quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Falando de Eu-Consciência


Má-Consciência...


E por “eu”, mais que quaisquer outras informações, temos em mente a noção de consciência, no entanto, do ponto de vista da cognoscência essa tal de consciência tem muito mais lacunas que as letras de sua palavra. Daí a compreensão de que esta consciência (ou má consciência, referindo-se a filósofos como Giacóia e Nietzsche) é nomeada por Giacóia Jr.em um curso proferido no Rio de Janeiro, pelo Núcleo Philemon (http://www.rubedo.psc.br/artigosb/cursnite.htm), mencionando Nietzsche, como autoconsciência, ou mesmo o “Conhece-te a ti mesmo”, como poderá ser visto nos dois aforismas a seguir: “O problema do ter-consciência (mais corretamente: do tomar-consciência-de-si) só se apresenta a nós quando começamos a conceber em que medida poderíamos passar sem ela: e é nesse começo do conceber que nos coloca a fisiologia e a zoologia (as quais, portanto, precisaram de dois séculos para alcançar a premonição de Leibniz, que voava na sua dianteira). Poderíamos, com efeito, pensar, sentir, querer, recordar-nos, poderíamos igualmente "agir" em todo sentido da palavra: e, a despeito disso, não seria preciso que tudo isso nos "entrasse na consciência" (como se diz em imagem). A vida inteira seria possível sem que, por assim dizer, se visse no espelho: como, de fato, ainda agora, entre nós, a parte preponderante dessa vida se desenrola sem esse espelhamento – e aliás também nossa vida de pensamento, sentimento, vontade, por mais ofensivo que isso possa soar a um filósofo mais velho. Para que em geral consciência, se no principal ela é supérflua?” (Gaia Ciência: §354).

A grande questão que Nietzsche coloca aqui tem a ver, justamente devido esta contaminação que já atingira a consciência, com a constituição do que o Ocidente chamou de Ego (a partir de Freud), ou de Eu-Consciencial. Em sua filologia – gênese sintática –, consciência nos é apresentada como origem ou unidade originária, que sintetiza ou unifica o pensamento; e esse é o problema: nossa origem cultural seria o cristianismo, e já todo seu estilo de vida e de valores.

E ainda: “Já devem ter adivinhado o que certamente se produziu com tudo isso e debaixo de tudo isso. Essa vontade de se atormentar a si mesmo, essa crueldade do homem-animal interiorizado, caçado em si mesmo a golpes de pavor, encarcerado no “Estado” para ser domado, que teve de inventar a má consciência para se prejudicar depois que a saída mais natural desse querer-fazer-mal se encontrou obstruída – esse homem de má consciência se apoderou do pressuposto religioso para levar o martírio que se inflige até a dureza e o rigor mais espantosos. Uma falta contra Deus: dessa idéia faz um instrumento de tortura. Em “Deus” empunha as antíteses últimas que é capaz de encontrar com relação a seus instintos animais próprios e impossíveis de resgatar, interpreta esses próprios instintos animais como falta contra Deus (como hostilidade, rebelião, insurreição contra o “Senhor”, contra o “pai”, contra o ancestral primeiro e contra o começo do mundo): inflige-se o esquartejamento da contradição “Deus” e “diabo” projeta para fora dele todo Não que dirige a si mesmo, à natureza, à factualidade, sob forma de Sim, de coisa que é, encarnada, real, de Deus santo, de Deus juiz, de Deus algoz, do além, de eternidade, de martírio sem fim, de inferno, de incomensurabilidade do castigo e da falta.” (Genealogia da Moral: II; §22).

E é devido nossa origem cultural e identitária que o ir contra nos coloca em apuros, principalmente quando vamos contra toda uma construção cultural, identitária e histórica – isso, sem nos esquecermos do parâmetro psicológico da cognição humana. Ao mesmo tempo, que o não ir contra dá-nos uma angústia de prisão.


