sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Seção: Filosofia de Boteco - Dioniso Sóbrio VI


Aforismos: Civilização


Como se explica uma civilização, ou mesmo a consciência dessa civilização que, devido seu "eu" coletivo, compreende uma divindade que já deixara de existir há milênios? E ainda fazem dessa divindade um estilo de vida totalmente seu e, principalmente, carregado de simbolismos que nem mesmo seus ancestrais, ou os anciões em vida, sabem o significado das práticas milenares? Como fazer com que um culto primitivo se prevaleça, e ultrapasse todos os desígnios desta humanidade? O que dizer de uma consciência que, mais que dar gregariedade a esse povo, oferece-lhe um transcendente na imanência do dia-a-dia? Situações complexas com consciências ainda mais transfigurantes... que sabemos transitório e que, no entanto, se mostra com uma definitividade quase intimista. As tradições que estas lembranças ainda mantêm, são tradições que dizem respeito à vida de todos e que, por isso mesmo, não pertencem a todos, mas à primitividade ancestral. Temos um universo que se faz no teor mesmo da civilização, e jamais no teor do indivíduo; ser inicial e primevo de uma civilização que tem mostrado os mais lamentáveis erros de constituição. É como se carregássemos uma herança maldita de um passado que não nos pertence e que, ao mesmo tempo, diz muito de nós, em civilização, e nada de nós, em individualidade e humanidade. Um povo que, ao perder seu culto primitivo, e as tradições ancestrais, parece ter compreendido que a divindade nada mais é, e nada mais se mostrara, como um eu coletivo, que nem individual é, mas que teria chegado até os dias de hoje como um gênero humano peculiar. A comunicação que se criou com os céus, desde então, passou a figurar uma relação de afirmação da vida mundana, e dos apegos humanos. Criou-se um caminho para além, que tenta justificar o que se faz in loco e aqui. Uma consciência que se pensava divina e que se mostrara humano-hierárquica. Aquilo que surgira como um ponto, Deus, logo preenchera o mundo. A evolução, inevitável e fatal, que dessa teodicéia surgira, e a ela se justificara, acaba se tornando o mais utilitário ateísmo. A criação dá lugar a um outro movimento que conduz o mundo, a partir de uma base fixa, a uma ininterrupta auto-justificação. O quê dizer de homens que, para justificar sua divindade, recorrem ao cosmos, e dele retorna ao ser? Proudhon assim justificaria: O espírito de análise, satã infatigável que interroga e contradiz sem cessar, deveria cedo ou tarde procurar a prova do dogmatismo religioso [que aqui se mostrara a partir de uma humanidade quase corpórea]. Ora, que o filósofo determine a idéia de Deus ou que a declare indeterminável; que a aproxime de sua razão ou que dela a afaste, digo que essa idéia sofre um atentado: e como é impossível que a especulação se detenha, é necessário que a longo prazo a idéia de Deus desapareça [por isso a necessidade de humanização de uma prática que, inicialmente, precisou ser religiosa para se justificar seu real teor de verdade e confiança]. Portanto, o movimento ateísta é o segundo ato do drama teológico; e esse segundo ato é dado pelo primeiro, como o efeito pela causa. Os céus narram a glória do eterno, diz o salmista; acrescentemos: e seu testemunho o destrona [Queremos justamente isso, emendando Proudhon, fazer de nossa morada no sagrado, e sua estadia santa, uma passagem para as glórias da vida em rebanho, aliás, em civilização]. Será que conseguiremos carregar nos ombros o trono de um deus destronado, assumindo, destarte, todas as consequências deste teocídio? A civilização tenta fazer disso sua nobre missão.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Seção: Filosofia de Boteco - Dioniso Sóbrio V


Aforismos: Sopro Divino

O ser só assim se parece devido sua relação fonética com a metafísica, e a tradução de sua relação com as idéias num mundo que, imaginamos, a nós pertence. Dessa forma, a afirmação de que "Sou o que Sou", como disse Deus a Abraão e "Sou o Ser", o mesmo Deus dizendo a Moisés; além de afirmar uma máxima teológica, logo, longe do âmbito humano e ao mesmo tempo subordinado ao âmbito relacional humano, e suas criações senis; afirma também a máxima de que homens de boa fé sempre serão homens de boa fé, e nunca serão, realmente homens. E, dessa forma, apenas homens de fé conseguirão corresponder à expectativa criada pela sua tradução de idéias com a metafísica temporal (fazendo com que sua vida se constitua) que, sabe-se, acaba se constituindo como uma metafísica atemporal. A História quando cria histórias sobre o seu nome - principalmente sendo uma criação humana, logo, humanas também são essas histórias criadas -, cria também nomes que surgem para estarem acima e além; criando com isso, histórias em cima de história. Humanos que somos, fruto de uma involução estranha, porém veemente e taxativa, tentamos entender esta relação metafísico-temporal, sem dor, e sempre em caminho reto. Já quando nos propomos a usar de nossa boa fé, ainda mais, afirmamos esta metafísica. Deixamos de ser o Ser, e de ser o que Somos. Apenas conseguimos ser alguém não sendo ninguém. Apenas conseguimos nos conceber, cultural e socialmente, dentro do status de ser do Outro... o mesmo de Abraão e Moisés. Por isso Proudhon, em sua Filosofia da Miséria, dirá: E o primeiro movimento do homem, arrebatado e penetrado de entusiasmo (do sopro divino), é de adorar a invisível providência, da qual se sente depender e que denomina Deus, isto é, ser, espírito, ou mais simplesmente ainda, eu: pois todos estes vocábulos nas línguas antigas são sinônimos e homófonos. O sopro divino que carregamos, e que nos arrebata, quando não conseguimos ser qualquer coisa, se corporifica - de forma etérea - e se constitui como sendo algo em nós - este é nosso primeiro movimento rumo ao nosso mundo verdadeiro. Como não conseguimos ser, usamos da linguagem para deixarmos de ser. Será que a involução consegue explicar isso? Ou será que são os homens que não querem se explicar a si mesmos? A linguagem, mecanismo pleno de humanidade, ganha características metafísicas, e só passa a ter significado quando não nos significa, embora, a nós nos converte em humanos; seres coletivos que constroem história. Nosso primeiro movimento é o de tirar nosso corpo de nós e colocá-lo no metafísico, dando ao tempo, e à involução, mais motivos para nos infirmar. A gente afirma o Outro-para-nós, deixando de afirmar o nós-no-Outro. Como um sopro, saímos do pó, damos uma girada no ar, e voltamos ao pó, achando que somos alguma coisa, além de pó... nas línguas antigas somos sinônimos e homófonos, por isso somos humanos, e por isso o sopro divino.


quinta-feira, 20 de setembro de 2007

A Evolução...


Parte V

O resultado da longa caminhada humana e seu sisífico peso, a menos que queiramos, pode vir gravada na história da evolução. Uma evolução que tem na metafísica seu maior respaldo, aliás, sua mais nobre característica. Sempre tentando nos ater à um caminho reto, sem a síncope das curvas, não resta muito para que nossa memória consiga se utilizar de seus instrumentos, como sua observação psicológica profunda, para se equiparar, como um contrapelo, ao ritmo da espécie. Acabamos criando a crença de que os resultados factíveis são somente aqueles, e nenhum outro possível mais. Isso nos tira o peso, alivia nossa conciência e salva a alma; duma infirmação criamos a afirmação definitiva. O fato de haver uma desconfiança de que o caminho fora re-direcionado, por sí só, torna-se desconfiança infundada... ou como se dizia antes da queda do Muro de Berlim, "comunista com mania de perseguição".

Nada mais que empreender obras eternas... eis o significado maior de pensar a evolução dentro de sua infirmação. O tempo não consegue agitar o caminho da crença, pois sua seara se encontra na alternativa do dogma, aliás, na afirmativa do dogma.

Uma singela contribuição, e que pode trazer muita informação é a seguinte assertiva (ainda falando de Nietzsche, em seu Humano, Demasiado Humano, aforismo §22 - isso não é uma bíblia, é apenas um subsídio perscrutório): Pode a ciência despertar uma tal crença nos seus resultados? O fato é que ela requer a dúvida e a desconfiança, como os seus mais fieis aliados; apesar disso, com o tempo a soma de verdades intocáveis, isto é, sobreviventes a todas as tormentas do ceticismo, a toda decomposição, pode se tornar tão grande (na dietética da saúde, por exemplo), que com base nisso haja a decisão de empreender obras "eternas". Queremos fazer valer verdades que sempre foram usadas, por algum motivo qualquer, ou ainda, por vários motivos constantes. Seu uso indiscriminado, em contrapartida, devido a gama de seguidores e oradores, apenas aumenta. Várias foram as tormentas, mas o barco estava muito bem amarrado, com nó de marinheiro, no cais da segurança.

Somos, ou ao menos aqueles que querem ser, ou que gostariam de ser; somos sobreviventes das tormentas por fazermos parte dela. O cais, e o solo do porto, com toda sua segurança e firmeza, não é chão para nós. Queremos asas, para ir mais alto que Ícaro (daí vem novo castigo, e nova rota criada), mesmo sabendo que nossas asas são de cêra. O sol pode ser o limite, mas o castigo não será minha guarita, muito menos meu grilhão.

