essa é a intenção não intencional, em princípio, porque é melhor que a priori. O que Mário de Andrade disse mesmo, xi, esqueci.

O tecnologismo é um plágio mal feito do mundo. Da realidade. Iii, acho que era vírgula no lugar do ponto. Ahh, língua maltratada e, por isso, mais digestiva e deliciosa, já imaginou o Grande Sertão: Veredas em linguagem culta, eu tirava o Guimarães do meu nome, ou melhor, não precisava o meu Guimarães seria mais conhecido do que do Rosa, ai que soberba.

A moda da antimoda pretende ser o tecnologismo, o tecnologismo sem moda é a moda do tecnologismo inversamente no desfile da antimoda, que não desfila, se é que me entendem. Mas se não, tudo bem, a boa frase não é a inteligível, mas a que nos faz necessário passar pelo crivo do pensamento. É aquela a qual nos identificamos. Será? É isso. É o que nos deixa dúvida e a dúvida é o preço – lembrem-se  – da pureza. Oba, essa citação eu não dou referência, só dica: é de uma banda que previu o futuro. Difícil. Vale um milhão em dólares argentinos. Não querem, ahh, tudo bem, eu também não.

Meu deus: gritou alguém, deus não, Deus. Porque Deus que é Deus só é Deus se for Deus com letra maiúscula, pelo menos a inicial. Ai que tanto Deus, mas ainda são poucos para os que têm no mundo. A criatividade e a fragilidade humana é insuperável, tem Deus para tudo o que é gosto, quem dera fossemos imortais, assim, não existiria nenhum Deus para crermos. O meu Deus não existe, pois acho que é muito egoísmo ter um Deus só para mim. Um Deus que me ajuda a fazer um gol, a ficar rico, um Deus para cada desejo mesquinho. Já tem gente – que coloquial – vou tentar de novo, ou melhor, outra vez. Há pessoas – foi o máximo que consegui – que falam mais no demônio que em Deus, vêem demônio em tudo – repare demônio é em minúsculo – afinal de bom mesmo, ele só inventou o Rock, e que invenção, heim? Mas como eu ia dizendo, tem gente que se um cachorro faz xixi, ahh foi coisa do demônio. Eu acho, é lógico se sou eu que estou falando é claro que eu acho, evitem o eu acho, denota insegurança, mas vou lá, Deus e o demônio têm coisas mais sérias para fazer a ficar se preocupando com picuinhas. E a inteligência humana não é capaz de tomar consciência de algo que está para além dela, de qualquer forma, moralmente é muito importante acreditarmos em Deus com inicial maiúscula, ajuda a lembrarmos da fragilidade humana e a enaltecê-la, diante da incomensurável pilha de porquês qual aquele monte de tartarugas que segurava o mundo há alguns milhões de anos.!? Lembra? Nem eu, não sou tão velho assim. Mas o problema é justamente o enaltecimento. O ser humano também é grande, diria, em certo sentido, ou em todos os sentidos, maior que os Deuses, pois inventou um Deus para cada necessidade, para cada cor e gosto.

Arrá, pensaram que eu ia colocar o atrás tal qual o Raul Seixas (estou me referindo a frase das tartarugas, há algumas linhas acima, [repararam no “acima” está no mesmo sentido do que atrás, isso quer dizer que eu dancei!] a escrita é muito linear não dá para expressar a difusão da mente, mas eu estou tentando), se enganaram quadradamente, mas como o meu word não reconheceu o quadradamente é melhor o usual: redondamente. Mas veja só, meu word não aceitou nem mesmo seu nome, e tá bicho burro, até parece o cachorro da Fernandinha que não aprecia o comercial bacana de frango, mas o cachorro é mais esperto.