Nesse sentido, fazemos de conta que somos livres, em detrimento da crença no “comum” e no social-comunitário, como nos assevera Giacóia Jr. (http://www.rubedo.psc.br/artigosb/cursnite.htm), ainda dentro de seu comentário sobre a Gaia Ciência, no seguinte trecho: “Nietzsche no fundo quer dizer o seguinte: se você observa a fisiologia e a zoologia verá que o problema da consciência é, na verdade, um problema simplesmente superficial. Ou seja, que aquilo que define o essencial do sujeito não é, como pretendia a tradição filosófica, a sua capacidade de tomar-consciência-de-si, mas a consciência precisamente é um fenômeno secundário. O problema do ter-consciência, é precisamente aquilo que se constitui como problema. Ou seja, por que é que nós tomamos consciência de nós mesmos, em que medida isto é importante, tanto mais quanto nós podemos perfeitamente bem passar sem isso. Então, a fisiologia e a zoologia aqui, na verdade, simplesmente comprovam aquilo que Leibniz já tinha dito. Ou seja, que a consciência não é o essencial do sujeito, da subjetividade; mas a consciência é, na verdade, uma ínfima porção da subjetividade. Você pode ter vida, tanto animal quanto humana, sem que necessariamente o fenômeno da consciência-de-si tenha que se apresentar”. O problema então, é você, ou o que você traz sobre suas costas? Grande pergunta que não tenho resposta!

E este comunitário – e também identitário – nada mais é que, grosso modo, nivelar por baixo. Preso estaríamos se estivéssemos indo contra este statu quo da razão, que começara em Aristóteles e nos colocara em Hegel, repetindo o ciclo, e fechando o círculo. Quanto mais consciência tomamos, neste contexto, mais alienados nos tornaríamos; e mais sem-consciência do eu-primordial teremos..., ou será qua ainda há a possibilidade de compreendermos coisa tal antiga e tão cheia de pó?


quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Linguagem: um Possível Problema Cultural...


Parte III


No fundo da questão, o grande problema para Nietzsche seria a superação da metafísica, daí a preocupação em compreender qual é o motivo da linguagem, e de certa linguagem, ademais, aquilo que sai da construção cultural humana, por sí só, é problema insolúvel. Superando a metafísica, compreendemos melhor a linguagem, visto que ela poderia, muito bem, estar envolvida com a linguagem. Resta desvendar, contudo, o grau deste envolvimento, e se ele realmente existe.


Para tal, ao darmos um passo para trás, muito ainda poderíamos compreender, e assimilar, para a concretização deste projeto de ultrapassar toda a metafísica, e oferecer ao homem novos elementos de existência.


Ao buscar pelo espírito livre, mais que qualquer outra coisa, Nietzsche está travando uma briga feroz com a metafísica (e com quaisquer tipos de ignorância intelectual de seu tempo), donde até a linguagem servirá de instrumental: ora pelo lado da afirmação da metafísica, ora pelo lado da afirmação da vida (queiramos entender que metafísica e vida se contrapõem, assim melhor entenderíamos as palavras do filósofo). Nesta batalha de opostos, talvez o resultado final não tenha tanto valor; por outro lado, o processo que se desenrola deste (e por este) combate, aí sim, um grande recurso para que o homem consiga se livrar do forte grilhão metafísico.


Vejamos, pois, como isso poderia ser feito: "Então se faz necessário, porém, um movimento para trás: em tais representações ele tem de compreender a justificação histórica e igualmente a psicológica, tem de reconhecer como se originou delas o maior avanço da humanidade, e como sem este movimento para trás nos privaríamos do melhor que a humanidade produziu até hoje. - No tocante à metafísica filosófica, vejo cada vez mais homens que alcançaram o alvo negativo (de que toda metafísica positiva é um erro), mas ainda poucos que se movem alguns degraus para trás; pois deveríamos olhar a partir do último degrau da escada, mas não querer ficar sobre ele." (Humano Demasiado Humano: §20)


Como construção histórica que é, também a linguagem faz parte desta metafísica filosófica que nos circunda, por isso, este movimento para trás, tal como a escavação do arqueólogo, daria uma pequena medida do quanto, tanto na degenerescência, quanto na ascenção, o homem deixou muito de si, e da civilização, para trás, em suas andanças pela história e no confabular do pó por aí fixado.


O quanto, ainda, a força do tempo pesou sobre as suas decisões, levando-o, sempre de lado em lado. O fato de termos tirado-lhe o esteio (do tempo), dando-lhe a consciência, também contribuíra para os passos dados, e a direção tomada. História tem muito disso, mas tem muito mais do outro e, na maioria das vezes, é este outro que criara nossa consciência. Daí o papel justificativo, tanto da história quanto da psicologia. Ambos saberes serviram-lhe de chão.


