domingo, 10 de agosto de 2008

Homens... ou não?


Por: Edilson Alves


A partir do momento em que o ser humano percebe que sua vida fica além de uma tênue linha, visual e visão não das mais agradáveis... e ainda, a partir do momento em que percebe o quanto sua via é medíocre, seu ser é ingente, e sua existência nada significa, ele deveria começar a repensar seus hábitos e, principalmente, suas crenças. É onde conseguimos separar as categorias humanas (se é que esta expressão poderia ser utililizada sem uma conotação preconceituosa) do verdadeiro ser humano, o mesmo que não se pode categorizar, nem tampouco mensurar. E é daí que surge aquilo que Nietzsche chamou de espírito livre.


O espírito livre revolta-se contra a crença, criando para si mesmo seu destino. Para libertar-se da crença seria necessário um longo processo de abandono de hábitos e comodidades, e por isso mesmo, Nietzsche não se pretendia racional, nem tampouco irracional, como várias vezes foi denominado. Mesmo porque, como foi falado ao longo deste intróito, a racionalidade seria a doença que Sócrates jogara no mundo.


Nietzsche diz que os homens de ciência não tem espíritos livres, pois estão presos à crença de sua infalibilidade. A interpretação científica não é única, muito menos a mais confiável das verdades. Na verdade é apenas uma interpretação.


Cada instante traz a marca da eternidade, e volta a acontecer um número infinito de vezes. As civilizações voltarão, até mesmo Nietzsche voltará. O universo é animado por um movimento circular sem fim. Passa de um frescor para desenvolver-se e chegar ao ápice, e renasce, como Fênix, de si mesmo. A soma de energia permanece igual no universo.


Apesar disso, Nietzsche condenava a crença na vida após a morte. Para ele o homem havia sido preso pela suas crenças, inventadas e colocadas acima do real. Não devemos nos voltar para o além e o eterno, pois essa mistificação reduz o homem a condição de servo e destrói as fontes mais profundas da vida, bem como sua vontade de viver. No lugar dessas crenças, devemos reconhecer em nós e na história a Vontade de Potência, de poder.

E este viver por meio da vontade e da força dariam ao homem o espírito livre que ele tanto necessitava para se criar a si mesmo. É a vontade se fazendo a partir de uma força advinda da vida, e não do sofrimento, como buscavam aqueles que me são adversos. E isso pode ser constatado numa carta de 1879, a qual Nietzsche escreve para o amigo Peter Gast, enviando-lhe o manuscrito de seu Andarilho e sua Sombra. "Ao ler êste meu último manuscrito, veja V., meu querido amigo, se pode encontrar-lhe vestígios de sofrimento e de depressão. Creio que não há-de encontrá-los e esta crença é já um sinal de que, nas minhas doutrinas, se escondem fôrças e não desfalecimentos e fadiga, que é aquilo que nelas buscarão aquêles que me são adversos". (11 set. 1879)

E esta teoria da força, como forma de se justificar o embate dos valores e conceitos da vida, poderia, também, justificar uma outra teoria que o próprio Nietzsche levantou, e que ainda continua, entre nós, por ser desvendada: é a teoria do eterno retorno.

Na teoria do eterno retorno, por exemplo, o mundo se alterna na criação e destruição, alegria e sofrimento, bem e mal. Em Zaratustra, Nietzsche é um defensor do virtuosismo, virilidade, contatos rústicos com a natureza e espírito guerreiro.

Como explica em um poema, Nietzsche estava num jardim, no inverno de Rapallo, esperando e meditando além do bem e do mal, quando "um se fez dois, e Zaratustra passou por mim". Sentindo-se a obrigação de fazer valer tão valorosa visita, o filósofo se dispôs a homenageá-lo, homenageando assim o Übermensch.


Quando será que conseguiremos deixar de ser medíocres, deixando de ser meros humanos de tenda? Sei lá, nem sei mesmo se saímos do macaco!


O Agir Político Autônomo




Por: Adonile Ancelmo
Partimos do pressuposto de que a ação direta é uma ação política. Entendemos assim porque, para nós, política compreende ações que não estão restritas às formas políticas dominantes que são expressas através de Estados democrático-liberais.

A ação direta é do ponto de vista teórico uma crítica externa ao Estado, aos poderes instituídos, uma recusa às regras formais de uma democracia liberal. Por consequência, constitui-se no agir autônomo das massas, que passou a ser denominada ação direta em 1906, no contexto de lutas movidas pelos sindicalistas revolucionários franceses. Assim, as revoluções sociais sempre começaram por meio de ações diretas do povo que ia ocupando os espaços de decisões políticas de quem antes estava no poder, contudo, no decorrer do processo revolucionário, o povo, depois de enfrentar os maiores perigos era, geralmente, relegado a segundo plano, deixando a administração da sociedade nas mãos de outras pessoas ou de pseudo-representantes do povo, assim terminava ação direta, porque acabava a autonomia popular.