Para que nosso sonho de Ícaro se concretize, temos que ultrapassar muitas evoluções internas, deixando a briga da involução para os que não ousam sair do buraco. Aliás, briga nada, esconderijo. É usar os passos dos outros para nos conduzir, daí uma longa caminhada (milênios) se entregar às comodidades do último estágio.

Mais adiante: Por enquanto, o contraste entre nossa agitada, efêmera existência e o longo sossego das eras metafísicas ainda é muito forte, pois os dois períodos se acham ainda muito próximos um do outro; o indivíduo mesmo atravessa hoje demasiadas evoluções internas e externas para ousar se estabelecer duradoura e definitivamente, ainda que seja pelo tempo de sua vida. Um homem totalmente moderno que queira, por exemplo, construir uma casa para si, sente como se quisesse se emparedar vivo num mausoléu. A penumbra de sua tranquila situação, de campa sagrada, tira dele toda a inquietação do mundo. Seu mármore é seu mundo, sua tumba é sua vida e seu mausoléu sua existência. Pior que sentar a bunda no assento do sofá frente à TV, é colocar nosso nome num mausoléu, donde as vagas do mar só chegam como uma maresia mal-cheirosa, nem mesmo como uma garoa amorosa, porém criada do agito de um mar em fúria.

Diria até, comparando a evolução com a tradição: estando o homem cada vez mais amparado pela tradição, tanto maior será o movimento interior dos motivos externos. Por outro lado, querendo buscar na polifonia dos signos, e na metáfora da linguagem, tanto maior será nosso desassossego exterior, e nossa interpenetração dos homens entre novos homens. Sempre querendo fazer da relação sisífica, prometéica ou icárea uma constante de relações sociais e inter-pessoais, tanto maior será nossa intranquilidade. Tanto maior será nossa queixa para com a evolução.

Não tenhamos medo desse sofrimento! Vamos, isto sim, compreender tão grandemente quanto possível a tarefa que nos é imposta pela era: a posteridade nos abençoará por isso - uma posteridade que se saberá tanto acima das originais culturas nacionais fechadas quanto da cultura da comparação, mas que olhará com gratidão, como veneráveis antiguidades, para ambas as formas de cultura. Estando nós, nos equiparando ao mundo externo, dois fatores se sobressaem, o que apenas corrobora com o aforismo §23; seja aceitando a cultura, seja negando as informações que dessa cultura nos chegam, sempre, teremos um filtro do que aquilo poderia ter sido. Uma névoa de fumaça, aliás, de pó, ainda se elevará diante de nossos olhos: aí veremos o sol brilhante, a astúcia de uma obra bem feita e o fogo sagrado do conhecimento.

Poderemos ter o mundo abaixo de nós, os homens e Deuses a nós subjugados e o quentor bom do fogo do saber na palma de nossas mãos - doídas pela pedra. Homens com instrumentos tais, jamais, mas não em todo o sempre de uma espécie, se deixarão levar; seja pelo frio da fumaça que cega o sol, seja pelo pó da história que sufoca o coração.

Queremos uma razão concreta para acreditarmos na evolução, sabendo, todavia, que o caminho pode ser outro. Sabendo também que a linguagem pode vir de outros códigos polifônicos, mas principalmente, saber que o rio nunca será o mesmo... e que seu caminho rumo ao mar será tão tortuoso como o toque de suas águas com as ondas voluptuosas do anfritião que o está a receber.

Sem que sejamos corroídos pelo ressentimento que aí está, e que de nós e de nossos ancestrais surgira, poderíamos usar a História para nos reautorizar enquanto homens, e enquanto humanidade fugidia que somos. Restos ou dejetos, somos o que aí está, o que não significa, contudo, que sempre assim nos aceitaremos e, ainda assim, nos aceitando, a outros dejetos retomaremos.

§25. Talvez uma futura visão geral das necessidades da humanidade mostre que não é absolutamente desejável que todos os homens ajam do mesmo modo, mas sim que, no interesse de objetivos ecumênicos, deveriam ser propostas, para segmentos inteiros da humanidade, tarefas especiais e talvez más, ocasionalmente. - Em todo caso, para que a humanidade não se destrua com um tal governo global consciente, deve-se antes obter, como critério científico para objetivos ecumênicos, um conhecimento das condições da cultura que até agora não foi atingido. Esta é a imensa tarefa dos grandes espíritos do próximo século.

E a prosa..., será que já se esgotou, ou podemos reabrir o boteco?


Sobre o Conceito de História - Walter Benjamin


1) Conhecemos a história de um autômato construído de tal modo que podia responder a cada lance de um jogador de xadrez com um contralance, que lhe assegurava a vitória. Um fantoche vestido à turca, com um narguilé na boca, sentava-se diante do tabuleiro, colocado numa grande mesa. Um sistema de espelhos criava a ilusão de que a mesa era totalmente visível, em todos os seus pormenores. Na realidade, um anão corcunda se escondia nela, um mestre no xadrez, que dirigia com cordéis a mão do fantoche. Podemos imaginar uma contrapartida filosófica desse mecanismo. O fantoche chamado “materialismo histórico” ganhará sempre. Ele pode enfrentar qualquer desafio, desde que tome a seu serviço a teologia. Hoje ela é reconhecidamente pequena e feia e não ousa mostrar-se.

2) “Entre os atributos mais surpreendentes da alma humana”, diz Lotze, “está, ao lado de tanto egoísmo individual, uma ausência geral de inveja de cada presente com relação a seu futuro”. Essa reflexão conduz-nos a pensar que nossa imagem da felicidade é totalmente marcada pela época que nos foi atribuída pelo curso da nossa existência. A felicidade capaz de suscitar nossa inveja está toda, inteira, no ar que já respiramos, nos homens com os quais poderíamos ter conversado, nas mulheres que poderíamos ter possuído. Em outras palavras, a imagem da felicidade está indissoluvelmente ligada à da salvação. O mesmo ocorre com a imagem do passado, que a história transforma em coisa sua. O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso.

3) O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à l’ordre du jour (citação à ordem dos trabalhos) – e esse dia é justamente o do juízo final.

4) “Lutai primeiro pela alimentação e pelo vestuário, e em seguida o reino de Deus virá por si mesmo”. Hegel, 1807.

A luta de classes, que um historiador educado por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor. Elas se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. Elas questionarão sempre cada vitória dos dominadores. Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história. O materialismo histórico deve ficar atento a essa transformação, a mais imperceptível de todas.

5) A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido. “A verdade nunca nos escapará” – essa frase de Gottfried Keller caracteriza o pondo exato em que o historicismo se separa do materialismo histórico. Pois irrecuperável é cada imagem do presente que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visa por ela.

6) Articular historicamente o passado não significa conhece-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.

7) “Pensa na escuridão e no grande frio Que reinam nesse vale, onde soam os lamentos”. Brecht, Ópera dos três vinténs.

Fustel de Coulanges recomenda ao historiador interessado em ressuscitar uma época que esqueça tudo o que sabe sobre fases posteriores da história. Impossível caracterizar melhor método com o qual rompeu o materialismo histórico. Esse método é o da empatia. Sua origem é a inércia do coração, a acedia, que desespera de apropriar-se da verdadeira imagem histórica, em seu lampejar fugaz. Para os teólogos medievais, a acedia era o primeiro fundamento da tristeza. Flaubert, que a conhecia, escreveu: “Peu de gens devineront combien il a fallu être triste pour ressusciter carthage” (Poucas pessoas o quanto foi necessário ser triste para reanimar Cartago). A natureza dessa tristeza se tornará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento de barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.

8) A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da circunstância de que os seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerado como uma norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XX “ainda” sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável.

9) “Minhas asas estão prontas para o vôo, Se pudesse, eu retrocederia Pois eu seria menos feliz se permanecesse imerso no tempo vivo.” Gerhard Scholem, Saudação do anjo.

Há um quadro de Klee que se chama Ângelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fecha-las. Essa tempestade o impede irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.

10) Os temas que as regras do claustro impunham à meditação dos monges tinham como função desvia-los do mundo e das suas pompas. Nossas reflexões partem de uma preocupação semelhante. Neste momento, em que os políticos nos quais os adversários do fascismo tinham depositado as suas esperanças jazem por terra e agravam sua derrota com a traição à sua própria causa, temos que arrancar a política das malhas do mundo profano, em que ela havia sido enredado por aqueles traidores. Nosso ponto de partida é a idéia de que a obtusa fé no progresso desses políticos, sua confiança no “apoio das massas” e, finalmente, sua subordinação servil a um aparelho incontrolável são três aspectos da mesma realidade. Estas reflexões tentam mostrar como é alto o preço que nossos hábitos mentais têm que pagar quando nos associamos a uma concepção da história que recusa toda cumplicidade com aquela à qual continuam aderindo esses políticos.