E já dizia um famoso reacionário revolucionário talvez, por isso, famoso, que a televisão mente, mas o fato é que essa citação não tem a menor importância até porque o cara torce para o Fluminense, e foi devido ao próprio, ou melhor a derrota do Fluminense, mais especificamente, a um gol sofrido que ele cunhou essa frase; portanto, não é muito certo do(a) (G)globo, não por ter criado essa frase, mas por torcer por Fluminense –, eu também simpatizo pelo time – como diz meu colega (certo do globo) da vila Tocantins, este eu cito porque ninguém o conhece, mas aquele eu só dou dica: é, foi, será, sempre, porque artista não morre descansa na obra que respira o elixir da imortalidade: o amor que brotou do tempo não tem idade, pois quem ama escutou o apelo da eternidade. Xi. Agora já são duas dicas o primeiro: é irmão do Maracanã, o segundo nos ensinou que o amor se ama não se aprende, ou melhor, aprende-se making love (só para mencionar uma linda música do Air Suply e para lembrar do tempo em que transpirava dançando-a) igual Deus, não se explica apenas fé é o que há, se for explicar você vira um ateu ou agnóstico que no final das contas é um ateu dissimulado, covarde. Mas, o meu colega do: não é certo do globo, é o Juninho gerente de um restaurante em Londres que na falta de funcionários com melhor (des)qualificação acaba exercendo a função de lavador de pratos.

O tecnologismo é a fé pessimista escancarada, é o homem se projetando em seu sonho, é o sonhar acordado, pensando dormir sonhando, pensando que o sonho é o sonho de outro e que a vida é apenas um sonho de alguém. É o verso embriagado de baba, do nojo do vômito no chão sujando o esgoto, mas é também o grito surdo à beleza seca, ao luxo vazio, é o escárnio ao escárnio petulante é a lama saindo das galerias a inundar os bairros nobres, é a pobreza engolindo a riqueza que a criou, mostrando a ela, a riqueza, que não é mais possível fugir, é, finalmente, a ciência que um dia, para ser ciência, precisou ser apropriada, hoje para continuar sendo ciência, tem que ser socializada.

Agora, achem logo um planeta habitável, porque do jeito que está indo, esse aqui não vai durar muito tempo.

Meu sonho era ter desenhado a Crise nas Infinitas Terras, onde se tinha uma terra para cada super homem até que foi engolido pelo universo de antimatéria, mas depois de uma noite estressante, decidi ser escritor, mesmo sem saber escrever, achei que isso não era importante. Mas, antes disso, sonhava em ser o Pita do São Paulo, desse sonho eu só desisti com os meus quartoze anos, ou melhor, com uma pancada no joelho quando tinha essa idade, ou com o trauma infantil de ter ficado 1 ano sem andar. Depois falei: vou ser jornalista esportivo, porque todo jogador frustrado que se preze torna-se comentarista de futebol, isto é, aquilo que ele nunca soube fazer bem, passa a ser objeto de sua crítica.

Enfim, depois das finanças terem inviabilizado minha carreira de jornalista e, por tabela, a de economista, optei por ser historiador. E me parece que foi uma decisão certa do acaso. O acaso que faz parte da história e como faz, certa vez, quando já tinha lido todos os livros do Sidney Sheldon – pelo menos até 1996, pois ele escreve um por ano –, decidi me tornar intelectual, então peguei um conto do Sartre na prateleira da biblioteca municipal da qual eu era freguês. O conto era O Muro. Nossa que pedantismo, mencionei Sartre só pela importância do acaso em minha vida.

O pedantismo, no entanto, não é algo terrivelmente ruim, há um lado de positivo em ser pedante. E quero a todo instante falar do que eu não sei, claro do que eu sei também, mas o que a gente não domina é muito mais prazeroso palrar. Palrar, esse é um exemplo concreto do meu pedantismo, pelo menos nesse caso não precisei consultar o dicionário (o livro que mais li em toda minha vida, e o mais chato), até porque eu também, na biblioteca pública, lia Machado de Assis, José de Alencar, Aluísio de Azevedo, etecetera ou et cetera, como queira, só dou essas duas alternativas porque eu não gosto de abreviaturas, sem bem que, no caso da palavra abreviatura seria até bom, ela é grande demais para significar uma redução.