Todavia, o que mais incomoda é o papel que a linguagem exerceu em tais motivações e escolhas. A humanidade, por seu caráter humano, sempre atuou como uma pressão sobre seus pares. Seja dando-lhes esteio, seja tirando-lhes solo, uma vez que, alguns esteios, ao invés de firmarem tais construções, as firmam para... jamais em si.


O olhar retrospecto pode servir de grande base para o projeto do espírito livre. O que se deseja, advindo deste olhar, é a integralidade do que se está mirando. O ponto chave, nesse sentido, é a forma como este olhar se dá, e não necessariamente para o lugar que o mesmo se volta.


Nietzsche dirá, numa pergunta, que "a humanidade gosta de afastar da mente as questões acerca da origem e dos primórdios", por isso "não é preciso estar quase desnumanizado, para sentir dentro de si tendência contrária?" (Humano Demasiado Humano: §1). E ao mesmo tempo em que faz essa pergunta, lança uma vontade afirmativa no ar. É como se ele quisesse demonstrar o quão certos sentimentos ainda poderão ser mais fidedignos de suas indagações. O próprio sentimento de humanidade: tão mais forte que os outros, e que nos identifica, como também, o que nos descaracteriza.


terça-feira, 25 de novembro de 2008

Linguagem: um Possível Problema Cultural...


Parte II


O futuro que se deseja, enquanto força de um destino ainda por construir, poderia ser a plena libertação deste homem, e a consolidação de um sintoma de espírito livre.


Os pássaros audazes que voam para além do arrecife (Aurora: §675) querem sempre ir mais longe, pois lhes parece que há um destino - quiçá, um futuro - ainda a ser conquistado. Coincidência ou não, parece que voam inspirados por uma memória escondida; jamais esqeucida: "Entretanto, todos os nossos grandes iniciados e todos os nossos precursores acabam por parar e o gesto da fadiga que pára, não é das atitudes mais nobres e mais graciosas: isso vai acontecer tanto para mim quanto para ti!" (Aurora: §675).


Não seria essa fadiga uma espécie de arma da linguagem para fazer valer sua vontade? Outra questão que se levanta; até que ponto também nossa memória não foi contaminada por essa verdade? O próprio fato de isso vir a acontecer - a fadiga, no caso - tanto para mim quanto para ti, já não está nos dando uma pista de como o signo ainda estaria afirmando sua vontade?


Um triste pesar, e um leve penar. Ambos sofrimentos e angústias que poderiam contribuir para a bancarrota do projeto.


E ainda, a melancolia de que tal projeto se dá como uma melancolia pelo futuro, além de uma fadiga por este presente sempre pretérito.


A cultura, e todas as informações que foram se acumulando ao longo da civilização, ainda deixam seu bafo morno nos dizer que o pó via muito alto.


E o sofrimento para com o passado de nossa cultura, seria outro elemento relevante para a constituição dessa linguagem que, apesar de parecer, pode não ser nossa: "Quem percebe de modo claro o problema da cultura, sofre de um sentimento semelhante ao de quem herdou uma riqueza adquirida legalmente, ou ao príncipe que governa graças às violências de seus antepassados. Pensa com tristeza em sua origem, e com frequência tem vergonha e fica irritado. Todo o montante de energia, vontade de viver e alegria que dedica ao que possui é muitas vezes contrabalançado por uma enorme fadiga: ele não consegue esquecer sua origem. Olha o futuro com melancolia; os seus descendentes, ele já sabe, sofrerão do passado assim como ele. (Humano Demasiado Humano: §249)


Assim como o sofrimento de algo incerto, o fato de termor um futuro que nos faça nos envergonhar do mesmo, traz para o pássaro que tenta ir além do arrecife, talvez seguindo sua memória, uma espécie de ressentimento melancólico. Há ainda por traz dele muita coisa ainda a escavar. Tal como um arqueólogo, é preciso tirar as pistas do limbo escuro e esquecido, do pó que tomou todo o passado.


domingo, 23 de novembro de 2008

Linguagem: um Possível Problema Cultural...


Parte I


Criador de conceitos que somos, damos valor ao que imaginamos que tenha sido, assim fez Sócrates, assim se fará durante grande parte da História da Filosofia. É onde entra o papel da representação (também um grande problema histórico, lembro-me da Universidade e as acaloradas discussões acerca de Roger Chartier) para nos fazer aproximarmo-nos ainda mais de nossa memória e do legado que, imaginamos, advira dela. Tentando refletir sobre esta questão, caímos diretamente no campo da linguagem e em seus constructos cognoscentes.