11) O conformismo, que sempre esteve em seu elemento na social-democracia, não condiciona apenas suas táticas políticas, mas também suas idéias econômicas. É uma das causas do colapso posterior. Nada foi mais corruptor para a classe operária alemã que a opinião de que ela nadava com a corrente. O desenvolvimento técnico era visto como o declive da corrente, na qual ela supunha estar nadando. Daí só havia um passo para crer que o trabalho industrial, que aparecia sob os traços do progresso técnico, representava uma grande conquista política. A antiga moral protestante do trabalho, secularizada, festejava uma ressurreição na classe trabalhadora alemã. O Programa de Gotha já continha elementos dessa confusão. Nele, o trabalho é definido como “a fonte de toda a riqueza e de toda a civilização”. Pressentindo o pior, Marx replicou que o homem que não possui outra propriedade que a sua força de trabalho está condenado a ser “o escravo de outros, que se tornaram... proprietários”. Apesar disso, a confusão continuou a propagar-se, e pouco depois Josef Dietzgen anunciava: “O trabalho é o Redentor dos tempos modernos... No aperfeiçoamento... do trabalho reside a riqueza, que agora pode realizar o que não foi realizado por nenhum salvador”. Esse conceito de trabalho, típico do marxismo vulgar, não examina a questão de como seus produtos podem beneficiar trabalhadores que deles não dispõem. Seu interesse se dirige apenas aos progressos na dominação da natureza, e não aos retrocessos na organização da sociedade. já estão visíveis, nessa concepção, os traços tecnocráticos que mais tarde vão aflorar no fascismo. Entre eles, figura uma concepção da natureza que contrasta sinistramente com as utopias socialistas anteriores a março de 1848. O trabalho como agora compreendido, visa uma exploração da natureza, comparada, com ingênua complacência, à exploração do proletariado. Ao lado dessa concepção positivista, as fantasias de um Fourier, tão ridicularizadas, revelam-se surpreendemente razoáveis. Segundo Fourier, o trabalho social bem organizado teria entre seus efeitos que quatro luas iluminariam a noite, que o gelo se retiraria dos pólos, que a água marinha deixaria de ser salgada e que os animais predatórios entrariam a serviço do homem. Essas fantasias ilustram um tipo de trabalho que, longe de explorar a natureza, libera as criações que dormem, como virtualidades, em seu ventre. Ao conceito corrompido de trabalho corresponde o conceito complementar de uma natureza, que segundo Dietzgen, “está ali, grátis”.

12) “Precisamos da história, mas não como precisam dela os ociosos que passeiam no jardim da ciência”. Nietzsche, Vantagens e Desvantagens da História.

O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe combatente e oprimida. Em Marx, ela aparece como a última classe escravizada, com a classe vingadora que consuma a tarefa de libertação em nome das gerações de derrotados. Essa consciência, reativada durante algum tempo no movimento espartaquista, foi sempre inaceitável para a social-democracia. Em três decênios, ela quase conseguiu extinguir o nome de Blanqui, cujo eco abalara o século passado. Preferiu atribuir à classe operária o papel de salvar gerações futuras. Com isso, ela a privou das suas melhores forças. A classe operária desaprendeu nessa escola tanto o ódio como o espírito de sacrifício. Porque um e outro se alimentam da imagem dos antepassados escravizados, e não dos descendentes liberados.

13) “Nossa causa está cada dia mais clara e o povo cada dia mais esclarecido”. Josef Dietzgen, Filosofia social-democrata.

A teoria e, mais ainda, a prática da social-democracia foram determinadas por um conceito dogmático de progresso sem qualquer vínculo com a realidade. Segundo os social-democratas, o progresso era, em primeiro lugar, um progresso da humanidade em si, e não das suas capacidades e conhecimentos. Em segundo lugar, era um processo sem limites, idéia correspondente à da perfectibilidade infinita do gênero humano. Em terceiro lugar, era um progresso essencialmente automático, percorrendo, irresistível, uma trajetória em flecha ou em aspiral. Cada um desses atributos é controvertido e poderia ser criticado. Mas, para ser rigorosa, a crítica precisa ir além deles e concentrar-se no que lhes é comum. A idéia de um progresso da humanidade na história é inseparável da idéia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da idéia do progresso tem como pressuposto a crítica da idéia dessa marcha.

14) “A Origem é o Alvo.” Karl Kraus, Palavras em verso.

A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de “agoras”. Assim, a Roma antiga era para Robespierre um passado carregado de “agoras”, que ele fez explodir do continuum da história. A Revolução Francesa se via como uma Roma ressurreta. Ela citava a Roma antiga como a moda cita um vestuário antigo. A moda tem um faro para o atual, onde quer que ela esteja na folhagem do antigamente. Ela é um salto de tigre em direção ao passado. Somente, ele se dá numa arena comandada pela classe dominante. O mesmo salto, sob o livre céu da história, é o salto dialético da Revolução, como o concebeu Marx.

15) A consciência de fazer explodir o continuum da história é própria às classes revolucionárias no momento da ação. A Grande Revolução introduziu um novo calendário. O dia com o qual começa um novo calendário funciona como um acelerador histórico. No fundo, é o mesmo dia que retorna sempre sob a forma dos dias feriados, que são os dias da reminiscência. Assim, os calendários não marcam o tempo do mesmo modo que os relógios. Eles são monumentos de uma consciência histórica da qual não parece mais haver na Europa, há cem anos, o mínimo vestígio. A Revolução de julho registrou ainda um incidente em que essa consciência se manifestou. Terminado o primeiro dia de combate, verificou-se que em vários bairros de Paris, independentes uns dos outros e na mesma hora, foram disparados tiros contra os relógios localizados nas torres. Uma testemunha ocular, que talvez deva à rima a sua intuição profética, escreveu: “Qui lê croirait! On dit qu’ irrités contre l’heure De nouveaux Josués, au pied de chaque tour, Tiraient sur lês cadrans pour arrêter lê jour.”

16) O materialista histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não é transição, mas pára no tempo e se imobiliza. Porque esse conceito define exatamente aquele presente em que ele mesmo escreve a história. O historicista apresenta a imagem “eterna” do passado, o materialista histórico faz desse passado uma experiência única. Ele deixa a outros a tarefa de se esgotar no bordel do historicismo, com a meretriz “era uma vez”. Ele fica senhor das suas forças, suficientemente viril para fazer saltar pelos ares o continuum da história.

17) O historicismo culmina legitimamente na história universal. Em seu método, a historiografia materialista se distancia dela talvez mais radicalmente que de qualquer outra. A história universal não tem qualquer armação teórica. Seu procedimento é aditivo. Ela utiliza a massa dos fatos, para com eles preencher o tempo homogêneo e vazio. Ao contrário, a historiografia marxista em sua base um princípio construtivo. Pensar não inclui apenas o movimento das idéias, mas também sua imobilização. Quando o pensamento pára. Bruscamente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes comunica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada. O materialista histórico só se aproxima de um objeto histórico quando o confronta enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido. Ele aproveita essa oportunidade para extrair uma época determinada do curso homogêneo da história do mesmo modo, ele extrai da época uma vida determinada e, da obra composta durante essa vida, uma obra determinada. Seu método resulta em que na obra o conjunto da obra, no conjunto da obra a época e na época a totalidade do processo histórico são preservados e transcendidos. O fruto nutritivo do que é compreendido historicamente contém em seu interior o tempo, como semente preciosas, mas insípidas.

18) “Comparados com a história da vida orgânica na Terra”, diz um biólogo contemporâneo, “os míseros 50 000 anos do Homo Sapiens representam algo como dois segundos ao fim de um dia de 24 horas. Por essa escala, toda a história da humanidade civilizada preencheria um quinto do último segundo da última hora.” O “agora”, que como modelo do messiânico abrevia num resumo incomensurável a história de toda a humanidade, coincide rigorosamente com o lugar ocupado no universo pela história humana.

Apêndice

1) O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimento que podem estar dele separados por milênios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um rosário. Ele capta a configuração em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um “agora” no qual se infiltraram estilhaços do messiânico.

2) Certamente, os adivinhos que interrogavam o tempo para saber o que ele ocultava em seu seio não o experimentavam nem como vazio nem como homogêneo. Quem tem em mente esse fato, poderá talvez ter uma idéia de como o tempo passado é vivido na rememoração: nem como vazio, nem como homogêneo. Sabe-se que era proibido aos judeus investigar o futuro. Ao contrário, a Tora e a prece se ensinam na rememoração. Para os discípulos, a rememoração desencantava o futuro, ao qual sucumbiam os que interrogavam os adivinhos. Mas nem por isso o futuro se converteu para os judeus num tempo homogêneo e vazio. Pois nele cada segundo era a porta estreita pela qual podia penetrar o Messias.

(1940)

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

A Evolução...


Parte IV


Sim, a memória é esta pedra pesada, pois ela foi a única que se encarregou de manter viva uma pequena chama de que ainda podemos ser humanos, todavia, uma pedra pesada que se configura do outro lado do monte, em sua desabalada, e criativa, descida. E este peso sobre-humano nos tira o chão, nos tira o sofá e nos faz seres medíocres, pois somos relapsos, e não gostamos de carregar tamanho peso, nem tampouco, mesmo com referido peso, criar uma liberdade leve e perspicaz. Uma náusea, aquela do esforço que está além de nosso alcance - principalmente quando, além de nosso alcance seria nosso promissor intelecto livre -, é o que deveríamos sentir, perante este processo não-humano que fora o processo evolutivo, por nós proposto, e por nós exorcizado.