Mas a ação direta nem sempre termina em revolução, ela pode caracterizar um simples boicote de produção, de consumo, ou uma greve parcial, geral, ou ainda atitudes de sabotagem na produção, na distribuição, ou pode ainda significar a ocupação de propriedade, como fazem as pessoas do Movimento dos Sem-Terra (MST), e em casos extremos a ação direta representou também atentados contra autoridades.


Nesse ponto, ocupar propriedade, atentados contra autoridades... surge a pergunta: a ação direta é uma expressão política restrita aos anarquistas? Não, tanto que a expressão escrita, segundo nos consta, aparece tardiamente em 1906 entre os sindicalistas revolucionários, anarco-comunistas, anarcossindicalistas, sindicalistas e socialistas de toda ordem.


Por outro lado, a ação direta, o agir autônomo dos diretamente interessados, foi sempre uma bandeira anarquista. Os anarquistas desde a metade do século XIX, para sermos mais preciso, eram aqueles que rejeitavam a via parlamentar, que se insurgiam contra as instituições liberais de poder, que apontavam o Estado e o capitalismo como o grande mal da sociedade, nesse sentido, a ação direta enquanto estratégia e, mais que isso, enquanto aglutinador de sensibilidades foi a marca principal dos que se diziam e agiam como anarquistas.


Mas nesse ponto, podemos entrever uma distinção na ação direta anarquista, principalmente, alentada entre os anarco-comunistas italianos que tiveram nos escritos de Malatesta sua maior e melhor expressão. No caso específico da ação direta defendida e difundida pelos anarco-comunistas organizacionistas, como passaram a ser denominados os companheiros de Malatesta, era uma ação direta ligada a uma moralidade específica em que a defesa da ação violenta por parte dos anarquistas só se justificava a partir de um objetivo maior que era o da sociedade igualitária para todos, e apenas num contexto em que os anarquistas tivessem conquistado a adesão da maioria e, quando assim, tivessem agindo a favor e com os oprimidos.


Para os malatestetianos, enquanto o povo em sua completa maioria não quisesse fazer a revolução, restaria para os militantes libertários apenas a luta pelo menos pior, ou seja, criar comunidades de resistência, sociabilidades fraternais, organizações de apoio mútuo, escolas de ensino libertário, em suma, a criar micro-sociedades, se é que podemos dizer isso, onde pudesse se erigir a solidariedade fraterna entre as pessoas, um outro agir ético baseado na igualdade e na liberdade, mesmo que, no caso, isso fosse restrito aos espaços de lazer libertários ou a períodos do dia em que os trabalhadores conseguissem escapar da exploração capitalista.


Esses núcleos de convivência libertários existem hoje em dia e podemos vê-los com mais freqüência do que se imagina. Há muitas organizações anarquistas espalhadas pelo mundo que buscam demonstrar que outras possibilidades de convivência são possíveis. No contexto dessas organizações libertárias, busca-se criar regras de sociabilidade com base no respeito e apoio mútuos, sem hierarquias pré-definidas, sem instituição de autoridades, sem mecanismos de coação, repressão, opressão ou de controle. Tais espaços são regidos pela autogestão igualitárias das atividades, quando são cooperativas autônomas, há muitas espalhadas pelo mundo, dependendo de qual linha teórica anarquista, a produção é dividida com base na necessidade de cada um ou conforme o trabalho feito por cada pessoa. É mais freqüente vermos núcleos de memórias anarquistas e federações regionais que procuram colocar em prática as idéias anarquistas num contexto mais reduzido.


O que é comum nesses núcleos é a concepção ética que se funda na solidariedade, na autonomia, na igualdade e na liberdade, isto é, na livre associação entre as pessoas que se uniram, justamente, por acreditar em objetivos comuns e, se no desenvolvimento das relações tal união for desfeita por um ou mais participantes, não haverá nenhum tipo de represália, multa ou quaisquer coisas do tipo. Nessas organizações o que vale é o agir ético, muito mais que qualquer lei, os indivíduos tem para si e para outros uma obrigação de respeito e solidariedade, mas caso desistam disso, cada um está livre para seguir o seu caminho da melhor forma que lhe apetecer. A liberdade de um só existe enquanto existir a liberdade do outro. Os libertários ainda vivem! No Brasil, mesmo depois de determinada historiografia pensar ter enterrado o movimento operário da Primeira República junto com os anarquistas, as várias federações e organizações libertárias brasileiras comprovam isso. Quando foi que o Estado tornou-se expressão da própria política, isto é, do agir político em si? Quando foi que a História do Estado tornou-se uma história estatista auto-referente, auto-explicativa, uma justificativa em si mesma. Que é o Estado, que entidade é esta que chamamos de Estado. Onde ele está? O que ele faz, que chegamos ao ponto de não conseguir pensar em viver sem ele? Quando que a História política moderna se naturalizou?