Quando se quer fazer de um instante algo duradouro, o primeiro 'movimento' de nosso cérebro é criar signos. Ao criar signos acabamos criando, também, algumas verdades, seja lá na História, seja cá na Filosofia. E estas mesmas verdades são a forma mais visível e factível de que nossa linguagem se faz dar conta, gritando para nós o quanto ela precisa ser notada... e anotada.


A representação que destes signos se forma, dá ainda um aparato maior de sua existência. Ao menos da insistência de uma possível existência. Apenas o brado mais alto consegue se fazer notar. E este brado, como pode ser um alerta, também pode ser uma necessidade falsa e lisonjeira. Falsa no sentido de advir, talvez, de signos errôneos; lisonjeira no seu feitio de bajular a memória para tentar se fazer representação. Representação que se afirmaria na linguagem.


O que governa nossos sentidos é uma veemente necessidade de os auto-afirmar enquanto tais, aliás, os auto-afirmar enquanto seara concreta de algo que está por acontecer. O brado forte que outrora se fez ouvir, nada mais é que a necessidade dessa veemência em fazer-nos existir.


A grande guerra da linguagem é travada perante, e diante, a memória do invíduo. Por mais que se afirmem por aí a validade da linguagem, sempre em sua meta está a intenção de se indispor com a memória. Se o discurso fosse o elemento que traz grau de validade à vida, ele somente poderia pensar o homem como um intenso simulacro. O homem, como sabemos, pode ser muito mais que isso (parece-me que sua genética histórico-cultural apenas constata referida tese), resta a este indivíduo a gana e vontade (e aqui vale a redundância sim; diria até: a redundância apenas reforça nossa tese; pois, é na redundância que se afirma o homem e o discurso que fazemos do mesmo) de se fazer existir.


E por espírito livre, elemento seminal de um outro homem, temos a certeza dessa sua emancipação: "Por esse tempo pode finalmente ocorrer, à luz repentina de uma saúde ainda impetuosa, ainda mutável; que ao espírito cada vez mais livre comece a se desvelar o enigma dessa grande liberação, que até então aguardara, escuro, problemático, quase intangível, no interior de sua memória." (Humano Demasiado Humano: Prólogo; §6)


E esta liberação, como aqui se tentará asseverar, apenas viria se o homem conseguisse romper com alguns elementos da linguagem, essa mesma que vem se acumulando (como um grande e infinito pó) sobre o tempo, e que ainda está aí, ainda antes do homem esteve, trazendo para seu seio o elemento maior de sua auto-afirmação, enquanto espírito que se quer livre, fazendo-se surgir do desvelamento de certa genealogia, os rincões obscônditos da memória.


Logo adiante, Nietzsche afirmará que "nosso destino dispõe de nós, mesmo quando ainda não o conhecemos; é o futuro que dita as regras do nosso hoje" (Humano Demasiado Humano: Prólogo; §7), e apenas poderíamos ter plena ciência de nossa memória se confirmarmos este simulacro, como um círculo, e tão-somente assim teríamos condição de atender o jogo errôneo que se juntara à linguagem para a construção do 'hoje'.


Resta saber se o que validamos hoje como sendo o nosso 'hoje' é realmente o caminho traçado pela memória, ainda antes de sua consecução crítica.


sábado, 22 de novembro de 2008

Uma Construção em Fragmentos...


Parte III



A razão a qualquer preço, tal como pretendia Sócrates, nos arrebataria, arrancando de nossa terrível natureza humana (a mesma referida acima como propensa ao medo e à contradição da terrível verdade) os elementos mais primevos de nosso instinto. “Os instintos precisam ser combatidos – esta é a fórmula da décadence. Enquanto a vida está em ascensão, a felicidade é igual aos instintos.” (Crepúsculo dos Ídolos: O Problema de Sócrates, §11).


E a ascensão à qual Nietzsche se refere é a mesma levantada por Sócrates quando da alavancagem da razão: uma “luz diurna mais cintilante, a racionalidade a qualquer preço, a vida luminosa, fria, precavida, consciente, sem instinto (...)” (Crepúsculo dos Ídoloso: O Problema de Sócrates; §11).