Quando introduzimos nas coisas certos significados, por meio de nosso intelecto, ou quando se cria uma linguagem para que este objetivo de infinitize, fazemos aparecer o fenômeno. O fenômeno de que, até nas coisas fundamentais e germinativas, introduzimos errôneas concepções fundamentais, pois, tiramos de nós a possibilidade de pensar além da linha reta de uma descida em semi-castigo.

Dissemos que a pedra é muito pesada, e nos esquecemos que só estamos carregando-a pelo fato de termos nos tornado deuses, que, a exemplo de Prometeu (e que foi condenado a ter seu fígado devorado por aves de rapina durante toda a eternidade), roubando dos Deuses seu fogo sagrado, tornamo-nos mais astutos que estes mesmos Deuses, enganando-os tal como fizera Sísifo... e do saber e da existência, a fundação da memória.

Todo este processo só veio a ser porque aceitamos este peso, e tudo por uma causa bem simples: dentro do absurdo que é subir uma pedra até o alto da montanha, eternamente, para ela voltar a cair logo em seguida, devido seu exagerado peso, nos esquecemos que dentro das amarras impostas pelo conhecimento, temos a liberdade de, no retorno, quando voltamos para o sopé do monte, o caminho que fizermos é o que queremos, pois, assim também continuamos enganando os Deuses, mostrando para eles que, mesmo em castigo, ainda somos mais astutos.

Mesmo estando em castigo - e é isso que acontece com a gente, quando deixamos a linguagem falar por nós, propondo-nos uma consciência gregária - ainda resta-nos a liberdade de, num mínimo lapso de tempo, podermos dizer para a linguagem, que é o castigo, que optamos por descer de maneira sincopada, e não mais em linha reta... o caminho da liberdade ainda não está traçado, e por isso mesmo sabemos muito bem como usá-lo.

E a experiência, e seu mundo externo a nós - pois ela só se faz do lado externo, jamais internamente - nos parece tão nossa, e tão íntima que o seu próprio reconhecer já nos escraviza de novo pelo simples fato de a ela recorrer, eternamente.

O essencial de toda essa história é o castigo, e a experiência (e o que é experiência, senão repetição), por meio de uma linguagem não-verbal, nos exorta a buscar este essencial... a pedra já faz parte de nossa vida, e ainda assim nos recusamos a reconhecê-la, pois não queremos ser astutos, descendo do outro lado, e ainda enganando os Deuses. Não aceitamos que estamos presos às armadilhas do tempo, e dos homens - no caso do mito, às armadilhas dos Deuses - e fingimos não reconhecer este passado, tão presente. Há um ressentimento, devido o fato de sermos astutos, termos recebido tão grande castigo; sabemos que a única possibilidade de mudança estaria apenas no retorno ao sopé, pois a história já está definida.

No aforismo §16, ainda em Humano, Demasiado Humano, ao se referir ao maior problema criado pela linguagem (os conceitos de fenômeno e coisa-em-si) Nietzsche faz a seguinte constatação: Tarde, bem tarde - ele cai em si: agora o mundo da experiência e a coisa em si lhe parecem tão extraordinariamente distintos e separados, que ele rejeita a conclusão sobre esta a partir daquele - ou, de maneira terrivelmente misteriosa, exorta à renúncia de nosso intelecto, de nossa vontade pessoal: de modo a alcançar o essencial tornando-se essencial. Outros, ainda, recolheram todos os traços característicos de nosso mundo do fenômeno - isto é, da representação do mundo tecida com erros intelectuais e por nós herdada - e, em vez de apontar o intelecto como culpado, responsabilizaram a essência das coisas como causa desse inquietante caráter efetivo do mundo, e pregaram a libertação do ser. O mais incrível disso tudo é que a linguagem fez com que, com o acúmulo da poeira, e devido nossa preguiça em buscar um outro caminho de volta; até mesmo o significado de palavras, além de constatações de signos, acabaram ganhando novas significações. E neste caso posso me referir ao conceito de essencial. Há uma confusão do mesmo, tão grande, que o usamos de uma forma totalmente errônea e externa... fugidia até!

Ainda no mesmo aforismo, nova constatação: (...) o que agora chamamos de mundo é o resultado de muitos erros e fantasias que surgiram gradualmente na evolução total dos seres orgânicos e cresceram entremeados, e que agora herdamos [e por que cargas d'água não herdamos a astúcia de Sísifo, mas apenas a pedra erguida, ou seja, apenas o castigo?] como o tesouro acumulado do passado - como tesouro: pois o valor de nossa humanidade nele reside. (...) Talvez reconheçamos então que a coisa em si é digna de uma gargalhada homérica: que ela parecia ser tanto, até mesmo tudo, e na realidade está vazia, vazia de significado.

E novamente me pego a buscar mais palavras para definir a tal da evolução, tão cara a nossos ancestrais, e ainda mais cara para aqueles que virão, caso continuemos nos lembrando da pedra apenas na subida. Terei que pedir mais paciência ao leitor, pois nossa prosa ainda não se encerrou... tamanho peso, tamanho esconjurar!!

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Seção: Resenhas


Declínio e Queda da História Filosófica
Por: Carla Bretão

The History of the Decline and Fall of the Roman Empire, de Edward Gibbon, editada em seis volumes entre 1776 e 1788, é um dos mais notáveis monumentos literários da humanidade. Mas o seu tema é a miséria da glória antiga.
O livro cobre 1300 anos do Ocidente, do reinado de Cômodo (180-193) à queda de Constantinopla (1453). Dezenas de episódios e aspectos, das heresias às cruzadas, das tribos das estepes ao calendário persa, são tecidas na narrativa. Tudo é feito com extremo cuidado em anotar fontes, confrontar autores, discutir alternativas. Gibbon faz a transição da crônica para a história científica.
Num estilo elegante, Decline and Fall constrói uma descrição cristalina do passado, que se torna vívido e palpitante. O autor envolve-se e envolve-nos no assunto, mesmo remoto e complexo. Não hesita nos elogios e censuras. Esbanja louvores sobre Trajano e Marco Aurélio, Diocleciano e Alarico, Belisário, Saladino e Tamerlão, enquanto Caracala, Heliogábalo e Maximino Trácio, Teodora e Nicéforo Focas são vituperados sem apelo. Discute povos, pondera expedições, ralha a imperadores. Ele sabe o que eles pensam.
Esta exuberância nasce de um programa claro e explícito: a "história filosófica". O autor assume-se como "o olho filosófico do historiador imparcial". Esta pretensão, que nos parece algo infantil, é típica do Iluminismo de Hume e Voltaire, para quem era fácil condenar o passado. A própria tese do declínio e queda é uma imposição artificial do autor. A República e o Império inicial são exaltados, para depois se ficcionar uma decadência mais longa que muitas civilizações, 13 séculos de altos e baixos.
Gibbon descreve sempre fatos reais, mas impõe-lhes um significado que vem, não da Filosofia, mas da SUA filosofia. Ele intui isso quando, ao analisar a primeira cruzada, diz: "A fria filosofia dos tempos modernos é incapaz de sentir a impressão que teve num mundo pecador e fanático" (cap. LVIII, vol.III, p.567). Esta insensibilidade pode ser-lhe atribuída em geral: apesar do rigor, não entende a alma do que descreve.
A distorção mais patente está no tratamento do Cristianismo. O leitor nota com surpresa que a religião é sempre denominada "superstição". O tal olho filosófico minimiza as perseguições dos imperadores, simpatiza com hereges, empola a violência e vícios dos fiéis. A sua "clarividência" desconfia das descrições cristãs, ridiculariza milagres, devoções, teologias. Admira figuras como Atanásio, Gregório Magno e Luís de França, mas lamenta-lhes o ponto fraco: o "fanatismo que lhes obscureceu a razão e a humanidade".
O espanto surge no capítulo L, que descreve a expansão do islã. O leitor prepara-se para os extremos de severidade, mas o autor é muito suave com os discípulos de Maomé. Da doutrina chega a dizer que "um teísta filosófico pode subscrever o credo popular dos maometanos, um credo demasiado sublime talvez para as nossas presentes faculdades" (cap. L, ed Allen Lane, 1994, vol. III, p.178). Quanto à ação, os louvores não escasseiam porque, ao contrário das fontes cristãs, ele aceita pelo valor facial as descrições e justificações muçulmanas. Este juízo do londrino não vem de conversão, mas da mesma atitude que o fez simpatizar com Juliano apóstata e os heresiarcas: os inimigos da Igreja têm a sua complacência.
A obra opõe-se à visão enviezada da historiografia moralista anterior, que escrevia para tirar lições. Mas Gibbon, como tantos sucessores, cai no enviezamento oposto: por preconceito, condena sumária e injustamente pessoas e épocas. A ingênua arrogância parece-nos ridícula, mas muitas das suas distorções e juízos arbitrários mantêm ainda credibilidade e sustentam o anticlericalismo.
A História é uma das mais exigentes atividades humanas. Mesmo fiel às fontes, o historiador sempre se projeta a si no relato. Como disse Aristóteles: "Tal como cada um é, assim lhe aparece o fim" (Ética a Nicômaco 1114 a 32). A historiografia pós-moderna extrema este ponto, rejeitando a possibilidade de objetividade histórica, e também ela cai no desequilíbrio oposto ao que critica. A única forma séria de fazer História é manter a humildade e respeito pelos antigos. Afinal, é tão fácil condenar o passado!