E tem mais, não acabou. Eu verti lágrimas pela morte da Bertoleza. E até meus poucos vinte anos eu ainda preferia:

Além muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.


O favo da jati não era doce como seu sorriso: nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado
”.

À:

Idéia Fixa de Brás Cubas

A minha idéia, depois de tantas cabriolas, constituíra-se idéia fixa. Deus te livre, leitor, de uma idéia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho.(...)

Viva pois a história, a volúvel história que dá para tudo; e. tornando à idéia fixa, direi que é ela a que faz os varões fortes e os doidos. A idéia móbil, vaga ou furta-cor é a que faz os Claúdios –, formula Suetônio.

Era fixa minha idéia, fixa como... Não me ocorre nada que seja assaz fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez a finada dieta germânica. Veja leitor a comparação que melhor lhe quadra, veja-a e não esteja daí a torcer o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias
”.

Talvez o leitor não saiba, que pretensão a minha, nem sei se o que escrevo um dia será lido por outros olhos, nem sei se quero. Mas como dizia Mário de Andrade, antes que eu me esqueça de novo, ai me esqueci. Parece com o “ai que preguiça” de um tal Macunaíma. Mas o fato é que Machado de Assis dado na sétima série é anular futuros leitores, pois nenhum aluno em sua tenra idade tem saco para ficar consultando dicionário, muito menos percorrer a escrita ébria e reflexiva, irônica do realismo machadiano. Portanto, o romantismo e sua linguagem hiperbólica chamou-me mais atenção. Embora naquele tempo, por ser fã de Darwin, devido à aula de biologia mais legal que já tinha presenciado (eu odeio biologia, como Rotten odiava Pink Floyd, aliás, o meu ódio é um pouquinho maior, não era tão pitoresco, mas era maior, aliás, é, pois eu continuo odiando biologia, embora hoje exista o assunto clonagem, que todos têm que estar atento e, além do mais, como direi a frente, genética é legal), até a aula de genética, sobre Mendel e, claro sobre os sistemas reprodutores humanos. Assim, passei admirar a forma como foram construídas as personagens de O Cortiço. Posteriormente, leituras como a de Renato Ortiz, fez-me repensar o meu gosto, que, inevitavelmente é mais racional hoje em dia, mas Kant disse outro dia para mim que o valor estético está ligado ao grau de razão, então tudo bem. Mas Germinal é maravilhoso, e Zola também tinha outras influências que o naturalismo brasileiro nunca chegou a ter.

Basicamente essas são algumas das minhas influências literárias, Frank Miller e Alan Moore foram outras, On The Road, Grande Sertão Veredas embora ainda esteja na página 137, Cem Anos de Solidão, Incidente em Antares que influenciou Gabriel Garcia Márques, continuando, Fernando Pessoa, Carlos Drumond, Clarice Lispector, Kafka, Balzac, Flaubert, Sartre, Dostoievisk, Gogol, Tolstoi, Henri Beyle e outros que não me lembro. Creio eu, no entanto, que nada me entusiasmou mais que as letras de Cazuza e Renato Russo literariamente, ainda que, sem a melodia, as letras não teriam aquela densidade metafísica que Hermano Viana utiliza como ilustração à música da Legião Urbana que, no entanto, é de Guimarães Rosa. Apesar disso, o contato com tais obras foi responsável por uma mudança de foco em minha vida.

Ê... veja só, lembrei o que ia dizer acerca de Mário de Andrade, é mais ou menos isso, como já deixei claro, minha memória é muito caprichosa. Ele uma vez escreveu que publicou seus versos por vaidade, e se não os tivesse publicados seria mais vaidade ainda.

Sou, portanto, o homem mais vaidoso do mundo.

À liberdade.

Por amor, eu cuspo no chão e digo adeus.