Uma contraposição clara, e que mostrara efetivamente o instinto, senão como uma doença, do ponto de vista de Sócrates. Daí a ascensão da vida e sua conceitualização de felicidade: uma clara contraposição ao peso homérico de Atenas anterior a Sócrates: "Mas o que se encontra por trás do mundo homérico, como local de nascimento de tudo o que é helênico? Nesse mundo, somos elevados pela extraordinária precisão artística, pela tranquilidade e pureza das linhas, muito acima da mera confusão material (...) mas para onde olharíamos, se nos encaminhássemos para trás, para o mundo pré-homérico, sem a condução e a proteção da mão de Homero?" (Cinco Prefácios: 64)


Nessa época sanguinária a luta é cura (Cinco Prefácios: 67); e é exatamente atrás da cura que Nietzsche volta suas mais valiosas letras. A mesma cura que Sócrates fez questão de condenar, trazendo, ainda conforme Nietzsche, doença para Atenas, através de sua cicuta, impelindo tal cidade para o cálice com o veneno (Crepúsculo dos Ídolos: O Problema de Sócrates; §11).


A partir do momento em que há a constatação da doença, Nietzsche passa a atacar aquele que essa doença disseminou – com sua cicuta.


A ética grega apresentada por Nietzsche é a mesma que coloca duas deusas Eris – deusas da inveja – no início de tudo. Como um complemento, há a necessidade da atuação de uma contradição para o elemento primordial grego surgir: “O grego é invejoso e percebe essa qualidade, não como uma falha, mas como a atuação de uma divindade benéfica: – que abismo existe entre esse julgamento ético e o nosso!” (Cinco Prefácios: 70).


E a exclamação de Nietzsche é justamente porque ele está se referindo ao julgamento ético moderno: aquele que Sócrates consolidou quando de sua cicuta.


Pois bem, um homem tão franzino e 'doente', conseguiu jogar por terra toda uma tradição de vitória e liberdade. Deixando nos homens a sensação de orfandade e arrebanhamento. Dando aos grandes 'pastores' ocidentais mão-de-obra para toda uma existência.


Criou-se, com isso, toda uma justificação da teoria divina, e da necessidade de escravização dos homens: meras ovelhas de um rebanho gigantesco e ocidental.


A partir deste momento – e de Sócrates – a plebe ascende ao poder. Jogando os fortes e aristocratas de antanho no limbo da culpa e da moralidade fatalista.


Cria-se argumentos, dentre os quais a primazia da razão, para se justificar ações. Ações moralizantes e arrebanhadoras.


Mas Sócrates não foi nenhum inocente neste seu ato desesperado. O fato de tomar cicuta, sem ao menos se preocupar com a própria vida, mas com as idéias que havia deixado (exemplo maior disso o ressentido Platão), e com a verdadeira vida que teria pela frente, faz com que este franzino ser, antes que algum outro venha e ocupe seu lugar – visto que Sócrates compreendera o momento histórico pelo qual Atenas estava passando, sentindo a deixa para se tornar seu maior exemplo –, demonstre a contra-força que usara para fazer com que esta sensação de desamparo nos acompanhasse até nossos dias; deixando-nos fracos e dependentes – meras ovelhinhas de um projeto universal de submissão da moral guerreira e aristocrata.


Prova maior deste seu ato como algo não inocente pode ser buscado no seguinte aforismo de Nietzsche: "Mas Sócrates desvendou ainda mais. Ele olhou por detrás de seus atenienses nobres; ele compreendeu que seu caso, a idiossincrasia de seu caso, já não era nenhuma exceção. O mesmo tipo de degenerescência já se preparava em silêncio por toda parte. A velha Atenas caminhava para o fim. – E Sócrates entendeu que todo o mundo tinha necessidade dele: de sua mediação, de sua cura, de seu artifício pessoal de autoconservação... Por toda parte os instintos estavam em anarquia; por toda parte estava-se cinco passos além do excesso; o “monstrum in animo” era o perigo universal. “Os impulsos querem fazer-se tiranos; precisa-se descobrir um antitirano, que seja mais forte”... Quando aquele fisionomista revelou a Sócrates quem ele era, uma caverna para todos os piores desejos, o grande irônico ainda deixou escapar uma palavra, que deu a chave para compreendê-lo. “Isto é verdade, disse ele, mas me tornei senhor sobre todos estes desejos”. Como Sócrates se assenhorou de si mesmo? – No fundo o seu caso foi apenas o caso extremo; apenas o caso mais distintivo disto que outrora começou a se tornar a indigência universal: o fato de ninguém mais se assenhorar de si, de os instintos se arremeterem uns contra os outros. Ele fascinou como este caso extremo – sua feiúra apavorante o comunicava a todos os olhares: ele fascinou, como segue de per si, ainda mais intensamente enquanto resposta, enquanto solução, enquanto aparência de cura para este caso." (Crepúsculo dos Ídolos: O problema de Sócrates, §9)