sábado, 9 de agosto de 2008

Política – continuação da guerra por outros meios


Tentaremos nesse estudo demarcar as fronteiras do nosso tema. O primeiro obstáculo é delimitar o horizonte histórico das regras que o fez emergir e das condições que o permitiu existir. Mas só isso não basta, devemos demarcar as leis que o fizeram existir e permanecer em sua especificidade. Definir isso é sempre um pouco problemático para não dizer arbitrário.
Nosso problema principal se situa naquilo que Foucault chamou de regras da formação discursiva. E consiste em se tentar localizar a:
... dispersão que caracteriza um tipo de discurso e que define, entre os conceitos, formas de dedução, de derivação, de coerência, e também de incompatibilidade, de entrecruzamento, de substituição, de exclusão, de alteração recíproca de deslocamento etc. [1]
Há vários aspectos que se pode constituir em objetos de abordagem do tema da ação direta. Pode-se inicialmente localizá-la no âmbito da longa história e vê-la surgir no contexto das revoltas contra os poderes instituídos. Nesse ponto, Foucault também tem muito a nos dizer, em seus últimos estudos, quando tentava delinear seu novo campo de pesquisa, a biopolítica e os mecanismos de repressão, ele nos propõe a emergência de um discurso que impunha à política um outro modelo de concepção e de análise que, por isso se contrapunha ao outro modelo da política como uma relação de poder contratual que se consagrou nos escritos dos filósofos do século XVIII. Há nesse sentido, segundo Foucault:
... dois grandes sistemas de análise de poder. Um, que seria o velho sistema que vocês encontram nos filósofos do século XVIII, se articulariam em torno do poder como direito original que se cede, constitutivo da soberania, e tendo o contrato como matriz do poder político. E haveria o risco de esse poder assim constituído, quando ultrapassa a si mesmo, ou seja, quando vai além dos próprios termos do contrato, tornar-se opressão. Poder-contrato, tendo como limite, ou melhor, como ultrapassagem do limite, a opressão. E vocês teriam outro sistema que tentaria, pelo contrário, analisar o poder político não mais de acordo com o esquema contrato-opressão. E, nesse momento, a repressão não é o que era a opressão em relação ao contrato, ou seja, um abuso, mas, ao contrário, o simples efeito e o simples prosseguimento de uma relação de dominação. A repressão nada mais seria que o emprego, no interior dessa pseudopaz solapada por uma guerra contínua, de uma relação de força perpétua. Portanto, dois esquemas de análise do poder: o esquema contrato-opressão, que é, se vocês preferirem, o esquema jurídico, e o esquema guerra-repressão, ou dominação-repressão, no qual a oposição pertinente não é a do legítimo e do ilegítimo, como no esquema precedente, mas a oposição entre luta e submissão. [2]
Para que fique bem entendido, esses dois esquemas citados por Foucault, existem hoje em dia e desde, mais ou menos o século XVI, segundo a localização de Foucault, aparece o outro discurso que se impõe ao esquema jurídico, o que mais anteriormente, era representado pela história da soberania, que desde os romanos, tematizava sobre os grandes soberanos e sua função era o de justificar e consolidar o poder instituído. Já esse outro discurso, vem romper com essa função da história, vem mostrar que a política é a continuação da guerra por outros meios como no aforismo de Clausewitz, que a política é a imposição de uma dominação, com justificativas legais que escondem ou tentam ocultar seus dispositivos de repressão.
Assim, podemos localizar o discurso que culminou com o conceito de ação direta, o seu objetos original: “a luta entre as raças”, que mais a frente tornar-se-á o da “luta entre as classes” colocado por esse novo modelo de análise e concepção da política, que é denominado por Foucault como sendo o modelo da guerra.
Isso, porém, nos causa um incômodo irreparável, pois o termo escrito que já traz em si uma primeira delimitação, que se restringe ao seu aparecimento original, mais ou menos localizado por nós entre 1890 e 1906, é bastante recente para vermos como uma continuidade entre os objetos dos primeiros discursos revolucionários e os do final do século XIX e início do XX.
Se não bastasse esse incômodo provocado pela sua aparição recente, percebe-se que as regras que condicionaram, os objetos aos quais se referenciaram, as modalidades dos enunciados, enfim, as condições de existência dos discursos revolucionários foram outras e tiveram variação, que por sua vez, marcam as diferenças de ritmos, de formas e conteúdo de suas histórias.
Por outro lado, se restringimos muito o momento histórico e o local de sua aparição, se o restringimos aos referentes de discurso próprio de uma classe, de uma tendência de luta, poderemos cercear a possível gama de objetos que o termo ação direta pôde se referenciar e que ainda pode.
Assim, reivindicaremos o modelo da guerra para análise política da ação direta, para vermos não como uma oposição ou uma recusa à política, mas como resistência e luta contra um tipo de política que consolidou sua soberania enquanto poder e saber desde o século XVIII, e mais recentemente, nos impõe essa tirania de um sistema único composto pelo capitalismo e pela democracia liberal.
[1] FOUCAULT. A Arqueologia do Saber. p. 66.
[2] FOUCAULT. Em Defesa da Sociedade. p. 24.