Vódkas, lamúrias e devaneios... numa noite qualquer de 1998.

sábado, 7 de março de 2009

Edrid


Viagem ao Fundo da Alma (Parte II)


"O homem não deve lamentar-se sobre si mesmo, o atrevimento desta façanha é como ir de encontro às vontades dos deuses. Desde que se introduza no veneno do mundo, devemos sorver até a última gota... é sua a obrigação de deleitar-se com o sofrimento do mundo. Nenhum lamento é tão legítimo como o suplício de Sísifo e Prometeu.

"Se te empenhas em desafiar a vida, seus pensamentos ou sentimentos podem assim fazer, no entanto, existe a necessidade de assumir as dores deste desafio.

"Com o jovem Werther, Goethe nos apresentou o mundo bucólico e belo do sofrimento. A fonte onde ele se deliciava poderia apresentar suplícios, como de fato aconteceu.

"Os males do destino precisam ser sentidos até o final, nada interrompe o suplício de uma sina, posta em vida. É esta que alimenta nossos atos, tudo aquilo que fazemos tem como respaldo este suplício quase ilimitado; a vida..."

A sina de Edrid estava posta, seu destino, ao ser traçado, apresentava as várias possibilidades de minimizar o suplício. São nuances que, por não serem mutáveis, possibilitava ao nosso anti-herói reconhecer a vida. Apesar de tentar minimizar o sofrimento, no fundo, sabia que isso não fazia muito sentido, uma vez que, desde sua juventude, quando desabrochou em sua consciência o espírito das humanidades, já existia alguns sinais de que a vida não estava tão ao alcance de suas mãos. Mas, ainda assim, Edrid insistia em sua liberdade, e foi quando descobriu que estava condenado a esse estado de consciência.

Ser livre significava sua condenação, porém, estava disposto a desafiar esta sina, vivendo da melhor forma possível. E foi aí que escolheu a reclusão física, só ela possibilitaria sua libertação espiritual. Ainda hoje, tem empreendido este método como sistemática de vida, buscando a positividade do mal-estar.

A negatividade do bem-estar pode ser percebida com mais clareza em um exemplo corriqueiro; pergunto-lhes: em algum momento de prazer, ou talvez de bem estar, sentimos completamente nosso corpo? Acho que não, só sentimos nosso corpo quando ele está enfermo, ou seja, a dor incomoda, todavia, coloca o corpo em evidência. É nesse momento que apresento-lhes a superficialidade do bem-estar... ele nos é tão supérfluo que nem o sentimos. Já, quanto à dor, é tão presente em nossa vida que, ao leve impacto, ela explode e nos apresenta o quanto nos enganamos.

Nossa vontade é-nos apresentada no instante do sofrimento. Ter vontade é ser livre e independente, em relação ao mundo... alguma vez observamos nossa vontade quando estávamos em bem-estar com a vida? Acho que não, justo por este motivo que nosso anti-herói prefere a modorrenta existência de uma catacumba, ao claro e enfastiante bem-estar de um dia ensolarado.

Na felicidade nossas vontades são enganadas, em contrapartida, na catacumba da alma sentimos a intensa sensação de nossa vida, pulsando forte entre os arvoredos espinhentos, mostrando seu verdadeiro caminho... o sangue de uma rosa despedaçada. Esta vida é-nos presente somente em instantes de dor e sofrimento.

Enfim, a totalidade de nossos interesses é sentida quando o sapato aperta, nisto se baseia a negatividade do bem-estar e da felicidade, muitas vezes ressaltada por mim, em oposição à positividade da dor. Se Schopenhauer assim apresenta a vida, sou o primeiro a endossá-la, sobretudo quando sinto, não somente, o calo do pé, como também o mau-cheiro da matéria morta e podre que se esconde entre nossos dedos, depois de uma tarde suarenta e quente.

Ao comparar-nos com carneiros, Schopenhauer mostra o lado açougueiro de cada um. Apenas sentimo-nos felizes quando vemos o sofrimento do outro, este consolo nem mesmo a vida pode nos tirar.