A fascinação que, após sua morte, surgiu no mundo ocidental, como podemos notar, teve um papel importantíssimo para a efetivação de sua filosofia. O exemplo que, renitentemente, Platão coloca na cabeça das pessoas, dará uma força gigantesca nesta luta contra a força da virtude e da arete grega.


Os instintos que davam aos gregos sua melhor vestimenta tornam-se, a partir de tão acachapante exemplo, matéria de iniquidades e de barbarismos.


Estaria aí, talvez, uma das possíveis explicações para podermos, minimamente, tentar compreender nossa tradição, e o desmando galopante de sua força. Valores que, por um motivo peculiar, adquirem força de lei. Ganhando enorme sacralidade para nossas incautas cabeças.


Valores que, a partir do momento que passam a ser questionados, ganham força de contravenção à tradição ocidental, e sua História errônea e equivocada.


Penso, justamente por tudo isso que fora exposto acima, que a inflexão nietzscheana poderia servir de subsídio para o alheamento que, de sua obra, nos surgira aos olhos como uma pitada de luz na rotunda escuridão da modernidade – escuridão por excesso de luz!

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Uma Construção em Fragmentos...


Parte II



Pensando assim, e tentando encontrar o momento em que Nietzsche faz esta constatação – a constatação de que muito fez, Sócrates, para tentar apagar a velha Atenas –, o primeiro lume da consciência que se nos advêm, remonta o período histórico chamado de 'homérico'.


Uma natureza que, desconsiderando limites de separação entre o terrível e o humano, se-nos coloca diante de uma natureza toda construída na contradição e na peleja.


E é exatamente este momento que Sócrates descaracteriza, trazendo para o homem uma aura de idealidade, passividade e harmonia.


O medo que poderia afligir, afirmaria Nietzsche, quando da aproximação deste momento, e sua possível compreensão, assim se apresenta aos olhos dos frágeis conceitos da humanidade moderna, daí a preocupação em trazer para o seio da sociedade ateniense um novo viés, aliás uma nova revelação e um novo divino. Conceitos elencados por Sócrates em seus primeiros sinais de construção.


Ademais, como se sabe bem, em Platão o mundo das idéias – aquele que é verdadeiro – é imutável e inexpugnável. Como então aceitar alguém falando que há uma certa multiplicidade na persecução da verdade?, e seria esta multiplicidade que garantiria seu teor de saber. E esta multiplicidade, devido sua inspiração na vida, a responsável por prover o saber de seus mais recônditos templos?


Se em Parmênides ser e não-ser se encontram em lados opostos, em Heráclito ambos elementos se complementam, dando ao saber uma vivacidade que alimenta esta sabedoria, embora também um medo de um desconhecido que não está sob a guarita racional. Apesar de contrários, jamais excludentes, ao contrário, complementares.


Por isso, ao sentir esse medo, Nietzsche constata que só o sentimos por não compreender, de uma forma mais completa, este mundo como um 'grego' (Cinco Prefácios: 66), pois há muito a humanidade, ainda conforme Nietzsche, já perdeu o terrível olhar que um grego, como Homero, lançaria sobre cenas tão curéis, humanas e naturais; a começar por qualquer cena de Ilíada.


O estado de alerta e suspeição que inspirava os pré-socráticos – ou mesmo sofistas, uma vez que, para Platão e Sócrates ambos pareceriam uma coisa só –, por outro lado, desqualificaria o ser imutável de Platão e, como tal, poria abaixo toda a teoria da inexpugnabilidade que adviria do saber. Não dá para raciocinar com o medo presente, muito menos com a incerteza do posterior momento.


Essa queda, pelo que nos parece, poderia ser demais para nosso filósofo. O fato de se agarrar a algo tão sólido, e que lhe garanta certeza, sempre lhe perseguiu, desde a morte de Sócrates: modelo ideal de 'inexpugnabilidade' e 'incorruptibilidade' da alma.