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

A Evolução...


Parte III

Um grande passo atrás, uma involução, passos que trazem para o cerne da vida o que ela tem de mais autêntico e legítimo: que é a memória de um dia que se foi, antes mesmo de uma longa noite tomar conta da civilização e sua cultura doente. Esta seria uma razão mais do que suficiente de que nossa linguagem, aliada a nossa evolução - seja ela qual for, e tendo atingido um nível qualquer -, não têm razões suficientes para se autojustificar, com uma autenticidade (que se acha ter) que poderia reconferir humanidade ao homem.

A memória (como fonte de toda real cognoscência do homem, bem como de toda a significação que sua vida, apesar de parecer, não fora uma longa noite, mas um eterno meio-dia), aliada a regularidade de uma observação psicológica profunda, dariam graus de humanidade ainda maiores ao homem, conferindo-lhe legitimidade.

Por isso, cada vez mais me convenço de que a tal da observação psicológica profunda, e apenas ela, seria capaz de compreender os meandros da alma humana, e toda vida aí encerrada, induzida. E com isso, poder mostrar-nos a profundidade que é o homem humano - redundância mais que necessária para reinserir no homem o que ele tem de mais vital -; uma espécie de sugestão do que deveria convir ao homem de espírito livre.

Queremos fazer homens livres, ou seres de carcaça e materialidade escravas? Ainda mais, a evolução nos leva ao sofá, ou até o topo da montanha de Zaratustra? Descer dali não é problema, pois já seria caminho conhecido, chegar lá sim, é o problema, pois desconhecemos o caminho de ida, visto que houve uma curva sinuosa demais, deturpando o caminho e nos direcionando, distanciando-nos cada vez do topo.

Apenas podemos ouvir o homem dentro do escuro profundo de sua natureza humana, e não no escuro superficial da grande noite da história, como a isso nos submetemos atualmente. Constatado este sentimento, a memória que nos atira em ondas ferinas, tão-somente, afirma seu caráter libertador.

Resta à humanidade antiga que nos formou, reconhecer outro caminho, se não, ao menos permitir-nos a passagem, para que possamos sair deste presente sempre passado. É por isso que também o poeta e/ou o artista, atribui a seus estados e disposições causas que não são absolutamente as verdadeiras; nisso ele nos recorda uma humanidade antiga e pode nos ajudar a compreendê-la, dirá Nietzsche no aforismo §13 de seu Humano, Demasiado Humano.

E junto a esta humanidade antiga também nos convém falar do sentimento moral e do sentimento religioso, não como se fossem simples unidades: na verdade são correntes com muitas fontes e muitos afluentes. Daí a tortuosidade, e a dificuldade, de se compreender tal humanidade antiga, e como poder usá-la para atingirmos o topo: seria dando um passo atrás? E para isso, nem a unidade da palavra, dentro da linguagem, não garante a unidade da coisa.

Mas, e aí, como dar um passo atrás, rumo ao topo, ou em contrafirmação a ele? Seria uma involução, ou uma infirmação?

E o interior da memória, com sua observação psicológica profunda, onde entraria? Nietzsche dirá, no aforismo §6, do prólogo, que: Por esse tempo finalmente ocorrer, à luz repentina de uma saúde ainda impetuosa, ainda mutável, que ao espírito cada vez mais livre comece a se desvelar o enigma dessa grande liberação, que até então aguardara, escuro, problemático, quase intangível, no interior de sua memória. Uma constatação de que o presente sempre passado, também ele, numa inflexão temporal, pode deixar de ser passado, e amparado num outro passado, reconstruir um outro presente... o presente dos píncaros e dos pássaros audazes.

E recuando alguns passos, como uma justificativa de se compreender o que somos, e porque assim estamos, compreendendo, igualmente, a justificação histórica e psicológica que a nosso ser se agregou, por meio da linguagem e todos os seus subterfúgios. Assim poderíamos reconhecer como se originou dela (da história) o maior avanço da humanidade, e como sem este movimento para trás nos privaríamos do melhor que a humanidade produziu até hoje; ainda com palavras de Nietzsche, em seu aforismo §20.

O que queremos, de verdade, é saber em qual esquina, ou beco curvo, da humanidade, nossa memória ficara ali paralisada, estarrecida com os fatos linguísticos que a ela chegavam. Por isso, sem que saibas a procedência do fertilizante, não queiras comer a fruta da árvore que plantas. E pensando na pedra que neste longo caminho, como Sísifo, tivemos que carregar, novamente pensamos no píncaro que queremos atingir... não como um castigo dos deuses, mas como uma tarefa de ressureição e reabilitação do homem...

Seria nossa memória uma pedra tão pesada, para negarmos carregá-la, sempre, e sempre desse jeito?

domingo, 16 de setembro de 2007

O Limbo das Torres!


Quando o mundo cai, e não sabemos de onde vem o míssel, nem tampouco os aviões, de uma forma nem um pouco tranquila, a poeira que se levanta nos sufoca como um caleidoscópio sem órbita. Toda ação que praticamos, seja ela direcionada a que lado for - mesmo ao deserto -, acaba nos mostrando que o retorno de uma reação vem como uma consequência tardia, jamais imprevisível. Posso imaginar que é desse mal que os vizinhos do Norte sofrem. Sofrem porque, mesmo reconhecendo o passado, em sua empáfia malsã, sempre tornam a buscá-lo como justificativa de seus atos presentes.

Sabemos claramente que o mundo não é quadrado, muito menos chato, por isso mesmo, alguns ainda insistem em defecar pelos cantos; pensando que o odor de suas fezes jamais baterá à porta de seu restaurante, a lá fast-food. Come-se demais, e se esquece que a merda terá que sair dalgum lugar... qual heim? Mal, por mal, sempre tenho o que busco; e mesmo quando o vício da empáfia, com sua moléstia contagiosa, insiste em bater na porta de nossos restaurantes, ainda assim quero me manter doente... estranho não?

A força que, imaginamos, a possuindo, nada mais é que a insistência em manter-nos doentes. Nada como um belo discurso construído, e uma verdade enchameada de petróleo: ouro negro! Por isso mesmo, uma força bestial recai sobre a terra, enegrecendo o céu, não mais com cinzas, pois sua data de validade passou (11 de setembro de 2001), mas com fumaça negra de petróleo de campanha... como um espectro: dão alimento às rãs, o que gera grandes sapos anarquistas, questionadores do futuro! I'm Anarchist Baby! E junto com essa nova força que surge, o limbo que nos acomete, nada mais é que a orfandade deste futuro que se fizera presente. E, o que restara do presente, nada mais fora que trapos de um tempo imorredouro, escrito na outrora de nossa vida moderno-estadunidense. Nosso presente está a repetir o pretérito, noutro momento descartado..., mas na sociedade pós-moderna, nada como reciclar conceitos; não é mesmo?

Quando as torres caíram, o mundo inteiro, exceto parte do Oriente, ficou assustado... mas, desde que este momento surgiu, no Brasil, apenas pizzas tomaram conta de nosso contorno. Nenhum prédio caiu... ao menos não até agora!

A anarquia, sem que o sistema aceitasse, tomou conta do país. Nosso Brasil ficou órfão de governabilidade - e olha que não me refiro a nenhuma pessoa, um presidente talvez, mas à situação que adviu junto com as pretensas intenções de fazerem de nossas Casas Legislativas, mero poleiro de galinha dormir, pois, a sujeira em baixo é tão grande que, no chão nenhuma cocó quer mais ficar -, e nossa governabilidade virou notícia de blog gringo... no pior dos sentidos, diga-se de passagem.

Caímos naquilo que a sociedade mais abominava, só que de um ponto de vista ainda mais pejorativo: a anarquia aí está, e não tem nenhum Sex Pistols, nem mesmo algum Jim Morrison, para nos salvar... Sid Vicyous morreu duas vezes... ou será que foram três?



sábado, 15 de setembro de 2007

A Evolução...

Parte II

A suposição de que a linguagem pode ser tratada como uma ciência, à luz da Filosofia da Linguagem, acaba por nos mostrar um longo caminho. Percurso esse que, tal como o do homem, se mostrou em toda sua humanidade, antevendo erros e acertos; e destes erros e acertos, construindo verdades e mentiras... sempre numa trilha dual.

Justamente por este motivo, é que Nietzsche em seu Humano, Demasiado Humano, no aforismo §11, afirmará: A importância da linguagem para o desenvolvimento da cultura está em que nela o homem estabeleceu um mundo próprio ao lado do outro, um lugar que ele considerou firme o bastante para, a partir dele, tirar dos eixos do mundo restante e se tornar seu senhor. E esta sua sanha de assenhorar-se das coisas, tentando afirmar a si mesmo, uma força que não possui, é que nos dá o teor do quanto este caminho evolutivo pode ter sido tortuoso.

O orgulho que o homem tem, e que o faz se sobressair para além dos animais, é outra possível explicação para a derrocada, e também afirmação de algum caminho. Tudo consolidado a partir de suas remissivas idas à linguagem, e sua relação para com a linguagem de um outro homem. Este seria um outro instrumento, considerado por ele, como sendo ainda mais afirmativo, ao se auto-compreender como alguém, ou alguma coisa, superior aos animais.