A ausência de sofrimento é o lado positivo da vida, dizem uns, no entanto, é nestes momentos que o tédio toma conta dos homens. Quem, em sã consciência, não blasfemou contra a entediante sensação de nada fazer, ou nada sentir? Por isso sofremos, precisamos de um mastro para navegar em segurança... Quem nunca ousou dizer que; “se cresce no sofrimento”? Eis uma prova empírica do que digo.

Precisamos de guerra para alcançarmos nossa maioridade, criamos nossa identidade e movimentamos nossa economia. O Príncipe weberiano tem, dentro de seu Palácio, e nas caixas de sua Fazenda, os modelos desta guerra.

A guerra que Edrid trava todos os dias é a guerra da sobrevivência, seu corpo precisa se manter em pé... todavia, mantêm-se em pé aquele que luta por isso.

Nem mesmo a chuva, que molha os infelizes, transtorna Edrid. Sua indiferença é arma de segurança, neste mundo apenas sobrevive o mais forte. Ao manter-se indiferente às guerras humanas, tem travado uma batalha individual consigo mesmo. Seu inconsciente se mantêm em guerra eterna... como a vida, apenas sentimos o mundo, pelo viés da guerra. Medimos nossa existência pelos intervalos das guerras, intercalamos nossa consciência em instantes de martírio ou de revoada, entretanto, sabemos que o pouso é breve... a fome é parceira e companheira... sua pujante presença não é esquecida, apenas revista e re-sentida, quiçá revisitada.


2002

quinta-feira, 5 de março de 2009

A melhor resenha sobre o melhor filme: Recordações de amanhã por José Carlos Avellar



A mulher gorda da tabacaria, desenho de Fellini para Amarcord


Poucos realizadores contemporâneos parecem experimentar com igual intensidade a alegria que toma conta de Federico Fellini todas as vezes que ele brinca com a aparelhagem cinematográfica. Ou, digamos, para reduzir o exagero da afirmação: raros diretores fazem como ele filmes para contar apenas, ou principalmente, a alegria que sentem ao fazer um filme. Fellini na verdade inventa histórias para contar que gosta de filmar histórias. Amarcord, antes de qualquer outra coisa, é uma demonstração deste prazer de filmar comparável ao de uma criança diante de um brinquedo na aparência conhecido, mas de fato sempre novo.


Na porta do hospício o pai de Tita procura um enfermeiro para saber da saúde mental de seu irmão Teo, que ele viera buscar para um passeio com o resto da família. “Está bem, muito bem. Normal” – responde o enfermeiro, e diante da insistência na pergunta repete: “Normal". E acrescenta: “Não está menos normal que as pessoas que vivem fora do hospício”.


Durante o passeio, o normal tio Teo pára na estrada para urinar e esquece de desabotoar a calça. Mais adiante sobe numa árvore e se recusa a descer: exige que lhe tragam uma mulher, joga pedras nos que tentam se aproximar e convencê-lo a voltar e grita cada vez mais alto: “quero uma mulher!”


Amarcord é uma nova visita de Fellini a uma província inventada por ele mesmo em filmes anteriores; um novo encontro com personagens que fazem parte da família cinematográfica do diretor. Familiares que podem ser definidos com aquelas mesmas palavras usadas pelo enfermeiro para o pai de Tita: Normais. Não são menos loucos que as pessoas que vivem no hospício.


Quando as pequenas extravagâncias do tio Teo surgem na tela, um pouco depois da metade do filme, não aparecem mais como um sinal de loucura, mas como um comportamento normal integrado às particulares convenções gerais da província dos primos, tios e conhecidos de Fellini.


O magro tio Teo que sobe numa árvore à procura de uma mulher não difere muito da gorda proprietária da tabacaria que baixa a porta da loja, e logo depois a blusa, para oferecer o imenso seio ao pequenino Tita. Não difere muito do desajeitado Biscein, que afirma ter feito amor com trinta mulheres numa só noite. Nem difere dos garotos que se masturbam com o pensamento em artistas de cinema ou nas garotas da cidade. Nem diferem da prostituta que sonha com a chegada de Gary Cooper à cidade para casar-se com ele e mudar de vida.