Até que ponto este lado 'humano' não interferiu nos fundamentos epistemológicos de Platão? Não surgiria aí um ressentimento de um Estado que teria força suficiente para garantir a pluralidade de um mundo (pensemos nos vários deuses gregos, motivo maior da queda de Sócrates)? Apenas especulações, e que não convêm ao teor de nossas reflexões.


E esta longa cadeia de erros, conforme Nietzsche advertira (Crepúsculo dos Ídolos: O problema de Sócrates, §§01-12), surgida em fragmentos com Parmênides, estilizada em Sócrates e detalhada em Platão e Aristóteles; como sabemos, desencadearia toda a condenação da filosofia originária, esta referida por Nietzsche de Filosofia Trágica (Nascimento da Tragédia), e a justificação da filosofia moderna – esta nossa contemporânea.


Toda uma condenação surgida, simplesmente, duma tentativa de justificação de um saber desertificado, que luta contra a vida, e que a deixa doente. Um saber onde o valor da vida não passa de mero empecilho para a libertação de algo inexistente. Um saber que pensa o corpo como uma carcaça; um objeto degradante que está prendendo o verdadeiro valor. Um corpo que prende a alma em sua 'beleza' mais pujante.


E isso fez Sócrates; pelo fato de não valorizar uma vida em abundância, até mesmo pela fealdade de suas feições, acabou optando por dá o real valor da filosofia à alma; ser 'inexpugnável' e 'incorruptível': este o verdadeiro ontos metafísico do velho Sócrates: "Em Sócrates, a desertificação e a anarquia estabelecidas no interior dos instintos não são os únicos indícios de décadence: a superafetação do lógico e aquela maldade de raquítico, que o distinguem, também apontam para ela. Não nos esqueçamos mesmo daquelas alucinações auditivas que, sob o nome de o “Daimon de Sócrates”, receberam uma interpretação religiosa. Tudo nele é exagerado, bufão, caricatural. Tudo é ao mesmo tempo oculto, cheio de segundas intenções, subterrâneo. – Procuro compreender de que idiossincrasia provém essa equiparação socrática entre Razão = Virtude = Felicidade: essa equiparação que é, de todas as existentes, a mais bizarra, e que possui contra si, em particular, todos os instintos dos helenos mais antigos." (Crepúsculo dos Ídolos: O problema de Sócrates, §4)


Esta luta inusitada, tão pouco usual aos gregos contemporâneos de Sócrates; esta luta sem igual, onde a força que se põe é justamente a força contrafeita à vida; uma força que visa derrubar todo e qualquer sintoma de uma força vívida, real e verdadeira, uma força que somente a vida em abundância poderia oferecer; esta força ao contrário, porém, extremamente belicosa, usada por Sócrates para combater os instintos e as contradições do homem livre: aquele mesmo que era contrafeito à pólis, e que, se dela se aproximasse, seria totalmente ostracizado.


É justamente esta força sobre-humana, uma vez que tinha na alma seu maior quinhão, que colocará trilho na filosofia moderna, ostracizando de vez todo e qualquer sintoma de contradição e guerra – bem aos moldes de Heráclito.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Uma Construção em Fragmentos...


Parte I


Por alguns dias irei aditar alguns textos que fazem parte de minha dissertação de mestrado, como será uma construção quotidiana, os amigos verão que muitos fragmentos se colarão, outros nem tanto... uma experiência que, espero, dê certo; começando por hoje:



Apresentar um problema para, logo em seguida, tentar compreendê-lo pode ser a referência maior do que este problema visa esconder. Principalmente quando se está em jogo uma reconstrução de um novo modelo.

Sócrates, segundo Nietzsche (Crepúsculo dos Ìdolos: O problema de Sócrates, §9), percebendo a degeneração da velha Atenas se incubiu de tornar-se seu próprio médico. A grande crítica feita por Sócrates ia de encontro aos velhos conceitos de Atenas, e seus velhos hábitos.


Aquilo considerado por Sócrates como velho seria a velha maneira de se observar e compreender o mundo. Um mundo de assombro e constante conflito, muito bem representado pelo pré-socrático Heráclito, donde a contradição ditaria os rumos do mundo. Seja este mundo humano, seja o mundo dos deuses, muito vivo no quotidiano ateniense dos séculos VI e V a.C.