Nesse sentido, a relação que o homem tem com a linguagem o coloca num ambiente ainda mais afirmativo, e ao mesmo tempo explosivo, somente aplicado ao homem, em sua relação com outro homem e com a natureza. E isso pode também ser compreendido como uma antecipação e, principalmente, uma escolha prévia. Ou seja, os jogos de verdade, que nesta escala evolutiva demos origem ao homem que se acha sapiens, só o são jogos quando jogados contra outro ser da mesma espécie. O que nem sempre é uma máxima!

Por outro lado, essa práxis só poderia ser pensada ao se conceber o homem e sua relação com a pólis. Os elementos dessa relação é que determinariam este caráter de antecipação e escolha prévia do homem. Só há uma antecipação prévia se houver um elemento de relação política e social. Em se estando fora da pólis, não haveria como pensar este homem dentro de uma relação lingüística que, em Hans-Georg Gadamer (1900-2002), um outro filósofo que se ocupava desta discussão, assume um caráter bastante prático e instrumental.

E aqui chegamos no ponto. A praticidade que fazemos dos nossos jogos de linguagem tendem a instaurar uma verdade tão prática quanto. É onde se começa a pensar o erro: até que ponto o que é instrumental para mim, também o é para o outro? Boa questão e, ao mesmo tempo, muito difícil de ser respondida. Acho que deixarei em aberto, para que o leitor desta linguagem, e seus signos, tire sua própria conclusão.

Assim, e não concluindo - pois ainda haverá novas informações a respeito, mesmo porque os grifos em negrito ainda não foram esgotados -, quando o homem pensou (de uma forma instrumental, sobre a linguagem) a ter realmente na linguagem o conhecimento do mundo, foi quando começou a proferir besteiras aos quatro ventos; com a única intenção de tornar-se senhor do mundo, e de seus signos. Ainda nos referindo a Nietzsche: O criador da linguagem não foi modesto a ponto de crer que dava às coisas apenas denominações, ele imaginou, isto sim, exprimir com as palavras o supremo saber sobre as coisas. Saber que, ao longo da evolução cultural de seus consortes, cada vez mais, tem se tornado gélido e sujo... Há ainda muito pó a ser aspirado!

A crença na linguagem só se propaga quando pensada a partir de um erro monstruoso.

Artigo

O porquê de eu preferir os punks aos rippies.
E o que Marx tem a ver com isso!


Anos 60. Era de Aquário, no horizonte irradiavam perspectivas de mudanças. O rock não era só música, eram socos desferidos no sistema. Nunca a juventude fora tão engajada. As drogas tinham outros sentidos, um deles era o de buscar novos horizontes, novas percepções, criar um mundo novo com paz, amor e liberdade. Era o tempo em que se levássemos tapas, dávamos beijos. Era nossa maneira eficaz de combater a violência, a guerra que imperava num sistema em que as mercadorias valiam mais do que os seres que as produziam. Por isso fazíamos nossas próprias roupas e nos alimentávamos de comidas naturais. Contra a guerra, na época a do Vietnã, íamos para as ruas dizendo faça amor não faça guerra. Um dia, no entanto, uma das nossas mais eloqüentes vozes disse: o sonho acabou. E a guerra continuou. Os festivais passaram a ser pagos, o sistema passou a assimilar os protestos e devolvê-lo em forma de mercadorias. O rock, as roupas já não tinham o mesmo sentido, perdera a integridade. Nossos ícones, os que não morreram de overdose e de desilusão, viraram grandes empresários, celebridades do show business. O colorido revolucionário se findara. O lema paz e amor, já não dava mais certo, não tinha o mesmo impacto...

Com a crise do petróleo, a queda da máscara do bem estar social, com as mortes de Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison, o escândalo de Nixon, a continuação da guerra do Vietnã..., formaram-se nuvens negras que cobriu todo o globo terrestre, esses foram os anos 70. Dos subúrbios abandonados surgiram ratos e baratas que passaram a causar estranheza e asco aos olhos dos habitantes limpos e chiques, acostumados ao chá das cinco ou a passearem de veleiro pela orla da praia. – Quem são essas pessoas esquisitas? – perguntavam. Ao contrário de roupas largas e coloridas, cabelos grandes e gestos pacíficos; usavam trajes negros com pontas de pregos e cadeados pendurados no pescoço, não discursavam e seus gestos eram agressivos, os cabelos pontiagudos pareciam quererem espetar o céu, um gentleman não poderia vê-los sem vomitar. Eles eram o lixo, punks, o resto da riqueza de poucos que começara a transbordar, eles não cantavam, eles berravam, eles não dançavam, eles lutavam. E o velhinho chamado capitalismo ficara tonto sem saber o que fazer, não dava para assimilá-los e depois vendê-los, por natureza, eles eram impermutáveis. Eles não pediam paz, eles queriam guerra, não pediam bom senso ao sistema, ele queriam destruí-lo e não tinham sonho, eles pisavam em chão de concreto e viam a realidade, no future era o que diziam, e diziam de uma maneira muito especial que era impossível não ouvir...

Nos tempos de Bin Laden, no vácuo deixado pelo World Trade Center, a mensagem dos punks continuam mais do que atual, diria, imprescindível. Punks de Genova e de Seatle, os inimigos nº 1 do G8. E por quê?

Atualmente, os olhos de qualquer pessoa lúcida se encontram fatigados de ver tanta imbecilidade e falsas comoções. Passamos todo o século XX vendo desgraças atrás de desgraças: Duas Guerras Mundiais, Guerra Fria, Guerra do Vietnã, Guerra do Golfo, da Bósnia, só para ficarmos em algumas das guerras declaradas, sem falarmos do morticínio africano, dos países abaixo da linha de miséria, vítimas de um sistema desigual e excludente que separa cada vez mais os extremos. Parece que nos acostumamos com as mortes dos miseráveis, não obstante, quando quem morre são os donos do poder, aí sim nossa comoção tem que ser evidenciada, torna-se até uma norma de etiqueta, extremamente necessária e recorrente.

Nesse momento aparecem os shows beneficentes, os apelos indignados e exortações em prol da paz, tudo isso enoja qualquer possuidor de um estômago ético. Clamores pela paz? Mas se das nossas relações sociais só advém ódio, intolerância, ignorância, fundamentalismos, tanto ocidental, quanto oriental, pedir paz é demagogia barata. Os executivos que morreram (eu sei não foram só executivos, havia também trabalhadores) no atentado merecem comoção sim, mas não mais que as criancinhas africanas que morrem de desnutrição há décadas.

Podem dizer: não há explicação para pessoas que se matam para matar outras pessoas. Será que não? Será que morrer de uma só vez acreditando ou não que tal fim leva a vida eterna não é mais sedutor do que morrer de fome vendo a miséria de seu povo? É preciso evitar os julgamentos apressados, aliás, se não tivemos a experiência da miséria, da degradação humana, estado esse em que é impossível ser ético, dever-se-ia evitar os julgamentos, os discursos morais; quem nunca passou fome, ou viu seu filho morrer à míngua sem nada poder fazer não deve pensar que é um absurdo morrer com uma bomba amarrada ao corpo.

Não estou defendendo os grupos fundamentalistas, longe de mim, mas também não posso digerir essa demagogia podre proliferada pela CNN. Não cabem mais canções pacíficas e bandeiras brancas cobrindo os bombardeios a um povo sem perspectivas, não se pode esconder que o terror começou no dia seguinte do atentado ao World Trade Center, o terror vem do ocidente, não do oriente. E o brado que devemos proclamar não é melodioso e nem suave, é agonizante e estridente.

É por isso que eu prefiro os Punks aos Rippies.

Evidente que cada um cumpriu seu papel histórico e foi a resposta política mais eficaz em seus tempos, no entanto, a conjuntura atual merece um enfrentamento na mesma proporção, a estratégia tem que ser também a guerra, guerra ao verdadeiro mal que nos corrompe... O momento pede punhos fechados e não a paz ideológica.

E o que Marx tem que ver com isso?

Não é preciso ser um gênio para descobrir que o verdadeiro interesse dos EUA não é caçar os responsáveis pelo atentado do World Trade Center, Bin Laden e Cia., aliás, isso ainda nem foi provado. Basta sabermos que os patrocinadores da campanha pseudovitoriosa de Bush (pois quem ganhou por larga vantagem foi Gore), foi a Indústria Bélica estadunidense, somado a isto, acrescentemos a crise de superprodução mundial (recessão), e teremos bons motivos para crermos que a invasão ao Afeganistão e, a seguir ao Iraque, além de ser a ocupação de territórios geopolíticos estratégicos, trata-se de um reaquecimento da economia mundial. O atentado terrorista, nesse sentido, foi apenas um álibi, um fator legitimador para o que veio a seguir. Resta apenas esclarecer se tal atentado foi obra realmente da Al-kaeda o que, sinceramente, chego a sentir arrepios de dúvida, pois é tão favorável ao neoimeperialismo estadunidense que não seria improvável um acordo tácito entre Bush e Osama. Lembra-se do Rambo III? Foi a CIA que treinou Bin Laden.