A normalidade especial do tio Teo, trepado numa árvore para agredir as pessoas a pedradas, é ingênua e humana assim como não é a fúria estúpida e ridícula da parada fascista, com enormes retratos de Mussolini feitos de flores. As pedras são mais delicadas e humanas que as flores e os frascos de óleo de rícino enfiados goela abaixo contra as vozes em desacordo com o fascismo.


Uma província tal como caricaturada aqui talvez tenha mesmo existido, com seus tios Teo, seus Biscein e suas tabacarias de mulheres gordas. Estas personagens e histórias podem ter ocorrido de verdade, mas Amarcord importa não como reconstituição do que ocorreu em algum momento no passado e sim como a projeção do que ocorre hoje, na memória, na lembrança, no imaginário, no instante presente do realizador.


E neste imaginário de agora a visita do líder fascista à província é um episódio central. É como se este pesadelo tragicômico fosse a imagem essencial, o ponto de partida para a invenção do filme. É como se o diretor quisesse dizer que na Itália contemporânea persiste algo da província de outrora e que nesse extemporâneo ambiente provinciano o fantasma do fascismo reaparecesse para fazer uma visita. O ridículo, o grotesco desta aparição comanda o episódio. Na cena predomina o gesto infantil para assinalar que a violência maior aqui resulta do fato desta visita do fascismo ter algo a ver com uma negação da maturidade. Nesta província em que o normal é ser criança, as pessoas se submetem quase sem resistência alguma a um poder que esconde sua brutalidade por trás de uma aparência bufa, circense.


Todos os personagens se encontram em cena na visita do líder fascista: professores, alunos, autoridades, advogados, prostitutas – cada um deles com suas pequenas normalidades:“Até então seus tiques pareciam inofensivos, mas reunidos nesta festa ganham um sentido diferente e me parecem uma demonstração clara de estupidez total”.


Uma volta à província ou uma volta da província, isto é: um retorno “à falta de informação, à ignorância dos problemas concretos e reais, à recusa de conhecer as coisas da vida por preguiça, preconceito, comodidade ou vaidade”. Uma volta à mesma província de loucuras inofensivas de Os boas vidas I Vittelloni (1953) e Oito e meio Otto e mezzo (1963) e da violência do fascismo de Roma Fellini Roma (1972).Tal como outros cineastas europeus contemporâneos (especialmente Ingmar Bergman) Fellini constrói seus filmes com os olhos voltados para personagens e temas levantados em trabalhos anteriores.


O titulo, que ele insiste ter escolhido pela sonoridade e não pelo significado, soa próximo de eu me recordo e se refere, talvez, principalmente ao que ele guarda na memória de seus primeiros filmes. É mais do que provável: a história possui verdadeiras lembranças da infância do diretor, mas desde seu título, desde a palavra que não existe, que foi inventada para dizer algo parecido com eu me recordo, o filme sugere que seu objetivo é lembrar-se de algo que não aconteceu.


Fellini pode ter vivido enquanto criança numa província e num tempo parecido com o da cidade em que vivem os personagens de seu filme, mas como agora vive no cinema, ele adulto se encontra numa realidadeoutra em que a memória pode ser livremente inventada, em que existe a possibilidade de pegar na memória até o que ainda não se encontra lá, recordar-se de outro modo, como sugere a imagem-título: Amarcord.


Mais precisamente, o filme é, sim, feito das lembranças da infância e adolescência do realizador, mas não como se ele tivesse ido buscar documentos para refrescar a memória – ele foi em busca dos filmes em que já tinha feito referências ligeiras a esta época de sua vida. Inventou uma ficção, não se propôs a uma reconstituição fiel, um documento.


Não os fatos como eles efetivamente existiram, mas como foram afetivamente guardados na memória, a realidade filtrada, corrigida, criticada, reinventada pela imaginação: o que se passou reaparece numa imagem que é mais uma reflexão do que um reflexo, que é uma espécie de memória do vai acontecer daqui a pouco, uma lembrança antecipada de amanhã.