A contradição que se mostrara como um elemento plural e diverso, apresentado por Parmênides – apesar de notarmos em Parmênides o primeiro pensador, destes filósofos originários, a se referir à ambivalência existente entre ser e não-ser e, automaticamente, colocar ambos ontos em lados opostos, trazendo com isso um primeiro fragmento de razão que, a partir de então, e com Sócrates, ganharia uma força ainda maior –, ganha status de irracionalidade, visto que joga por terra a certeza.


Por outro lado, o ser humano, e sua noção de humanidade, por ter tal estrutura, tanbém assim se define: uma contradição in loco, um conjunto inseparável da natureza. A natureza assombrosa, em constante embate, apresentada por Heráclito em seus fragmentos.


Suas “qualidades” naturais e humanas são como um conjunto. Conjunto esse que se recoloca no homem, e a ele volta, em sua plena noção de humanidade. Não se fala mais em racionalidade, fala-se agora em humanidade pura e natural, aquele antiga que Sócrates repudiara, se auto-proclamando médico de seu povo.


Por este motivo, fazia-se necessário, então, pegar este discurso, e dialeticamente embaralhá-lo junto com o discurso poético, e desqualificá-lo em detrimento da lógica e da clareza.


Esta velha estrutura faz de sua humanidade (a do homem) um duplo e inquietante caráter, ou ainda, “as capacidades terríveis do homem, consideradas desumanas, talvez constituam o solo frutífero de onde pode brotar toda humanidade, em ímpetos, feitos e obras” (Cinco Prefácios: 65). É sua terrível natureza mostrando o elemento mais natural de sua humanidade.


Já em Sócrates, velho médico, o elemento vital do saber deveria abrir espaço para o elemento frio e racional da lógica platônico-aristotélica.


E fora Parmênides (um pouco antes), também, que iniciara Platão em suas querelas; um jovem continuador do legado socrático.


Como aponta Guthrie (Os Sofistas; 1995: 12), Parmênides mostra a Platão irrestrita confiança nos poderes da razão humana, fazendo com que este último tenha em mãos uma identidade essencial da razão no homem e em Deus.


Idantidade que faz da dialética socrática uma grande armadilha, a qual conseguirá manter-nos dentro, durante séculos. Ao tentar desvencilhar da mesma, resta o limbo da imoralidade.


E como apresentado acima, apenas esta identidade íntegra, e sem contradições, poderia legitimar a verdade e, consequentemente, também a filosofia.


Não é à toa que o velho Parmênides rejeitara por completo os sentidos. Nova justificativa para que Platão fizesse o mesmo, dando-lhe (ao velho Parmênides e à velha razão) papel mais elevado que o papel dos sentidos, o qual a mente deve deixar para atrás o mais rápido possível. "(...) já em Sócrates e Platão pode-se vislumbrar o predomínio das armadilhas morais, cujo influxo parece ter se mantido com o passar dos séculos. Mesmo percorrendo diferentes caminhos, as filosofias não puderam desvencilhar-se daquela invenção primeva do homem abstrato, dialético, justo, que ansiava acima de tudo conquistar o bem, o conhecimento e a felicidade." (O Crepúsculo do Sujeito em Nietzsche ou Como Abrir-se ao Filosofar sem Metafísica; ONATE, 2000: 54)


Surgindo com isso uma nova certeza: o conhecimento só poderia ter este nome, como um nome de merecimento, se partisse de uma certeza absoluta e universal e, automaticamente, baseado na razão. Esta mesma, velha conhecida de Parmênides, e a mais nova amiga de Platão.


Uma amiga que, com Heráclito (fragmento CVII), nunca viera sozinha e absoluta: “É bem necessário investigar muitas coisas para os homens serem amantes da sabedoria” (Heráclito: fragmentos contextualizados; COSTA, 2002: 214), apesar de também fazer parte do mistério que é o saber. Aliás, do mistério que é a sabedoria – esta mesma que oculta-se quando muito próxima da luz.


Razão essa que, ainda conforme Guthrie (Os Sofistas; 1995: 12), só mereceria seu lugar em absoluto se transcendesse a própria experiência, e os sentidos e aparências humanos, penetrando o véu do sentido divino, e levando à consciência humana verdades que estariam latentes num ser absoluto, imorredouro e universal.


Este ser imorredouro que, vertendo-se como uma torrente imortal, se mostraria numa essência já concebida em seu estado desincorporado e anterior ao próprio homem; visto que o corpo seria a prisão da alma e, de forma direta, a prisão da verdadeira, e absoluta, razão.