Numa economia capitalista em crise orgânica, no caso recessão, que se trata de mercadorias em excesso no mercado. A pergunta a ser feita é por que e como ocorre o excesso? Por que produziríamos mercadorias sabendo-se que não há consumidores para elas? Primeiro, nem sempre podemos saber, pois a economia segue as leis de mercado e não a necessidade real dos consumidores, aliás, necessidade deixou de ser, há muito tempo um indicador de consumo. É a produção que cria o consumo e quase sempre o consumido não é necessário. E a produção não é pensada racionalmente, como disse acima, é regida pelas leis de mercado que seguem uma única regra: a do lucro.

O lucro, por sua vez, tem que ser sempre aplicado na produção ou no mercado especulativo, mas tem que ser aplicado, tem que virar capital. Como sabemos, graças ao vovô Marx, o lucro advém da força de trabalho, assim com o progressivo avanço tecnológico, as máquinas, cada vez mais, ocupam o lugar do homem na produção, mas não é possível extrair mais-valia das máquinas, se pagam por elas o real valor, conseqüentemente, quanto menos trabalho humano na produção, mais desemprego, mais miséria, menos consumidores, mais mercadorias e menor a taxa de lucro. O lucro advém do trabalho humano explorado, as máquinas não podem ser exploradas, se pagam por elas exatamente o que elas produzem, conseqüentemente, a exclusão aumenta em igual proporção em que as mercadorias se acumulam. É uma contradição inerente do sistema capitalista que gera a falência das empresas pequenas e médias que perdem na corrida tecnológica para os grandes oligopólios e são compradas por estes que, passam, assim a conseguir o lucro na comercialização de produtos exclusivos (monopólio) ou através de acordo firmado entre as grandes multinacionais (cartéis). Garante-se, desse modo, uma margem alta de lucro (diferentemente da taxa de lucro que decresce). Tal perspectiva debilita ainda mais o poder de compra do consumidor limitando ainda mais o mercado até chegar à superprodução.

Nessa etapa há duas escolhas preponderantes: ou se efetiva uma transformação social e econômica radical, mudando os rumos da economia, da perspectiva do lucro, para o das necessidades efetivas ou se faz uma destruição do excesso das mercadorias, destruindo-as da maneira mais lucrativa, eliminando o excedente, injetando sangue novo (e inocente) no mercado com a guerra. Perdoe-me o trocadilho, mas foi inevitável, ao contrário da guerra que seria sempre evitável em uma economia que visasse o bem estar de todos, que fosse racional. Todavia, em uma estrutura social onde impera o lucro e a irracionalidade do mercado, as guerras serão sempre válvulas de escape da crise, conseqüência necessária para a manutenção de um sistema irracional e injusto, dir-se-ia o maior terror que pode haver, um terror camuflado de bandeiras brancas e lenços úmidos visto por milhões de pessoas nos veículos de comunicação, vide CNN, BBC e Globo.

É nessa perspectiva que defendo as ações anarquizantes dos punks. As atitudes que não são niilistas e que provém de uma juventude consciente de seu papel atual na sociedade, uma parcela da sociedade que ainda não foi contaminada pelas desilusões das gerações passadas, e talvez consista no único combustível desse novo milênio capaz de reacender a chama revolucionária há muito extinguida. Não bastam reformas parlamentares, trocar candidatos de direita pelos pseudoesquerdistas, é só vermos o caso inglês. É preciso destruir as estruturas carcomidas desse mundo e construir um novo. E para galgarmos esse novo horizonte, os gestos de paz e amor terão poucos resultados satisfatórios, é preciso cerrar os punhos e entendermos que a introjeção do lema faça você mesmo é mais eficaz do que esperarmos as próximas eleições ou a justiça de um mundo alicerçado em injustiças.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

A Evolução...

Parte I

Nossa história é permeada de dissabores, de sabores e de odores. Sempre surge um cheirinho de pó no ar, tanto quando nos referimos à evolução, quanto quando nos referimos à história da antropologia, propriamente dita, aquela que é humana, e que fora feita por humanos. O ressentimento de não termos acesso a este passado de uma forma límpida traz ainda uma outra questão: o caminho percorrido pelo homem, até onde sabemos, é um caminho inteiro, ou apenas fragmentos? E ao me referir a ser inteiro, ou fragmentário, não cito o caminho propriamente dito, mas a forma como este caminho fora contado por nós, e pela sanha linguística de a tudo atingir, não deixando nada em suspenso - imagino que, por vezes, falta esta suspensão.

Em Humano, Demasiado Humano, obra de Nietzsche, escrita em homenagem ao centenário da morte de Voltaire, donde o autor tenta traçar um caminho para que o homem atinja o grau de homem enquanto ser de espírito livre, num de seus muitos aforismos, ao se referir a este quehacer da História, ele notará claramente o quanto há uma correlação com a noção de Cultura; aliás, eu diria ainda mais, ele se utiliza do termo Cultura para tentar traçar um perfil do desenvolvimento da humanidade, "desde lá, em sua origem monocelular até sua bunda frente à TV" (esta última parte, entre aspas, já é de minha alcunha, como uma interpretação sobre). Este perfil, ao menos esta tentativa de traçá-lo, desponta sobre nós, às vezes, como uma grande incógnita, outras como um longo passo atrás.

Vamos ao aforismo citado acima, de número §249: Sofrendo com o passado da cultura. - Quem percebe de modo claro o problema da culura, sofre de um sentimento semelhante ao de quem herdou uma riqueza adquirida ilegalmente, ou ao do príncipe que governa graças às violências de seus antepassados. E, eu, dando um pitaco: até mesmo as violências que foram praticadas pelas espécies, em sua guerra encarniçada pela sobrevivência, onde nem sempre o mais forte e o mais esperto conseguem sobreviver, restando ao mais fraco, e mais estúpido tal butim. Continuando: Pensa com tristeza em sua origem, e com frequência tem vergonha e fica irritado. Todo o montante de energia, vontade de viver e alegria que dedica ao que possui é muitas vezes contrabalançado por uma enorme fadiga: ele não consegue esquecer sua origem. Olha o futuro com melancolia; os seus descendentes, ele já sabe, sofrerão do passado assim como ele. E este sofrimento faz com que, cada vez mais, tentemos manter o statu quo, devido a facilidade de lidar com realidade tão alienada - além de alienante - e chã. A melancolia de que o peso da cultura ainda traz para nós suas consequências, principalmente quando deixamos de carregar a pedra lá no início de tudo, preferindo nos esconder.

Pode até não ter nada a ver, mas quando me lembro de Homer Simpson, mais ainda este peso me chega em mente. Uma vida onde a vida está apenas no imediato de uma procedência bastante antiga. Por outro lado, como um caminho longo, ao sair desta evolução como vencedor é a ele que damos as batatas, e depositamos nosso butim, mesmo sabendo que, em momentos cruciais ele preferiu se esconder. Esta briga constante que nosso personagem trava poderia muito bem ser a briga de todos nós. Uma briga que nos deixa cansados. No entanto, por sua homérica consolidação, tira-nos um pouquinho desta preguiça diária... em contrapartida, ao chegar em casa, afunda a bunda no sofá, frente à televisão.

Ps.: Se atente para o que está em negrito, pois voltará!

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Seção: Resenhas

Livro: O Ser e o Nada

Que tal um livro que tem 782 páginas escritas no momento e no local onde ocorria a Segunda Guerra Mundial? O que você diria se o autor ao contrário do que deve estar pensando, tivesse participado ativamente da Guerra, inclusive sendo preso em combate? E o que você pensaria se soubesse que o livro não é um diário de Guerra, mas um verdadeiro “tratado” de ontologia? Espantado? E se eu dissesse que neste livro discute-se nada mais nada menos do que as filosofias de Hegel, Husserl e Heidegger, com algumas pitadas de Descartes, Marx, Kant e alguns outros da mesma espécie. Incrível?

Este livro chama-se O Ser e o Nada – Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Nesta obra, Sartre faz um estudo sobre o Homem e seus vários modos de ser, fazer e ter no mundo. Para isso, constrói os conceitos do Ser-Em-Si, do Ser-Para-Si e do Ser-Para-O-Outro, tentando abarcar todas as múltiplas realidades humanas.