O que importa não é a luz do sol, mas a ilusão de luz do sol que se possa criar num estúdio. Não um real nevoeiro, o mar, uma árvore, um transatlântico de verdade, mas os cenários, os efeitos mecânicos e os truques fotográficos capazes de criar uma ilusão de realidade (que exatamente porque percebida como uma ilusão) se mostra mais forte (e numa certa medida mais real) que o registro fotográfico do real.“A luz surge antes mesmo do argumento. Acredito na luz e a luz deve ser a exigida pela minha imaginação. Minha luz não será jamais a do sol. Acredito no cinema feito com a reconstrução no estúdio da luz do dia ou do mar. Reconstruí o mar em Amarcord e nada é mais verdadeiro na tela que este mar feito de duas telas de plástico agitadas por maquinistas de boa vontade”.


O som, como a imagem, é inventado: “durante a filmagem peço aos atores para repetirem números ou orações. O som, as falas, acrescento depois, na hora da dublagem, para controlar melhor vozes e texto”. Imagens e sons livremente inventados porque cada pedaço do filme deve atender às leis internas do espetáculo cinematográfico, leis determinadas por um impulso semelhante ao que conduz a normalidade do tio Teo, leis que obedecem à lógica de um sonho.


Fellini definiu certa vez o trabalho de criação artística como um mecanismo semelhante ao que inventa os sonhos, isto é, as imagens nascem sem controle da razão. Aparentemente ele se encontra agora no que definiu como a segunda fase do trabalho de criação, aquele feito a posterior, onde procuramos as chaves que possam explicar cada um dos signos. Ou então, mais fiel que nunca a seu método de trabalho, recorre aos filmes antigos como ponto de partida ideal para a criação de uma nova ilusão de realidade no estúdio.


A matéria-prima já não é o mundo que ele pode ver com seus olhos, nem mesmo o mundo que fixou em sua memória, mas uma livre invenção, feita à imagem e semelhança de uma paisagem natural, mas com o uso de plásticos e maquinistas de boa vontade.Zampanô, Guido, Trimalcione, Steiner, Snaporaz ou o tio Teo; Gelsomina, Cabiria, Saraghina, Gradisca, Luisa, ou a mulher gorda da tabacaria: Fellini conta histórias de personagens de ficção que ele viu em sonhos ou delírios e que existem para ele como se fossem pessoas vivas, como vizinhos, conhecidos, colegas de trabalho.


Existem numa dimensão especial, em luzes e sons, e estimulam a brincadeira de fazer um filme, de repetir alegremente a mágica de dar vida a uma sala escura. Formas, músicas e ruídos livremente gravados num pedaço de filme sem outro qualquer compromisso além de convidar a platéia a participar de uma brincadeira.“O palco com suas luzes apagadas exerce uma enorme fascinação sobre mim. Imaginar um cenário, maquilar um ator, vesti-lo, estimular seus gestos, são coisas que me dominam de forma absoluta. Sei bem que isto está fora de moda, que parece um modo de fugir da realidade. Sei dos limites, das alienações, dos riscos que tudo isto comporta.


Mas não conheço outra maneira de me sentir à vontade, tão de acordo comigo mesmo. Só ao fazer cinema. Não sei mesmo distinguir um filme do outro – que dizer, falo de meus filmes. Tenho a sensação de haver filmado sempre a mesma coisa. São imagens, e somente imagens, que filmei utilizando o mesmo material. Fui, talvez, solicitado a cada instante por pressões diferentes, mas o mesmo material. O que sei é que obedeço um impulso para fazer um filme. Não digo isto para aparentar modéstia. Francamente, contar histórias me parece a única coisa que vale a pena ser feita. Quando eu realizo um filme me sinto livre, livre de todos os embaraços. Sinto que tenho sorte. Fico feliz ao participar outra vez deste brinquedo chamado cinema”.


Texto escrito para o jornal e publicado em julho de 1973