Em O Ser e o Nada ele utiliza a fenomenologia procurando compreender o Homem e a sua realidade humana em termos ontológicos. Realçam-se aí seus estudos sobre a consciência, pois, para Sartre, o ser se define pelo seu transbordar-se para fora de si em busca de... O ser se mostra por aquilo que ainda não é. Nesse sentido, o ser é negação do ser, é um ser que se lança para o futuro, e sua consciência por ser indeterminada é o nada, a nadificação do ser, a característica fundamental da liberdade humana, o ser é o que não é e não o que é, ou seja, é um Ser-Para-Si, um ente que nega e se supera. Para quem deseja refletir sobre a condição humana de maneira profunda e instigante, O Ser e o Nada é uma leitura obrigatória.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Seção: Filosofia de Boteco - Dioniso Sóbrio IV

Aforismos: A Razão Produz Pesadelos em Singelos Sonhos
A razão produz pesadelos, a identidade produz monstros... e Goya produz emplastos. Bem, qual das afirmações, anteriomente expostas, podem se auto-justificar? Além disso, sendo comprovada, imagino, será algo difícil de conseguir alguma auto-justificativa. Por outro lado, do ponto de vista metaforial, aí sim, temos a possibilidade de uma possível constatação. E a constatação que nos advém é a de que, durante toda sua história, a razão produziu monstros e pesadelos. Além disso, ela sempre deixou para trás aqueles sonhos bons, que elevam, sonhos de outrora, e que, alguma vez tivemos. Até mesmo nossas mais constatadas certezas sempre foram certezas, tão-somente à luz da razão. E nisso, falando de identidade, temos esta constatação nos referindo ao futebol e seu emplasto alienante, a lá Brasil, as gerações e sua constante briga em tentar se afirmarem. A juventude e seu estigma de rebeldia... vitórias e derrotas de um mundo que, tal como em Goya, apenas existe em pesadelo. O pesadelo que a razão pegou para si, o transformando em sonho... tantos pesadelos que, para tão humilde espaço, não poderiam ser aqui discutidos. Aliás, há sim a possibilidade de uma discussão: e ela poderia acontecer no momento em que colocamos a razão na roda que, diga-se de passagem, seria muito mais um círculo vicioso que virtuoso. Talvez este seria o momento em que conseguimos, por singelos dez segundos, dominá-la. Uma espécie de alheamento de nós para com seu núcleo afirmativo e conformativo... seria esta a alternativa de um possível dominar? E Goya, quando traz um homem meditabundo, cabisbaixo, e seus vários fantasmas, em momento de transe-em-sonho, como num pequeno toque, acaba nos dizendo muita coisa, sem a palavras e signos recorrer... e então, o que tão bela pintura nos faz antever?
Diga se puderes, santa Humanidade!

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Seção: Filosofia de Boteco - Dioniso Sóbrio III

Aforismo: Pássaros Audazes, Homens Felizes

O ser humano que se deixa levar por uma ideologia, ou mesmo por uma construção que não lhe convém, tem em seu encalço grande possibilidade de aculturamento. E, em se tratando de aculturamento, de forma automática, também se trata de estar-se-a-si-mesmo enleado do outro, ou ainda, em se estar fora-de-si e dentro-do-outro. Neste aculturamento, o estar enleado de si-mesmo acaba se tornando mera traquinagem de uma mente confusa - como o pesadelo (O Sonho da Razão) de Goya e os sonhos assustadores da noite sem luz - e, ao mesmo tempo, ciente de suas inclinações. Cada inclinação diz muito de sua origem e, principalmente, de suas intenções: uma inclinação é a constituição de uma identidade para-outro. O indivíduo que tenta fazer de sua vida uma inclinação para consigo-mesmo, ao mesmo tempo em que se alheia do grupo ao qual faz parte, também cria condições de um andar solitário. O pisar em falso, nesse momento, pode vir de uma forma muito inesperada... e é exatamente isso que faz deste indivíduo, e de sua vida, uma condição plena-de-si. Aí eu pergunto, dá para seguir neste andar solitário? ... sinceramente, é algo que fica em suspenso, visto que, como membros de uma coletividade que somos, automaticamente, também somos membros de uma identidade compartilhada, e que nem sempre reflete o que realmente, nós enquanto seres livres e solitários, poderíamos ser. A identidade, enfim, apenas existe no compartilhar. Seres audazes, aeronautas do futuro e pássaros valentes, donos de sua asa e liberdade... todos, num mesmo enlace, apenas o são em perspectiva... dificilmente em prática.
Isso é viver em sociedade... gostemos ou não!!

Seção: Filosofia de Boteco - Clio Ébria IV


Aforismos: Futebol

O futebol no Brasil é mais que um simples entretenimento. Ele é por vezes tido como uma das chaves interpretativas para se entender aspectos da cultura brasileira. E não sem motivos, haja vista a importância da democracia corintiana no contexto das diretas já, a paralisação das atividades econômicas na Copa do Mundo, as comemorações carnavalescas, o uso ideológico que se faz dele e a repercussão que um simples fato futebolístico pode ganhar ultrapassando assuntos como a política que nos afeta diretamente.
Como se explica esta paixão do brasileiro pelo futebol? Muitos dirão, mas não é só o brasileiro que é um apaixonado, veja os ingleses, os italianos... Concordo, mas é preciso analisar os significados dessas paixões. O inglês, por exemplo, é um fanático por futebol, mas é de uma maneira completamente diferente. Para os ingleses, em geral, o futebol é a maior e melhor diversão, mas isto não invade sua vida privada, saindo do pub, o inglês volta para sua vida normal. Não dá para imaginar um comerciante inglês que deixa de vender sua mercadoria para um jogador porque este fez seu time perder, como já aconteceu e ainda acontece no Brasil variáveis disto. As vidas profissional e particular são plenamente separadas entre os ingleses, a exceção de alguns marginais que existem em todo o lugar e que fazem do futebol não só uma válvula de escape, mas um espaço de transgressão e liberação de seus instintos selvagens. Na Inglaterra, ir ao estádio é um passatempo desestressante e alienante, mas é um momento de final de semana. O inglês consegue torcer ativamente a vida inteira para um time sem que ele nunca tenha sido campeão, comparecendo aos jogos religiosamente. Para eles isso é possível porque suas frustrações não são grandes o suficiente ao ponto de necessitar de algo para colocar no lugar de sua vida real. Pelo menos não em regra.
Já para os brasileiros, em grande parte, o futebol é utilizado para compensar as frustrações e infelicidades de sua vida social, assumindo um lugar que geralmente é ocupado pela política e economia em outros países. Mesmo com a atual decadência da seleção nacional, não só futebolisticamente, mas nacionalmente, devido à venda dos jogos da seleção para grupos estrangeiros que detém o direito de marcar os amistosos em qualquer lugar do mundo – estamos há quase 6 anos sem que a seleção brasileira se apresente oficialmente no país! Sem falar, do grande êxodo de jogadores brasileiros – A maior tragédia do futebol nacional nas palavras de Paulo Vinícius Coelho. E não se esquecendo que cada vez mais as crianças brasileiras adotam times estrangeiros para torcer, devido a este êxodo de craques. Mas mesmo com a incapacidade da CBF em aproveitar melhor esta paixão que ainda é grande mas está diminuindo, pois, permite inerte que isto aconteça, porque pensa mais nos contratos lucrativos (curto prazo) do que com a continuidade da própria lucratividade do futebol brasileiro (longo prazo), pois como a seleção brasileira pode sobreviver sem os craques que os clubes brasileiros revelam e tão logo já estão jogando na Europa? Alexandre Pato foi vendido para o Milan antes que completasse 18 anos e antes de jogar pelo menos vinte jogos pelo Internacional. O time que o revelou e que pouco ganhou com a sua venda. Mesmo com todos estes problemas envolvendo a paixão nacional, a escalação da seleção brasileira é mais esperada do que a nomeação de ministros pelo presidente. Já virou clichê a frase de que o brasileiro sabe a escalação de seu time, mas se esquece em quem votou logo depois das eleições. Infelizmente isso continua válido. Portanto, o futebol brasileiro é sim um aspecto importantíssimo para se compreender a cultura brasileira, goste disso ou não!

Seção: Filosofia de Boteco - Clio Ébria III



Aforismos: Identidade


O conceito identidade, seguramente, é uma das categorias mais utilizadas e de sentido mais fluído. Do ponto de vista lógico, identidade significa uma relação de semelhança. Já de uma perspectiva antropológica, pode expressar uma vivência entre pessoas que compartilham experiências comuns. Nesse sentido é que podemos falar de uma identidade latino-americana ou de uma identidade regional qualquer. Nesse último exemplo associa-se a noção de identidade ao de costume típico de uma determinada região ou de um povo.
O que podemos acrescentar à discussão de Dionísio é que a identidade de um indivíduo, por exemplo, - se é que se pode dizer isto, posto que, o que se constata numa dinâmica social são identificações flexíveis em todos os níveis da sociedade -, se forma em contraposição com o(s) outro(s). Nas palavras de Sartre: “... o outro me ensina o que sou.” ( Ser e o Nada, p. 352). É com base na interpretação (gestual, imagética, etc.) do(s) outro(s) que construo o que sou, ou seja, é a partir de um convívio social efetivo, estabelecendo relações com aqueles diferentes de mim que defino a minha identidade.
Outro ponto a se destacar é que o conceito de identidade deve ser usado com cautela, pois efetivamente existem identificações, ora com uns ora com outros, vez ou outra com situações que com o tempo tornam-se práticas comuns e costumes típicos. Assim sendo, sou brasileiro porque tenho traços comuns com outros que também são considerados brasileiros e que juntos formamos num determinado espaço e tempo, uma sociedade. Uma identidade por mais fixa e constante no tempo e no espaço jamais pode ser interpretada como uma espécie de homogeneidade ou padrão. Para ilustrarmos bem o desvelo que devemos ter com o conceito identidade, este deve estar em constante relação com o de diversidade. É na diversidade que se formam as identidades e, ao mesmo tempo, é partir de algo em comum, o estatuto humano, que conseguimos impor nossas particularidades.